Aconteceu
Por Helena Rodrigues | 05/09/2011 | Contos Este texto que chamo de conto é verídico. Inclusive existem testemunhas que souberam antes do fato acontecer
Era noite. Vinte horas e alguns minutos. Agosto de 2006, terça-feira. Não me recordo qual o dia do mês, mas era no inicio. Saíra de casa às sete horas, passara o dia trabalhando com reversão de processos em uma sala superlotada e, como de costume, pegara um engarrafamento na volta atrasando minha chegada. Um dia que me parecia comum a todos os outros. Quer dizer, pelo menos eu pensava que o fosse.
O volume da televisão estava alto e o telejornal noticiava o trivial: violência, corrupção e, aqui e acolá pinceladas a desenharem paisagens um pouco mais amenas quiçá no intuito de refrescar a mente do telespectador.
Entrei pelos fundos, dei uma olhada panorâmica pela cozinha, instintivamente foquei o fogão. Sempre que chegava do trabalho preparava o jantar ou um lanche qualquer. Mas, nesta noite, minha parada ali foi meteórica. Sentia meu corpo mole, os olhos pesados, e os lábios dormentes parecendo anestesiados.
Passei pela pequena sala, cumprimentei ligeiramente meu marido e fui direto para o quarto, joguei a bolsa num canto, atirei-me atravessada na cama sem nem mesmo retirar-lhe a colcha, sempre lá, protegendo o lençol da poeira. Aliás, não retirei nem as sandálias. Do jeitinho que cheguei, deitei-me. O sono era incontrolável e a sensação foi de desmaio. Apaguei! Embora nunca tenha desmaiado, essa é a palavra que melhor define o que me ocorreu naquele momento.
O ambiente agora é outro e completamente diferente do meu quarto! Uma sala bem ampla e à meia luz, em tonalidade azulada. Deveria ter umas vinte pessoas sentadas em círculo, todos em absoluto silêncio. A maioria, homens. A opacidade da iluminação dava para distinguir-lhes as silhuetas, mas não para ver-lhes as fisionomias, nitidamente. Caso me deparasse com algum deles por aí não o reconheceria.
Acho que só esperavam por mim, pois só havia uma cadeira vazia a qual ocupei automaticamente e, assim que me sentei o dirigente desejou boas-vindas iniciando a leitura da pauta.
Agasalhei-me melhor na poltrona, respirei fundo como se tivesse me esforçado muito para me fazer presente, e fiquei bem atenta: o motivo principal por estarmos aqui é discutir o colapso financeiro que os Estados Unidos da América irão entrar, anunciou aquele senhor com voz forte, grave e, ao mesmo tempo amena transparecendo um misto de preocupação e tranquilidade diante daquilo que sabia inevitável.
Houve um suspense geral e o silêncio foi quebrado. Ele calou-se, pairando o olhar sobre a folha de papel em cima de uma mesa, à sua frente, esperando pacientemente os comentários surpresos que foram instaurados no recinto: colapso financeiro?! Os Estados Unidos?! Como?!
Tais comentários não eram de dúvidas quanto ao anunciado e, sim, de espanto.
Assim como a maioria eu também estava surpresa, porém permaneci calada. Até porque não parecia ter intimidade com ninguém. Sentia-me como se tivesse caído ali de para-queda sem noção alguma do porquê de minha presença e com visibilidade apenas da parte na qual me encontrava como se um foco de luz na escuridão: não sei como se deu a minha ida, nem em que lugar estava. Quando me dei conta, já estava lá. E, talvez devido a essa estranheza meus sentidos sensoriais se mostravam aguçados e meu coração batesse tão aceleradamente.
Os comentários continuaram discretamente até que o dirigente retomou a palavra, usando o mesmo tom: veremos a seguir o que esse colapso financeiro poderá acarretar ao mundo!
Os termos a seguir, empregados por ele, ligados à economia, e, como minha formação acadêmica é outra bem diferente eu diria que até então era completamente leiga em algumas palavras.
Outros burburinhos e, agora, brevíssimos. A curiosidade do desenrolar do que fora anunciado era maior que o impacto do primeiro momento. Aquela cúpula internacional de economistas, foi o que entendi, iria discutir, nos mínimos detalhes, o processo inicial do declínio econômico ianque e do novo rumo que a economia mundial estaria tomando dali em diante. E isso já era fato para aqueles especialistas, não suposições.
Houve uma pausa após os enunciados. Respirei fundo novamente como se pretendesse concentrar-me ainda mais para não perder nenhum detalhe do que viria a seguir.
_ Oi Acorda! Não é hora de dormir! Dizia meu marido, insistentemente. E, como eu não conseguia acordar, ele continuava chamando.
_ Você não comeu nada! Levanta pra tomar um banho, comer alguma coisa.
Tenho o sono super leve, porém, naquele instante, tinha muita dificuldade em acordar. Ouvia-lhe os chamados, mas meus olhos continuavam pesados, sonolentos. Ele continuava me chamando e, certamente já preocupado com aquela minha sonolência inabitual, começou a me sacudir pelo ombro.
_ Vamos! Vai começar a novela... você não quer assistir?
Sentei-me na cama com meu emocional alterado e o coração batendo em ritmo muito acelerado.
_ Como você pôde fazer isso?! Eu estava participando de uma reunião de cúpula internacional onde estava sendo discutida a crise econômica que os Estados Unidos da América irão sofrer brevemente!
_ O quê?! Hei! Acorda! Que soneira é essa, querida! Crise econômica dos Estados Unidos! Os Estados Unidos nunca irão entrar em crise financeira. São a maior economia do mundo! Isso coisa do passado. Acorda! Vem tomar um banho pra você poder descansar direito, sorriu ele.
_ Você não deveria ter me acordado. A gente precisa respeitar o sono dos outros... me tirou de uma reunião importantíssima! E agora? Como irei saber o desfecho de tudo? Eu sei que os Estados Unidos são a maior potência econômica, mas vão entrar em crise, sim. Fiquei sabendo disso agorinha!
Nessas alturas eu já estava acordada, claro, e chorando. Na verdade nem sei por que chorava. Só sei que era uma confusão mental enorme entre real e irreal, sensação essa que não saberia definir. Graças a Deus passou rápido. Pedi-lhe então que sentasse ao meu lado e narrei, nos mínimos detalhes e de forma ordenada tudo que presenciara. Ele ouviu, mas repetiu que era apenas um sonho. E sonho era sonho. Mas, talvez devido a minha emoção, senti que ficou um pouco pensativo.
Depois de tomar uma ducha e lanchar continuei desperta como se tivesse dormido naqueles poucos minutos tudo o que tinha para dormir. A impressão do que me ocorrera continuava viva, gerando especulações vãs e, isto, obviamente, me afugentava o sono. Passei o resto da noite totalmente insone, pensando, repensando. Embora não tivesse ficado até o final daquele encontro, entendi que não se tratava de recessão simplesmente, como chamam os economistas ao se referirem a um período em que a economia de uma determinada região ou país deixa de crescer, ocorrendo uma redução das atividades comerciais e industriais que levam à queda do ritmo da produção e do trabalho aumentando o desemprego, diminuindo os salários. Não! Não falavam de uma marola que desapareceria com uma nova mudança dos ventos. Tratava-se de uma crise que evoluiria, gradualmente.
Por volta das cinco horas senti um pouquinho de sono e torci para retomar o sonho, mas tirei apenas um leve cochilo. Levantei-me as seis e meia, preparei o café da manhã, contei o ocorrido para meu filho menor e custei chegar ao Ministério para dividir com alguém. A primeira pessoa foi a sub-chefe do setor que me ouviu a narrativa com a maior atenção. Depois disse de forma bem concisa:
_ Seu marido está certo. Os Estados Unidos são a maior economia mundial. Mas, vamos esperar!
_ Sim, claro. Mas sei também que isso irá acontecer. Não saberia como explicar isso, como comprovar... que vai acontecer, vai! Conclui convicta, porém meio sem jeito como que envergonhada por aquela minha assertiva enigmática, sem fundamentação concreta.
A segunda pessoa, do Setor Financeiro, um dos departamentos do órgão, para a qual eu entregava os processos de reversões que seriam revisados e pagos a quem de direito, ao ouvir-me com a máxima de atenção possível, respondeu:
_ Todos sabemos que os Estados Unidos são a maior potência econômica do mundo, Helena, mas não me parece ter sido um sonho qualquer. Vamos esperar para ver.
No final daquela semana comentei com um casal de amigos. Nos dias que se sucederam continuei comentando com os dois colegas de trabalho e, em casa, com minha família. E falei-lhes disso várias vezes! Acho até que os cansei um pouco. Sentia necessidade de discutir o assunto, tentar entender o que, na minha cabeça continuava como se estivesse ocorrendo em tempo real.
Os meses foram passando....
Em 2007, eu já havia pedido demissão do Ministério no qual eu trabalhava como terceirizada. Meu celular toca. Era minha ex-colega de trabalho me ligando da capital do estado do Maranhão aonde se encontrava em um encontro da Igreja na qual congrega como missionária.
_ Helena, aconteceu! Os Estados Unidos entraram em declínio financeiro! Falou ela em tom de surpresa. E entendi que sua surpresa não era pelo fato em si, mas pela constatação de algo que ela ouvira a alguns meses atrás e que, até mesmo pelo seu pensar pragmático, me refiro a sua formação acadêmica, esperava acontecer para crer. O que é compreensível, claro. Nem minha família que me conhece tão bem demonstrara acreditar em tamanho absurdo. Aliás, eu que havia repetido várias vezes que acreditava na concretização daquilo que vira, também me surpreendi.
_ Pois é! Acabei de ver o jornal. Respondi emocionada.
A partir de então ouvi diariamente os termos usados pelo dirigente, lá, na tal reunião, agora pelos apresentadores de telejornais. As consequências da crise, que, gradativamente foram acontecendo em diversos países, são de conhecimento de todos: queda das bolsas de valores; falência de bancos ianques devido aos títulos podres, etc. Até aí tudo bem. No passado vários impérios entraram em colapso financeiro. Isso aconteceu com Roma, Grécia e outros; no século passado, a Grande Depressão que causou transtornos nos países industrializados. Portanto, é histórico esse ir e vir do mercado econômico. E, se na Depressão de Trinta a crise trouxe efeitos tão traumáticos, hoje, em um mundo globalizado, deve ter resultados catastróficos.
Mas, por que o aviso? Em que isso poderia contribuir? Deveria ter tornado isso público antes de acontecer? Caso o fizesse, quem iria acreditar em tamanho disparate? Duas das pessoas que souberam com antecedência pediram para que eu procurasse a mídia logo que surgiu a notícia, mas eu achava que não deveria. Inclusive tenho uma amiga, jornalista de um canal de televisão, e não lhe falei nada disso.
Agora, após algum tempo, meu marido sugere: por que não escreve sobre aquele episódio lá, dos Estados Unidos? E o titulo deveria ser ACONTCEU. Afinal o que você viu aconteceu realmente.
Sua proposta pegou-me de surpresa até porque ele nunca demonstrara interesse no assunto. Respondi-lhe que se não o fizera antes, não seria agora que o faria. No entanto, pensava, repensava, relutava, reconsiderava, resistia.
Horas mais tarde, navegando na internet, as cenas daquela misteriosa noite começaram a pulular de forma insistente e tão consistente em minha mente que, quando dei por mim já estava registrando-as. E essas lembranças ressurgiam impregnadas de emoções quase como que em tempo real, trazendo consigo as mesmas premissas que não me levavam a nenhuma conclusão. Sabe-se que todo efeito tem uma causa. Isso que "presenciei" não tem como ser comprovado cientificamente; mas, ao se concretizar posteriormente à minha "visão", virou um fato. Então, a partir daí, se tornou real e, portanto, tem uma causa. Mas, que causa? E, por qual razão?
Assim que ficaram prontas as primeiras páginas liguei para duas das pessoas que sabiam do que eu havia ¨visto¨. Primeiro, por questão ética já que seus nomes poderiam ser citados caso isso venha a público. Segundo, certificar-me se estava sendo fiel à descrição daquilo que elas conheciam muito bem. Após lerem o rascunho que lhes enviei por e-mail, aprovaram a ideia. Uma, achou que o tempo é realmente este. A outra comentou que deveria ter sido no início. Não tenho posição sobre uma ou outra opinião e, tampouco, qual a importância ou não de contar esse fato que a vida me trouxe de forma tão inusitada, surpreendente.
Logicamente acharia legal que acreditassem e, até, quem sabe, me ajudassem a entendê-lo. Mas, tudo bem! O importante é que eu sei que é a mais absoluta verdade. E uma verdade tão contundente que ninguém terá o poder de me convencer do contrário. Duvidar, podem. Isso não me incomoda muito, afinal a liberdade de pensar, raciocinar, crer e descrer são direitos invioláveis, naturalmente assegurados a todos. Porém, aconteceu!