ADELAIDE
Por Romano Dazzi | 14/11/2009 | Crônicas
269 – ADELAIDE
A tarde ia acabando; as cores esmaecendo, os contornos ficando indefinidos.
Adelaide sentiu-se cansada, de repente, como nunca tinha estado.
É que quando chega o verão, alguém de repente muda os relógios; e os pobres têm que trabalhar uma hora a mais, enquanto esperam a escuridão.
Ela catava papel na Avenida Berrini.
Todos os dias, às sete da manhã, puxando uma carroça que, mesmo vazia, a cada dia pesava mais, ela se postava na esquina debaixo da ponte nova, a ponte “estirada”, como a chamavam, e saia para sua longa jornada.
Não era uma catadora de lixo.
Não era uma desesperada que pegasse qualquer bagulho, separando-o na calçada, deixando para trás sujeira e confusão, só para trocar cinco latinhas por uma dose de pinga, duas esquinas adiante.
Era uma catadora de papel.
Recolhia jornais, revistas, caixas de papelão; dobrava tudo , separava, amarrava, colocava em ordem na carroça.
Os homens que guardavam as entradas, todos porteiros disfarçados de generais, com divisas e galões dourados, não a deixavam passar na frente dos prédios; só podia passar por trás, pelas ruelas escuras e sujas, para pegar o material.
Os guardas da rua toleravam que ela passasse lentamente, puxando sua carroça; e fingiam não ver que ela atrapalhava o trânsito e irritava os motoristas.
Durante o dia inteiro, ela ia e vinha quatro, cinco, seis vezes , por aqueles dois longos quilômetros feitos de grandes caixas de cristal.
Em dias de sol, não dava para olhá-las, cegavam as pessoas.
Mas em dias de chuva, refletindo o céu cinzento, viravam caixas de prata cobertas de orvalho, refletindo vagamente as cores mais difíceis do arco íris.
Eram como aquela antiga caixinha de música, que a avó lhe dera um dia, tantos anos antes: bastava abrir a tampa e começava uma musica bonita – música de anjos, dissera a avó.
E assim Adelaide imaginava que, quando ninguém estivesse olhando, alguém, de lá de cima, abriria as tampas daquelas enormes caixas de cristal; e sairia uma música linda, capaz de acordar os anjos, que dormiam lá dentro; e os anjos dançariam na chuva fina, sem se molhar, só para que a cansada Adelaide pudesse repousar.
.
Estava delirando outra vez; um mulheraço daqueles, cinqüenta e tantos anos, já no fim da vida – porque vida de pobre é dura e dura pouco - sonhando no meio da rua, como uma garotinha boba, arriscando-se a ser atropelada por algum apressadinho..
Recomeçou a viagem, mas estava muito, muito cansada.
- “Não dá mais” – suspirou – “vou descansar um pouco; só um pouquinho...”.
A tarde acabara de pintar tudo de azul; as luzes já brilhavam na rua, refletidas por tantas gotículas de garoa, uma garoa fininha, antiga, rara de se ver por estes anos
- “Mas é claro! “, lembrou de repente Adelaide – “hoje é véspera de Natal! “
A sensação era boa, mas ela estava tentando lembrar o que queria dizer, de verdade esta palavra: Natal!
Sentiu de repente como se todo o trabalho, o sofrimento, a fome e a sede, que tinha suportado com o olhar baixo e os ombros encolhidos, por anos a fio, tivessem caído sobre ela, de uma vez, com todo o peso.
Estivera solitária, no meio de tanta gente; triste, no meio de tanta alegria; silenciosa, no meio de tantas vozes e de tantos sons.
Fazia anos que virara um fantasma; uma sombra, que ninguém enxergava mais.
E foi neste instante que Adelaide, sentada na calçada, recostou a cabeça na velha carroça e não sentiu mais o cansaço. Sentiu-se bem.
Alguma mão misteriosa destampou duas, três caixas de cristal e delas saiu uma música doce.
Logo alguns anjos – só alguns, na verdade, porque eram apenas os do sonho dela – começaram uma dança suave; e as gotas de orvalho refletiam o arco íris.
Uma figurinha esguia, delgada, toda branca, destacou-se, veio chegando, estendeu-lhe a mão.
–“Vovó! “ exclamou Adelaide “como você está bonita!” .
Quando olhou para o chão, a Avenida Berrini estava lá em baixo, já distante, minúscula, parecendo um cartão postal.
E no fundo do cartão, em letras de prata, incertas e irregulares, mas recortadas com imenso cuidado e carinho pelos garis, ela ainda leu : Feliz Natal !