ABSOLVIÇÃO E DESCLASSIFICAÇÃO
Por Gustavo Sirena | 14/12/2016 | DireitoABSOLVIÇÃO E DESCLASSIFICAÇÃO. ORDEM DE QUESITAÇÃO NO JURI
O procedimento referente ao Tribunal do Júri suportou relevantes alterações, ocasionadas pela Lei nº 11.689, de 09 de junho de 2008, sendo uma delas a formulação dos quesitos, conforme disposto no art. 484 do CPP.
Devido à especificidade do tema que se busca discutir, vamos nos restringir a uma investidaacerca da ordem da quesitação em relação à desclassificação e absolvição.
Implica perguntar: Em caso de estar a ser debatida em plenário tese desclassificatória e absolutória, a exemplo de tentativa de homicídio e legítima defesa, qual a ordem dos quesitos a ser obedecida?
A matéria é causa de contrassenso entre a doutrina e os tribunais pátrios, sobretudo o Superior Tribunal de Justiça.
Há quem defende que a ordem dos quesitos deve atender ao postulado da amplitude de defesa e a obrigatoriedade do questionamento acerca da absolvição, razão pela qual se deve indagar sempre aos jurados se absolvem ou não o réu.
Neste sentido é a lição do doutrinador Gustavo Badaró[1]:
Neste caso, portanto, o critério a ser seguido para a ordem dos quesitos deverá ser o da amplitude de tese defensiva e, por questão de lógica e de plenitude de defesa, a tese principal e mais benéfica ao acusado (por exemplo, legítima defesa) deve ser formulada antes da tese subsidiária e, portanto, menos ampla (por exemplo, desistência voluntária). Em suma, a ordem deverá ser: materialidade, autoria, absolvição e, se for o caso, tentativa.
Noutro quadrantedestaca-se posição de que a indagação absolutória articulada antes da tese desclassificatória está a violar o procedimento do júri, visto que sequer ocorreu a afirmação da competência pelo Conselho de Sentença.
Na esteira do preconizado por cada uma das correntes, cabe trazer a colação os discordantes julgados proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI. TESES ABSOLUTÓRIA E DESCLASSIFICATÓRIA. ORDEM DOS QUESITOS. PRIMAZIA DA TESE PRINCIPAL. PLENITUDE DA DEFESA.
- Estando a defesa assentada em tese principal absolutória (legítima defesa) e tese subsidiária desclassificatória (ausência de animus necandi), e havendo a norma processual permitido a formulação do quesito sobre a desclassificação antes ou depois do quesito genérico da absolvição, a tese principal deve ser questionada antes da tese subsidiária, pena de causar enorme prejuízo para a defesa e evidente violação ao princípio da amplitude da defesa.
- Recurso provido. (STJ. Sexta Turma. REsp 1509504 / SP. Relatora: Ministra Maria Thereza Assis Moura. Julgado em 27 de outubro de 2015).
PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. 1. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DO RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. 2. TRIBUNAL DO JÚRI. ORDEM DOS QUESITOS. HOMICÍDIO TENTADO DESCLASSIFICADO PARA LESÕES CORPORAIS. QUESITO SOBRE A TENTATIVA FORMULADO APÓS MATERIALIDADE E AUTORIA. LEGALIDADE. ART. 483, § 5º, DO CPP. 3. DESCLASSIFICAÇÃO QUE RETIRA A COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA. PREJUDICADOS QUESITOS SOBRE ABSOLVIÇÃO, LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA E HOMICÍDIO PRIVILEGIADO. 4. INCIDÊNCIA DE ATENUANTE. ALTERAÇÃO DO REGIME. SUBSTITUIÇÃO DA PENA.
TEMAS NÃO ANALISADOS NA ORIGEM. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. 5. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
- A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal e as Turmas que compõem a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente esucessiva do habeas corpus, passaram a restringir a sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade.
- A ordem dos quesitos não se revela irregular, uma vez que o quesito relativo à tentativa deve ser formulado após o questionamento sobre a materialidade e a autoria, portanto antes de se questionar se o acusado deve ser absolvido. Nesse sentido, é expresso o § 5º do art. 483 do Código de Processo Penal: "Sustentada a tese de ocorrência do crime na sua forma tentada ou havendo divergência sobre a tipificação do delito, sendo este da competência do Tribunal do Júri, o juiz formulará quesito acerca destas questões, para ser respondido após o segundo quesito".
- Uma vez reconhecida autoria e materialidade, porém refutado o crime de tentativa de homicídio, tem-se como consequência legal a desclassificação do delito, o que retira a competência do Tribunal do Júri. Com a desclassificação, não é possível dar continuidade à quesitação, pois a competência não é mais do Tribunal do Júri, mas sim do Juiz Criminal, nos termos do art. 492, § 1º, do Código de Processo Penal. Nesse contexto, prejudicado o quesito relativo à absolvição bem como às demais teses da defesa relativas ao homicídio, razão pela qual não há se falar em nulidade.
- Não é possível conhecer do pedido subsidiário, uma vez que as matérias não foram previamente analisadas pelo Tribunal de origem. Com efeito, embora o impetrante tenha oposto embargos de declaração suscitando referidos temas, o recurso não foi conhecido por ser intempestivo. Dessarte, não tendo havido prévio debate na origem, não é possível conhecer da matéria, sob pena de indevida supressão de instância.
- Habeas corpus não conhecido. (STJ. Quinta Turma. HC 262882 / PB. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Julgado em 05 de maio de 2016).
A par dessas considerações, melhor razão, a nosso ver, está com aqueles que preconizam entendimento de que o quesito da tese desclassificatória deve anteceder à absolutória.
Inicialmente é importante que nesse momento se faça uma rápida digressão sobre a decisão que leva o acusado a julgamento perante o Egrégio Tribunal do Júri.
A Pronúncia é uma decisão que encerra a primeira parte do procedimento do Júri, quando é admitida a acusação feita contra o réu, ou seja, admite-se a existência material do crime e os indícios de autoria. O magistrado não deve deixar de fundamentar, muito menos motivar de forma descomedida, pois implica em juízo de valor, que pode vir a influenciar os jurados, razão pela qual é vedado pelo art. 478, I, do Código de Processo Penal, qualquer referência a ela pelas partes.
Dessa forma, a Pronúncia deve expor apenas que há elementos de convicção suficientes de que o acusado é autor ou partícipe do crime, não devendo jamais influenciar os julgadores.
Nesse contexto, importa destacar a relevância de o juiz se manter sóbrio em sua fala, sem excesso de linguagem,sob pena de proferir decisão contaminada, passível de nulidade, consoante já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, senão vejamos:
EMENTA: CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO DOLOSO (ART. 121). PRONÚNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM: AFIRMAÇÕES PEREMPTÓRIAS INDICANDO A AUTORIA. NULIDADE. VEDAÇÃO, DURATE OS DEBATES, DE REFERÊNCIA À PRONÚNCIA (CP, ART. 478, I). GARANTIA DE ACESSO AOS AUTOS PELOS JURADOS E, OBVIAMENTE, AO CONTEÚDO DA PRONÚNCIA (CPP, ART. 480§ 3º). POSSIBILIDADE DE SEREM INFLUENCIADOS PELO EXCESSO VERBAL DO MAGISTRADO. VIOLAÇÃO À COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. (STF – RHZ 109068 DF, Relator: Min. Luiz Fux , j. 14.02.12, Primeira Turma, pub. 14.03.12).
Registre-se, aliás, que a orientação é de que, em havendo dúvida, deve o acusado ser levado a julgamento pelo Tribunal do Júri, visto que prepondera nessa fase, o brocardo in dubio pro societate.
Pois bem. Vê-se, assim, que a dúvida existente deve ser levada à apreciação do Conselho de Sentença, competente a dirimi-la, afirmando, sobretudo, se o caso apontado é ou não crime doloso contra a vida, ou seja, se é ou não de sua competência.
É por isso que, ao avesso do que alguns ventilam, não há se abduzir do Conselho de Sentença quesito a discutir sobre tese desclassificatória, sob pena de o Corpo de Jurados absolver o agente de um fato que sequer foi firmada a competência, a contrariar, dessa forma, o Art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal[2].
Em outros termos, é preciso dizer que se trata de crime doloso contra a vida, para que a votação possa prosseguir, inclusive quanto às demais teses eventualmente alçadas pela defesa.
Este, a meu ver, é o raciocínio mais percuciente e sensato.
Ademais, para reflexão, em atenção ao conceito analítico de crime, como abordar tópicos relacionados à antijuridicidade e culpabilidade, sem antes apreciar a tipicidade?
Importante, ainda, frisar, que o quesito relativoà desclassificação deve ser ordenado logo depois doquestionamento sobre a materialidade e a autoria, consoante expresso no § 5º do art. 483 do Código de Processo Penal: "Sustentada a tese de ocorrência do crime na sua forma tentada ou havendo divergência sobre a tipificação do delito, sendo este da competência do Tribunal do Júri, o juiz formulará quesito acerca destas questões, para ser respondido após o segundo quesito".
E mais, acolhida a desclassificação, não há se falar em prejuízo, já que cabe ao Juiz Criminal abordar as demais matérias não apreciadas pelo Conselho de Sentença, inclusive a tese absolutória, nos termos do art. 492, § 1º, do Código deProcesso Penal[3].
Enganam-se, assim, aqueles que utilizam como suporte para decidir, que a quesitação da absolvição deve preceder à desclassificação, com o escopo de atender ao postulado da amplitude de defesa e a obrigatoriedade do questionamento acerca da absolvição.
[1] BADARÓ, Gustavo Henrique RighiIvahy. Tribunal do Júri,incoord. MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis, As reformas no processo penal,São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 207-208.
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
(...)
- d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;
[3] Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:
(...)
- 1o Se houver desclassificação da infração para outra, de competência do juiz singular, ao presidente do Tribunal do Júri caberá proferir sentença em seguida, aplicando-se, quando o delito resultante da nova tipificação for considerado pela lei como infração penal de menor potencial ofensivo, o disposto nos arts. 69 e seguintes da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)
Biografia do autor:
Juiz de Direito da Vara Cível da Comarca de Brasileia / Acre. Graduado em Direito pela Universidade de Cuiabá – UNIC. Especialista em Direito Processual Penal e Ciências Criminais pela PUC/PR. Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL, e em Direito Público pelo Instituto de Direito Público de Brasília, campus Cuiabá.