Abusividade dos juros no Brasil: cartões de crédito
Por Luciene de Lima Monteiro | 13/07/2012 | DireitoABUSUVIDADE DE JUROS NO BRASIL: CARTÕES DE CRÉDITO
RESUMO
Os juros cobrados pelas administradoras de cartões de crédito, são os maiores da economia brasileira. A cobrança de taxas elevadas, causa um desequilíbrio na relação entre as partes, que de acordo com o entendimento do STJ, é uma relação de consumo. Por ser uma relação de consumo, sobre ela recaem princípios protetivos naturais do
Direito do Consumidor. Ocorre que a aplicação dessas proteções é praticamente incompatível com a aplicação da legislação que rege as instituições financeiras. Dessa forma, o papel do judiciário se faz fundamental para que seja possível uma resposta eficiente para a resolução desses conflitos.
Palavras-Chave: cartão de crédito, juros, consumidor, legalidade.
Os juros monetários são os frutos civis do dinheiro, sua cobrança é devida e natural. Caso não existisse a cobrança de juros nas relações que envolvem o capital, não seria um absurdo falar que uma das partes da relação enriqueceria ilicitamente. Sim, existiria o enriquecimento ilícito ao passo que a moeda não possui um valor fixo no tempo, ou seja, a moeda desvaloriza, perde valor. Dessa maneira, quando um sujeito usa o capital disponibilizado por outro numa determinada data para devolvê-lo em data posterior, deverá arcar com juros que são a remuneração pelo uso desse dinheiro, caso não haja o pagamento desses juros ao credor do capital, o devedor estará enriquecendo ilicitamente.
Logicamente, a possibilidade de cobrar juros em cima de um capital, acaba gerando a ideia do ganho de lucro e, por consequência, a ideia do lucro pode se tornar a do lucro exorbitante. Ocorre que o auferimento de lucro exorbitante, além de nos remeter à ideia de injustiça, foi regulamentado por um Decreto, de 1933, que ficou conhecido como Lei da Usura (Dec. n. 22.626/33). Na Lei da Usura, o legislador deixou clara a sua preocupação com a regulamentação de práticas econômicas abusivas que ocorriam naquele momento no país.
O cenário econômico e social que culminou com a criação de uma lei específica para tratar sobre o assunto foi o “crash” da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, como o Brasil era um país cuja economia estava baseada na exportação de matérias-primas em especial o café – que representavam três quartos de toda a exportação [1]-- que por sua vez já estava enfrentando uma crise econômica com o governo criando o controle de preços das sacas. Além disso, também estávamos lidando com a crise nos países para onde exportávamos nossos insumos, e isso estava nos afetando diretamente e rapidamente. Diante dessa imensa crise mundial e da dependência brasileira à exportação, a economia nacional entrou em uma situação bastante delicada.
Essa situação gerou desemprego, falência, histeria, queda na produção das indústrias que conseguiam manter-se abertas.[2] O dinheiro se esvaia com muita rapidez com a tentativa de manter o país e, pouco tempo depois da quebra da bolsa de Nova Iorque, o Brasil já não tinha mais nenhuma reserva financeira nem capacidade de continuar financiando as operações que mantinham a nação. Foi nesse momento de absoluto caos econômico que vieram os grandes abusos por parte daquelas pessoas que ainda tinham o dinheiro. Assim as taxas cobradas, por qualquer quantia de crédito concedido, alcançaram valores exorbitantes. Então, em 07 de Abril de 1933 surgiu o Decreto 22.626 que dispõe sobre os juros que ficou conhecido como Lei da Usura.
A Lei da Usura está em vigor até hoje[3] e foi a responsável pela limitação da taxa de juros assim como pela proibição da capitalização da dívida em períodos inferiores a um ano em qualquer contrato. Referido Decreto também dispôs que qualquer contrato que o desrespeitasse, deveria ser considerado nulo de pleno direito.
Ocorre que, posteriormente, foi editada a Lei n. 4.595/64, intitulada Lei da Reforma Bancária que criando o Conselho Monetário Nacional (CMN), passou a esse órgão a responsabilidade da limitação de juros cobrados por instituições financeiras. A legalidade dessa disposição foi extremamente , e ainda é, questionada. Isso porque de acordo com o os Atos das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988 (CF/88), ficam revogados todos os dispositivos legais “que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional.”. Cabe dizer também que a CF/88, trouxe em seu seu artigo 192, § 3º, a limitação da taxa de juros a 12% ao ano. Esse dispositivo imperaria sobre qualquer outro, porém em 2003, por meio de uma Emenda Constitucional, ele foi revogado .
O principal entendimento que a Lei da Reforma Bancária trouxe para a jurisprudência foi aquele de acordo com o qual as instituições financeiras não deveriam se submeter à Lei da Usura, e foi esse entendimento que culminou com a edição da Súmula 596 [4] do Supremo Tribunal Federal (STF), que veio colocar fim a qualquer discussão sobre a aplicabilidade das limitações do Dec. n. 22.626/33 às instituições dessa natureza.
Quando falamos em instituições financeiras, não nos referimos apenas a bancos, pois de acordo com o Superior Tribunal de Justiça (STJ), as administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e por isso não sofrem qualquer limitação imposta pela Lei da Usura (súmula 293 [5]).
Feitas as considerações acerca da limitação das taxas de juros, cabe agora falar sobre a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC) às instituições financeiras – e por consequência, às administradoras de cartão de crédito – e sua forma de cobrança dos juros.
As administradoras de cartões de crédito atualmente operam da seguinte forma: usam de contrato de adesão, no qual há a disposição de todos os termos da relação, inclusive das taxas de juros. Essas taxas de juros chegam a ultrapassar facilmente os 100% ao ano, fazendo com que o consumidor seja obrigado a suportar uma onerosidade extremamente excessiva já que as taxas dos cartões de crédito são uma das maiores da economia brasileira. Então, é por esse motivo que é necessária a discussão sobre as práticas dessas intituições e sua conformidade com o ordenamento jurídico.
O Direito do Consumidor estabelece alguns princípios que cabem perfeitamente nesse tema: transparência, vulnerabilidade, boa-fé objetiva, harmonia do mercado de consumo e repressão eficiente a abusos (CDC, art. 4º, caput e I, III e VI ) [6]; bem como os da igualdade (CF, art. 5º, caput) [7]; equidade contratual (CDC, art. 47) [8] e confiança.
Quanto ao primeiro princípio citado, o da transparência: como considerar que um contrato de adesão – como são os das administradoras dos cartões de crédito – que dispõem sobre taxas de juros que não podem ser discutidas, e que possuem valores que ficam entre 10% e 14% (ao mês) sobre as dívidas que podem ser adquiridas, está de acordo com o caput do art. 4º do CDC que entre tudo aquilo que dispõe prevê que os interesses econômicos dos consumidores devem ser protegidos?
Já quanto ao princípio da vulnerabilidade, da repressão eficiente a abusos, da boa-fé objetiva e da equidade contratual: como pode ser possível não ser onerosidade excessiva a cobrança de uma taxa de mais de 100% de juros ao ano? Como é possível que uma parte vulnerável como o consumidor, perceba o que significa essa taxa de juros? Como podem ser válidas causas que versem sobre uma cobrança tão alta de juros? Para reforçar a ideia de repressão ao abuso, da equidade e da boa-fé, o CDC traz ainda o art. 51, IV [9].
Diante da atual legislação sobre o assunto, é quase impossível responder a essas questões, pois ao mesmo tempo que o ordenamento prevê a proteção do consumidor, ele também permite essa prática por parte das administradoras dos cartões de crédito. Dessa forma, devemos olhar com muita atenção essas relações, para que possamos encontrar uma resposta satisfatória e justa para a resolução desse paradoxo.
CONCLUSÃO
A partir do exposto, podemos concluir que as administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e que por essa razão não se submetem às disposições da Lei da Usura, também concluímos que o CDC é aplicável a essas instituições por força de súmula do STJ. Sendo assim, podemos aplicar à relação entre consumidor contratante e empresa contratada, todos os princípios protecionistas existentes no Direito do Consumidor.
Porém, um problema surge: a aplicação do CDC é praticamente incompatível com as disposições legais sobre juros e sua forma de cobrança e capitalização por essas instituições, pois a elas são opostas. Esta realidade nos coloca diante de extrema insegurança jurídica, o próprio sistema possui normas conflitantes, deixando o cidadão sem amparo imediato.
Dessa forma não nos resta nada mais além de levar esses conflitos ao judiciário para que os magistrados apliquem aquilo que for mais prudente. Em nossa opinião, é necessário levar ao judiciário para que prevaleçam as disposições consumeristas, já que como são os consumidores as partes mais vulneráveis nessas relações, são eles que merecem a tutela da justiça e resoluções de conflitos dessa natureza ao seu favor.
REFERÊNCIAS
[1] Disponível em <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=872 > Acesso em: 30 jan. 2012.
[2] “A venda a crédito quase desapareceu. A produção industrial caiu 45%. Os lucros afundaram. A renda nacional recuou de US$ 87,4 bilhões em 1929 para US$ 41,7 bilhões em 1932. A massa salarial, de US$ 50 bilhões para US$ 30 bilhões. Os preços encolheram 30%, na média. ” Disponível em <http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/crise_1929_capitalismo_eua_coggiola_3.html>.
[3] Em 25 de abril de 1991, foi editado um decreto sem número que revogava o dec. 22.626/33, porém em 29 de Novembro foi editado outro decreto sem número que declarou sem efeitos a revogação de alguns dispositivos legais declarados revogados no decreto de abril. Com efeito esse acontecimento não é a repristinação (instituto jurídico pelo qual a norma revogadora de uma lei, quando revogada, traz de volta a vigência daquela que revogada originariamente.) visto que o decreto sem número de 29 de Novembro de 1991, expressamente, deixou sem efeitos a revogação da Lei da Usura contida no decreto sem número de 25 de abril de 1991.
[4] As disposições do Decreto 22.626 de 1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.
[5] As empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não sofrem as limitações da Lei de Usura.
[6] Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (…) III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; (…) VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;
[7] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…).
[8] Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.
[9] Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; (…).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAPTISTA, Andre Zanetti. Juros Taxas e Capitalização: uma visão jurídica. São Paulo: Saraiva, 2008.
SCAVONE JR, Luiz Antônio.Juros no Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
ANDRADE, Ronaldo Alves de . Curso de Direito do Consumidor. Ed. Manole, 2006.