Abre-te, Cérebro
Por Carlos Moreira | 10/06/2007 | Filosofia
ÍTACA
Se partires um dia rumo a Ítaca
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem os Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrarás
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso, não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.
Konstantinos Kaváfis
(tradução de José Paulo Paes)
Introdução ou Assim deveria caminhar a humanidade
A história da filosofia se confunde com o mundo grego. Eles foram os primeiros a dar forma e linguagem à busca de respostas cada vez mais complexas e essenciais. Há que se considerar, portanto, o próprio contexto histórico e social da sociedade grega, e suas implicações com o mundo de hoje. Mas, ao mesmo tempo, de se transcender essa compreensão, tentando captar o que está por trás, "à contra-pêlo", em tal busca. Como afirma o poeta japonês Matsuó Bashô, "não busque os antigos, busque o que os antigos buscavam".
E o que de fato se busca no labirinto filosófico? Que busca maior ocuparia tanto tempo e esforço de mentes as mais diversas (e densas) pelo mundo inteiro, há milênios? A razão de ser do Ser, seu papel no universo. "Conhece-te a ti mesmo", diz Sócrates, e "Torna-te quem tu és", completa Nietzsche. Busca imensa, muitas vezes ingrata, mas que dá sentido a toda a vida. Diferentemente das respostas religiosas, em geral dogmáticas, ou das científicas, em geral reducionistas, as respostas filosóficas partem da premissa de que não há uma resposta, do mesmo modo que não há uma fórmula apenas para todos os problemas matemáticos. Sócrates, com sua Maiêutica, ensinou que a pergunta certa já contém em si parte da resposta, e que o máximo que um filósofo poderia fazer era guiar o aprendiz para uma autocompreensão. Não ceder respostas prontas. As portas da sabedoria se abrem por dentro.
Hermann Hesse, em seu livro "Sidarta", afirma:
A pessoa alguma poderás comunicar e revelar por meio de palavras ou ensinamentos o que se deu contigo na hora da tua iluminação! (SIDARTA, 2001, p. 50)
Da mesma forma, a essência do conhecimento filosófico não pode ser captada na superfície, como que por osmose. Ela passa necessariamente pela criação de um senso crítico, e nasce, em geral, de uma busca interior que conduz o sujeito a questionamentos e angústias (indignação, como quer Platão). Enfim, buracos na alma que não podem ser tapados pelo consumismo ou pela satisfação meramente física. Tal busca nos leva quase sempre à filosofia ou à sua irmã mais bonita: a Arte, em especial a Literatura. Franz Kafka afirmava que a literatura não existe para dar respostas, mas para fazer perguntas. Do mesmo modo que a filosofia, que nos Ensina a Perguntar.
Presente de Grego
A Filosofia é, a rigor, uma invenção grega, ocidental. E difere essencialmente do pensamento oriental. Grande parte deste não tem o mesmo apreço pela razão nem pretende explicar o que é real - o Ser -, como os ocidentais, a partir dos clássicos gregos. O pensamento dito oriental, em especial o zen-budismo, se assemelha mais a uma psicoterapia, sendo de índole mais prática que teórica, objetivando a "cura" ou "salvação" do indivíduo. Mas a filosofia ocidental não é apenas um covil de céticos e pessimistas. Como afirma Montaigne, um dos ofícios da filosofia é "serenar as tempestades da alma", e figuras como Sêneca e o próprio Schopenhauer tentaram produzir idéias e sistemas que dessem aos outros não apenas visão de mundo mas, quando possível, algum consolo.
A palavra filosofia já compreende, em sua etimologia, mais que razão, já que significa amor ou amizade pela sabedoria. Os primeiros filósofos viveram na Ásia Menor, na Jônia, e mantinham estreito contato com culturas orientais, em especial a egípcia e a mesopotâmica. Dessa região era Tales de Mileto. Além dele, destacam-se nesse primeiro momento Pitágoras, Demócrito, Anaximandro, Heráclito e Parmênides. Suas preocupações voltavam-se em especial à origem e natureza do mundo (a Arqué) e ao sentido da vida.
A partir da segunda metade do século V a.C., surgem os sofistas, mais preocupados com questões da vida social e política, e para quem não havia verdades absolutas, apenas particulares e relativas a cada situação. É do sofista Protágoras a afirmação de que "o homem é a medida de todas as coisas". O mérito dos sofistas foi levar a filosofia para o cotidiano, discutindo questões relevantes como escravidão e guerra.
O segundo período (século IV a.C.) é chamado Ático, e tem como principais figuras Sócrates, Platão e Aristóteles. Sócrates acreditava na existência de verdades universais e acusava os sofistas de não procurarem o verdadeiro saber. Tudo o que sabemos de suas idéias nos foi transmitido por seus discípulos, em especial Platão. Em obras como "O Banquete" e "A República", Platão introduz sua visão idealista de mundo, segundo a qual as idéias são essências eternas e imutáveis, dotadas de existência própria, e as coisas materiais seriam manifestações imperfeitas das idéias universais. O principal discípulo de Platão foi Aristóteles, mentor de Alexandre Magno. Seu pensamento penetra quase todas as áreas da filosofia e das ciências naturais, iniciando também o estudo sistemático da Lógica e a Metafísica (reflexões sobre a natureza da realidade). Em "A Política", por exemplo, analisa as diferentes formas de governo.
O terceiro período foi o Helenístico (séc. III a.C.). Nesse momento é criada a Biblioteca de Alexandria, no Egito, contando com mais de quatrocentos mil volumes, e um Museu, no qual trabalharam, entre outros, Euclides, Arquimedes, Erastótenes e Aristarco. Alexandria se tornaria, então, o principal pólo de criação intelectual do mundo antigo. São também desse período Epicuro e Zenão, que viveram em Atenas e criaram, respectivamente, o epicurismo e o estoicismo. O primeiro prega o alcance do bem pela busca do prazer (mais intelectual que físico: não confundir epicurismo com hedonismo), e se baseava no desenvolvimento do espírito reflexivo e das virtudes. Já o estoicismo defendia a harmonia entre homem e natureza e a idéia de que tanto prazer quanto dor afastavam da sabedoria. Por isso propunham o desprendimento material e a fraternidade humana.
O quarto e último momento da filosofia antiga foi o Romano. Entre os séculos V e III a.C., Roma passou a empreender guerras de conquista, expandindo seu território. A Grécia será conquistada entre 272 e 265 a.C. Mas tais conquistas também transformam o mundo romano. Dos gregos, por exemplo, a influência se fez sentir nos hábitos cotidianos, nas artes, na ciência e na religião. Os deuses gregos receberam nomes latinos, e o epicurismo e o estoicismo tornam-se correntes filosóficas aceitas. O estoicismo foi mais difundido e teve representantes de grande porte, como Sêneca e o imperador Marco Aurélio. É deste último o fragmento abaixo:
Cada um vive apenas o momento presente, breve. O mais da vida, ou já se viveu ou está na incerteza. Exíguo, pois, é o que cada um vive. Exíguo, o cantinho da terra onde vive. Exígua, até a mais longa memória na posteridade, essa mesma transmitida por uma sucessão de homúnculos morrediços, que nem a si próprio conhecem, quanto menos há alguém falecido há muito. (MEDITAÇÕES, 1991, pág. 23)
Não devemos nos furtar de perceber a ironia dessa mensagem hoje. Somos nós os homúnculos morrediços, desconhecidos e desconhecedores principalmente de si mesmos, que tentam (não em vão) lutar contra a ignorância e o esquecimento com as frágeis armas da razão. Homéricos ou quixotescos, marchamos, entre o penhasco e o abismo, nas termópilas de nós mesmos.
A Oligarquia do Logos
Filosofia, como qualquer ramo crítico, pode ser considerada, a priori, como uma "conversa entre pessoas inteligentes". Era essa a noção de Sócrates, dialogismo puro que recusava mesmo a palavra escrita, optando pela verba, pelo verbo em ação. Ser filósofo, afinal, não é nada de outros mundos. Implica em pensar com base na razão e no juízo, sem muitas intromissões, se possível. O que muito se vê hoje, no entanto, é uma enxurrada de comentaristas, que nada mais fazem senão enfileirar um rosário inteiro de citações, em geral clássicas, sem acrescentar ou sequer arranhar outra possibilidade de reflexão. Há, talvez, no aprendizado e ensino da filosofia, hoje, um excessivo respeito a uma oligarquia do pensamento, que recusa, omite, exclui e canoniza conforme critérios no mínimo anacrônicos.
Tais critérios são estabelecidos especialmente após a fase romana da filosofia clássica, e se confunde com o surgimento do catolicismo, que consolidou sua doutrina ao se autodenominar Igreja (do grego Eclésia, assembléia) e Católica (que quer dizer universal). A história da filosofia tradicional passa então a ser escrita e contada durante séculos segundo os interesses ideológicos do cristianismo em sua forma escolástica. Para os lugares de destaque na Academia Universal do Logos, Sócrates, Platão e Aristóteles. Ao mesmo tempo, são marcados com um imenso obstat os sofistas, cirenaicos, cínicos e libertinos. Para Diógenes, poeta, louco e Filósofo, nada. Para a insubmissão dos hedonistas, idem. E a supremacia européia, em especial a alemã, vai permanecer até os dias atuais, excluindo-se tudo (ou quase) que possa vir do oriente ou destas tépidas paragens abaixo da linha do Equador.
É preciso que se pense, caso se concorde com essa visão, numa leitura filosófica a contra-pêlo, em anti-manuais de filosofia, numa contra-história do pensamento que abarque as diferenças escamoteadas por séculos de tradição beata. Especialmente o estudante e o professor de filosofia devem ser capazes de escapar da condição de meros comentadores e passar a discutir, antes de qualquer viagem mais longa e funda, problemas atuais. Que os temas sejam discutidos de fora para dentro, e que atraiam assim para o centro da discussão o que pensadores do passado ou do presente disseram a respeito. A igualdade de direitos, a ética, a amizade, a origem da violência, os preconceitos e estereótipos, por exemplo, são potencialmente estopins de grandes discussões acaloradas e vivas, repletas de sentido e força. Ações como essa podem nos ensinar a discutir criticamente com a tradição, enquanto vamos dando fôlego a idéias próprias, a novos sistemas que a realidade porventura nos exija e sugira. Formação livresca sem sincronismo com a realidade não passa de erudição vazia, truques de salão que cabem melhor num poodle do que num filósofo.
Referências Bibliográficas
KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas. 4. edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
HESSE, Hermann. Sidarta. 42. edição. Rio de Janeiro: Record, 2001.
FIGUEIRA, Divalte Garcia. História. 2. edição. São Paulo: Ática, 2002.
KOOGAN/HOUAISS. Enciclopédia. 7. edição. Rio de janeiro: Edições Delta, 1999.
CHAUÍ, Marilena. Convite a filosofia. 12. edição. São Paulo: Ática, 1999.
RUSSEL, Bertrand. História do pensamento ocidental. 2. edição. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
AURÉLIO, Marco. Meditações. 5. edição. São Paulo: Cultrix, 1987.