Alguns Caminhos Da Moral
Por NERI P. CARNEIRO | 28/09/2008 | FilosofiaNeri de Paula Carneiro
Este texto representa algumas anotações para ajudar na compreensão da origem da moral. Evidentemente não se trata de algo conclusivo nem de um estudo completo, mas de elementos para iniciar uma discussão acerca do tema, uma vez que a discussão sobre a moralidade é, não só um tema atual como provocante; a partir dele podemos não só entender os comportamentos pessoais como também explicar o que ocorre na sociedade. Podemos dizer que os processos educacionais escolhidos e adotados nas relações sociais e nos sistemas educacionais são conseqüências dos comportamentos morais que são assumidos pela sociedade. Podemos dizer, além, disso que os comportamentos socialmente aceitos – ou rejeitados – são resultados dos padrões morais que se construíram ao longo dos anos de existência das sociedades humanas. Portanto buscar a compreensão dos comportamentos morais é uma forma de buscar a compreensão de o próprio ser humano em seu processo histórico e cotidiano.
1- O homem, que realidade é essa?
As pessoas vivem em grupos. Essa constatação não representa a realidade total da evolução do ser humano nem da sociedade humana; também não esgota as características do ser humano, hoje visto e entendido como ser de relações. Outras questões precisam ser respondidas: as pessoas sempre viveram e sempre quiseram viver em grupo? O que moveu os indivíduos a se agruparem?
Parece que não é errado dizer que nem sempre os seres humanos viveram em grupo, formando o que chamamos de sociedade. Também não erramos quando afirmamos que o ser humano está, constantemente, insatisfeito. E se está insatisfeito é porque possui necessidades. Essa parece ser a principal e, talvez, primeira explicação para a organização das sociedades humanas. A satisfação das necessidades.
Sendo assim podemos dizer que as pessoas gostam de estar sozinhas, mas vivem em grupos. Gostam de estar sozinhas porque a solidão permite liberdades que não é possível no grupo. Mas necessitam do grupo porque nem tudo de que precisam conseguem isoladamente. A associação ocorre, portanto, não porque o ser humano é, essencialmente, gregário, mas é segregacionista, é sectário, e se agrupa por necessidade de sobrevivência. O grupo, portanto, nasce dos interesses pessoais e das necessidades dos indivíduos.
O que é, então, o ser humano?
Sabemos, inicialmente, que o ser humano é um animal que ganhou a classificação de racional. Aristóteles lhe afirmou mais uma característica: é político, de onde a característica da sociabilidade. Racional porque consegue abstrair e aprender com as experiências. E, mais do que aprender, consegue reproduzir e ampliar as aplicações das experiências adquiridas. Isso porque aprendeu a raciocinar. É, além disso, político porque vive, sobrevive e explora as relações sociais. Embora, como dissemos antes, goste do isolamento, prefere viver em grupo. O grupo, portanto, não é essencial, mas opção: para satisfazer suas necessidades, para satisfazer seus desejos, para superar seus medos, para superar suas fraquezas.
Nisso podem ser observadas mais algumas das características desse ser, chamado homem. Diferentemente dos demais animais, o humano é frágil, desprovido de garras ou pele resistente aos ataques dos predadores e intempéries. Essa fragilidade produziu e ajudou no desenvolvimento de outra característica: o medo. Como mecanismo de superação dos medos os humanos desenvolvem mecanismos para conviver ou para superar adversidades da natureza. Um desses mecanismos é a vida grupal. Os humanos, portanto vivem em grupo, entre outros motivos, porque assim se protegem mutuamente. Tanto para enfrentar a natureza como para atingir objetivos comuns. O grupo passa ser um mecanismo de defesa. Os humanos aproveitam-se de suas fraquezas para produzir forças. A força do grupo nasce de uma característica muito marcante do ser humano: a capacidade de tirar benefício dos demais membros do grupo, o que indica outra característica do humano: o egocentrismo, sendo que o grupo aparece como refúgio, fortaleza e espaço de onde o indivíduo tira proveito e benefícios. As relações grupais não estão para o grupo, mas para os indivíduos do grupo. Trata-se, portanto, de uma relação interesseira.
Dessa forma é que devemos entender a característica humana da sociabilidade. A sociabilidade, ou a capacidade de o ser humano viver, sobreviver e existir em coletividade parece ser o que mais bem o caracteriza. Entretanto aqui precisamos fazer uma ressalva. Não nos parece que os humanos sejam, essencialmente, seres sociais, mas se fazem sociais a partir de suas necessidades e para superar seus medos.
Dizendo de outra forma, o ser humano é um ser sectário e tende a se isolar e a viver isolado. Socializa-se porque se percebe impotente diante da natureza, mais forte que ele. E, por ter medo de não sobreviver procura ajuda dos seus semelhantes. Assim se faz sociável numa atitude tipicamente egocêntrica, medrosa e aproveitadora. Para fugir de seus medos e disfarçar sua fraqueza aproveita-se da fraqueza dos seus semelhantes. Assim sendo os indivíduos usam a sociedade como caminho, preparação, para o isolamento, depois de se aproveitar das fraquezas dos outros seres, como ele, fracos e medrosos.
Além disso, o ser humano se percebe no mundo e se vê completamente diferente das demais realidades existentes. Em todas as correntes de filosofia encontramos a mesma afirmação: o ser humano é pensante. É ele quem dá sentido a existência dos existentes. Dá sentido porque pensa, porque se socializa e porque manipula os elementos da realidade, gerando cultura. Além disso, e sem entrar no mérito da discussão religiosa, pode-se dizer que o ser humano transcende à realidade humana.
Pensar não é só o que se pode entender etimologicamente, com a palavra, dizendo que ser humano é capaz de pesar, avaliar. Esse pensar refere-se também à capacidade humana de fazer escolhas. O ser humano é aquele que avalia, escolhe, e faz isso a partir de um processo reflexivo que exige uma postura introspectiva. Esta por sua vez deriva da capacidade de abstração. Na verdade quando se diz que o ser humano é capaz de pensar pretende-se afirmar que ele é capaz de falar sobre as realidades com as quais não está em contato imediato. Ele pode representá-las, mentalmente e nisso se dá um processo de reflexão, pois se trata de "voltar a ver" o que não está presente.
Essas características (pensamento, abstração, manipulação...) permitem, que o ser humano produza o que chamamos de progresso humano (outro nome da cultura). O progresso é resultante da vida social, da superação dos medos e dos desafios. O progresso humano pode ser visto como resultado da capacidade humana de resolver problemas (capacidade reflexiva-pensante) e de se associar a outros humanos para fortalecer suas fraquezas diante das realidades mais fortes e que demandam inteligência (ler o interior das realidades) e ação conjunta. Progredir implica em superar as limitações humanas e naturais em benefício do grupo e, conseqüentemente, em benefício dos indivíduos. O progresso ganha sentido, como toda ação humana, não em si mesmo, mas pelo benefício que produz.
Daí o sentido da produção humana. O ser humano manipula o mundo e gera cultura. Ou seja, diferentemente de outras criaturas, a humana se autoproduz reproduzindo o meio que o circunda. Recria o mundo natural que o circunda e recria o já criado, dando-lhe novo significado. Sua insatisfação o leva a re-significar as realidades mesmo as que já possuem significado; recria a utilização e a utilidade das realidades mesmo as que já têm significado e utilidade consagrada.
Graças a essa capacidade re-criadora o ser humano pode produzir o mundo e reproduzir o que existe.Com isso dinamiza não só sua existência como as realidades que o circundam e seus concidadãos. Nesse processo cria ou re-cria a cultura uma das marcas mais tipicamente humanas, pois, principalmente por essa capacidade de recriar a cultura, o ser humano se diferencia dos demais existentes.
2- O sentido da existência
O ser humano pode ser visto, analisado e entendido a partir dessas e de várias outras concepções e perspectivas. Mas elas ainda não dão conta de resolver um dos seus principais, mais antigos e mais angustiantes problemas que é o do sentido da existência. Em função disso podemos afirmar: "homem não se contenta em permanecer fechado em si mesmo, reconhece que lhe corresponde profundamente viver por um ideal, por uma finalidade última" (Brandão, 2005).
Do ponto de vista religioso, aparentemente, é mais fácil responder à questão do sentido da existência. Entretanto a resposta não é assim tão simples. Pois teríamos que saber a partir de qual segmento religioso dar a resposta.
Para o cristão o homem está no mundo em busca do seu fim último que é purificar-se dos pecados e voltar para Deus. Assim se a tendência é voltar significa que veio Dele. E com isso já fica resolvido o problema não só do fim como da origem.
A partir de uma postura hindu-budista é outra a finalidade do estar no mundo. Aqui também se fala de um processo de purificação, não para voltar, mas para "mergulhar" no absoluto, pela meditação. Assim o ser humano não "iria" para outro mundo, encontrar-se com o absoluto, mas a partir da meditação e da entrega encontraria sua realização no próprio aqui e agora re-significado pela contemplação e pela meditação.
Para o espiritista o ser humano está em processo de aperfeiçoamento. Dependendo de suas atitudes – boas ou más – pode evoluir ou regredir. Então a finalidade da existência humana é a purificação. Os atos bons elevam e os maus provocam declínio, num processo que se pode dizer infindo.
Note-se que nenhuma destas atitudes religiosas dá uma resposta pré-estabelecida para o sentido da existência. Refletem sobre o destino ser humano, mas não discutem a razão do estar no mundo. Daí os questionamentos: Se está no mundo para se purificar, significa que é impuro, ou está impuro. Notando que o ser humano não é senhor de sua existência, não pode determinar sua origem, mas é originado pela divindade, cabe a pergunta: como chegou a essa impureza? Por que se tornou impuro? Se sua origem é uma divindade, por que essa divindade o cria, ou o coloca no mundo como ser impuro? Não poderia tê-lo já criado sem pecado? Por que nasce pecador, se a finalidade é a purificação? Ou o ser humano é apenas uma marionete nas mãos de uma divindade que gosta de se divertir à custa dos dramas humanos? Que divindade é essa que, aparentemente, se diverte com os dramas e sofrimentos humanos, para, só depois de muito sofrimento, levá-lo à perfeição. Do ponto de vista religioso parece que seria mais sensato o ser humano já ter nascido puro!
Pode-se dizer, com isso, que só dimensão religiosa não explica o sentido da existência humana. Mas o ser humano sabe, de alguma forma não racional, que sua vida não se resume a esta existência material e cotidiana. Por tradição ou por motivação própria, crê em uma vida pós-vida. E, embora sem saber como nem o porquê dirige-se para a morte, que é o caminho ou a entrada na outra dimensão que acredita existir. E que, de alguma forma, dá algum sentido ao existir. Ou seja, o ser humano existe para morrer.
Mas, se o ser humano olhar para si de um ponto de vista puramente material? Também aí precisa de um sentido para sua existência. Mesmo admitindo não haver nada após a morte, permanece a busca pelo sentido do existir. E aqui entra uma questão complementar: se a existência humana se explica pela afirmação de que o ser humano existe para morrer, então por que viver?
Uma possível resposta para o sentido da existência é a superação de limitações. A razão de ser ou da existência humana, portanto poderia ser entendida como uma vida voltada para a superação das limitações, tanto físicas como intelectuais. E em função disso podemos entender tanto esforço que as pessoas fazem para atingir pequenos ou grandes objetivos. Assim podemos entender os esforços hercúleos para a superação ou para a auto-superação. Com isso se evidencia, mais uma vez, o homem é insatisfeito...
3- Em busca do bem
O que dissemos até agora pode ser resumido da seguinte forma: o ser humano pode ser caracterizado a partir de alguns elementos como o medo, a fraqueza, a vida sectária, a capacidade reflexiva, a busca pelo sentido da existência, a inquietude e a insatisfação. Em razão dessas e de outras características definidoras de sua essência, o ser humano coloca-se o objetivo de viver em grupo. Por que faz isso? Qual o motivo ou significado do grupo, na vida humana? Uma resposta apressada pode ser dada afirmando que isso se explica pela busca do Bem.
"Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido e à conduta correta e incorreta" (Chauí, 2005, p. 311)
De forma muito resumida podemos dizer que a vida grupal é responsável pela manutenção da existência humana. Isso implica dizer que, entre outras coisas, o ser humano precisou criar mecanismos de sobrevivência indo para além de sua tendência egocêntrica, egoísta e sectéria. Para viver em grupo, portanto, o ser humano criou normas. É o que chamamos de política e de moral.
Para viver só ou isolado, o ser humano não tem necessidade nem da política nem da moral. Esses valores, ou essas criações, são culturais e tem como finalidade a organização da vida grupal. Talvez isso tenha levado Nietzsche a afirmar que "toda moral é, em oposição ao laisser aller (deixar correr), uma espécie de tirania contra a 'natureza' e também contra a 'razão'". E continua: "o que há de essencial e de inapreciável em toda moral é que é uma coação prolongada" (Nietzsche, (a) [2006?], p. 99). A coação moral, como também as normas originadas das relações políticas, acompanham o ser humano de seu nascimento à sua morte.
Acatando as palavras de Nietzsche, somos levados a admitir que tanto a política como a moral podem ser entendidas como interposição entre a liberdade humana, a vida grupal. Ou seja, moral e política são elementos culturais interpostos entre as aspirações e ambições egoístas, frutos da maldade humana e a necessidade de viver em grupo, explorando os iguais para sobreviver. O ser humano é mal, mas se faz bom para sobreviver e se beneficiar do grupo.
É imprescindível, portanto, responder à indagação sobre o que é isso que chamamos de política e de moral? Além de serem dimensões das relações grupais, a política e a moral, do ponto de vista filosófico, são dimensões da prática humana. Ambas são originárias da vida grupal, espaço em que o ser humano necessita de normas para minimizar ou superar os conflitos daí surgidos.
A sociedade humana desenvolveu-se, como já dissemos, a partir dos medos e das necessidades que se manifestam na insatisfação que caracteriza o ser humano. E o desenvolvimento da sociedade se deu entre outros elementos a partir do surgimento da propriedade privada e da divisão social do trabalho, o que exigiu, além das normas morais, as normas políticas. Aparecem as relações políticas como instrumento de poder. A política nasceu, portanto não só como mecanismo de exercício de poder, pela força e pela argumentação, mas também como mecanismo de mediação dos conflitos. A partir do surgimento da propriedade privada, surgiu a necessidade de se proteger os bens de quem os possui. Por isso a característica da política como mecanismo de mediação.
Tendo isso presente, podemos relembrar o que já dissemos: a política, como a moral, só tem sentido dentro do grupo. A política, como ação entre pessoas, supõe relação grupal; o indivíduo sozinho ou isolado não precisa nem de política, nem de moral/ética nem de normas/leis. Essas convenções ou valores, só têm sentido e valem no e para o grupo. É dentro do grupo, ou nas relações grupais que se fazem necessárias as normas. E aí se busca o bem. Nasce, então, a idéia do Bem Comum.
O que é o Bem? Essa é uma das principais indagações que produziram não só a política como, principalmente a moral e sua manifestação teorizada como ética.
O bem se associa ao BOM. E este, dentro de uma visão filosófica questionável, como sugere Nietzsche, está associado à utilidade. "é bom aquilo que, em todos os tempos, se revelou útil" (Nietzsche, (b) [2006?], p. 26). Essa visão do bem/bom, associado à utilidade, pode ser compreendida dentro daquilo que estamos mostrando serem as características definidoras do ser humano: um ser que sobrevive porque aprendeu a tirar vantagem de tudo.
E o pensador alemão afirma que a raiz de onde brotam a palavra bom, manifesta uma divisão social. O bom se associa à classe dominante enquanto mal se associa às pessoas de mais baixo poder aquisitivo. Diz Nietzsche:
"Descobri que esta palavra em todas as línguas deriva de uma mesma transformação conceitual; descobri que, em toda a parte 'nobre', 'aristocrático', no sentido de ordem social, é o conceito fundamental, a partir do qual se desenvolve necessariamente 'bom' no sentido de 'que possui uma alma de natureza elevada', de que 'possui uma alma privilegiada'. Esse desenvolvimento se efetua sempre paralelamente a outro que acaba por evoluir de 'comum', 'plebeu', 'baixo' para o conceito de 'mau'". (Nietzsche, (b) [2006?], p. 27).
Em Síntese
Em síntese, podemos dizer que a moralidade provém, como a política, das relações grupais. Além disso, podemos dizer que, como a política, a moral prima pelo bem/bom. E, tanto na política como na moral, o bem é uma questão de escolha, de opção. E isso ocorre em razão da capacidade racional do ser humano, que busca os benefícios pessoais, dentro do grupo. Sendo assim a moral pode ser vista como um caminho, ou artifício, usado pelas pessoas não para atingir o bem comum, mas par conseguir benefícios pessoais, por intermédio do grupo.
Essa busca do bem, os atos morais e a ética são manifestações de um processo pelo qual os seres humanos se educam. Sendo assim, os sistemas educacionais e/ou escolares também podem ser vistos como reflexosdos padrões éticos das sociedades
Para ilustrar essa situação e a relação da política com a moral e com a busca de normas e pretextos para justificar os atos, leiamos a fabula, do "Lobo e o cordeiro", narrada por Fedro:
"Ao mesmo rio vieram, compelidos pela sede, o lobo e o cordeiro.
O lobo estava mais acima e o cordeiro bem mais abaixo. Então o predador, incitado por sua goela maldosa, encontrou motivo de rixa:
- Estou a beber e tu poluis a água!
O lanoso, tímido, responde:
- Como posso fazer isso de que te queixas, ó lobo? De ti para meus goles é que o líquido corre.
Repelido pela força da verdade, ele replicou:
- Cerca de seis meses atrás, falaste mal de mim.
O cordeiro retruca:
-Eu? Então eu sequer era nascido...
- Por Hércules, teu pai, então, foi quem me destratou!
Em seguida, dilacera a presa, dando-lhe morte injusta." (Fedro, [2006?], p. 41)
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Sílvia R. R A Vocação Humana: uma Abordagem Antropológica e Filosófica. disponível em http://www.hottopos.com/vidlib7/sb.htm acessado em 15/01/ 2005
CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. 13 ed. S. Paulo: Ática, 2005.
FEDRO. Fábulas, São Paulo: Escala, [2006?]
NIETZSCHE, F. (a) Além do bem e do mal. S Paulo: Escala, [2006?].
__________, (b) A Genealogia da Moral . S Paulo: Escala, [2006?].