A VIOLÊNCIA: Rreflexões teóricas e o processo de mudança nas instituições policiais
Por Marcos Baptista Mendes | 24/10/2009 | FilosofiaA intensificação das práticas violentas nos principais centros urbanos
brasileiros, têm sido um das mais notórias temáticas de múltiplas
pesquisas e publicações, alvo permanente dos veículos de comunicação.
Passando por uma breve reflexão teórica, verifica-se que a eclosão do
fenômeno com uma nova roupagem, a partir dos últimos 30 anos do século
passado, transcendeu o caráter meramente instrumental que lhe foi
atribuído pelas correntes estruturalistas, em especial, pelo marxismo,
fazendo ruir, por conseguinte, a "teoria da marginalidade" elaborada
por cientista sociais latino-americanos. Assim, a violência esvaziou-se
de um conteúdo ideológico, que canalizava interesses e estabelecia
referenciais e identidades, os quais emprestavam um sentido à vida e
legitimavam as ações. As profundas mudanças estruturais que atingiram a
sociedade contemporânea, têm conduzido a novas paisagens culturais
relativas a classe, sexualidade, etnia, gênero, raça e nacionalidade,
as quais formavam um lastro referencial na localização dos indivíduos.
Essas transformações geram um "vazio de referentes", o que contribui,
incisivamente, para alterações na identidade e nas relações de
sociabilidade entre pessoas, grupos e categorias. No intervalo entre a
mudança dos antigos referenciais e o estabelecimento de novas
composições sociais, a violência manifesta-se como "instrumento e
linguagem de negociação" entre grupos, visando um rearranjamento da
ordem. Nesta ótica, é essencial que os órgãos policiais promovam
mudanças, não só no âmbito de suas estruturas, contudo de ordem
cultural, que possibilitem aos seus integrantes uma aproximação às
comunidades que se dispuseram servir e, conseqüentemente, através da
compreensão da rede de relações e dos processos interativos
inter-grupais, bem como, dos demais elementos culturais próprios de
cada localidade. Logo, a filosofia e o implementação das atividades de
uma "polícia comunitarizada" concorre para o estabelecimento de um
organismo policial que funcione, não mais como mero elemento de
coerção, todavia como "facilitador" na administração e solução dos
conflitos sociais. O processo de comunitarização da polícia portanto,
ainda que não seja o único viés para o estabelecimento de um clima de
paz e tranqüilidade pública, é condição que se apresenta como básica
para que a sociedade brasileira, em especial, os segmentos menos
favorecidos, atravessem as turbulências das transformações mundiais com
maior segurança.
Introdução
Pertencente ao
cotidiano das metrópoles mundiais e recorrente aos períodos mais
remotos da existência humana, a violência encontra-se presente nas
relações que regem a vida das sociedades. O fenômeno ganha proeminência
tal na atualidade que, principalmente nas grandes concentrações
urbanas, "pensar e agir em função dela deixou de ser um ato
circunstancial, para se transformar numa forma do modo de ver e viver o
mundo do homem" (Odália, 1986, p. 9). Segundo Cardella, "a violência
manifesta-se na vida em sociedade. É portanto uma variável social"
(Cardella, 2000, p. 76). O fenômeno já não se manifesta como uma
condição básica da sobrevivência humana diante de um mundo natural
hostil, entretanto, através deste homem, sujeito da história, a
violência ganhou novos contornos, evoluiu, aprimorou-se em seus
artefatos tecnológicos e passa a determinar a forma pela qual algumas
sociedades, ou parte delas, organizam sua vida.
Na visão de Gilberto Velho:
"A
vida social em todas as formas que conhecemos na espécie humana, não
está imune ao que se denomina, no senso comum, de violência [sic], isto
é, o uso agressivo da força física de indivíduos ou grupos contra os
outros. Violência [sic] não se limita ao uso da força física, mas a
possibilidade ou ameaça de usá-la constitui dimensão fundamental de sua
natureza. Vê-se que, de início, associa-se a uma idéia de poder [sic],
quando se enfatiza a possibilidade de imposição de vontade, desejo ou
projeto de um ator sobre outro. " (Velho: 2000; 11)
De acordo
com Zaluar (1999), existe uma dificuldade em definir-se o que é
violência e a qual tipo de violência está se referindo, a partir de sua
etimologia[1],
caracterizando-se pelo emprego excessivo de força, ultrapassando certos
limites acordados nas regras que ordenam as relações, promovendo
perturbações à convivência social. Assim, entende-se que a percepção de
um ato como violento varia, histórica e culturalmente, em função da
percepção do limite de força que demanda, da perturbação gerada e/ou do
sofrimento que promove. Essas variações mostram-se um tanto evidentes,
quando observada a eclosão de fenômenos violentos em todo o mundo, no
terço final do século passado, e as novas mudanças conceituais que
provocaram quanto ao entendimento relativo à manifestação da violência
nas sociedades.
Violência: uma reflexão teórica
Na
ótica de Michaud (1989), a violência varia de sociedade para sociedade
onde cada grupo tem seu entendimento próprio acerca do fenômeno, como
decorrência dos processos culturais aos quais foram submetidos e o
momento histórico vivenciado. Como exemplo, pode-se verificar que nos
anos 50 e 60 do século passado, diversos intelectuais manifestaram-se
favoráveis ao exercício da violência pelas camadas populares, contra
regimes ditatoriais que visavam unicamente assegurar os interesses e
privilégios de grupos dominantes, ou ainda, contra a opressão
colonialista de outro Estado.
Marx e Engels, no Manifesto do Partido
Comunista, fazem referência à "guerra civil" existente no meio social,
"até a hora em que essa guerra explode numa revolução aberta e a
derrubada violenta da burguesia estabelece a dominação do proletariado"
(Marx e Engels, 1978, p. 104). Todavia, a visão marxista prende-se mais
ao aspecto concreto da violência, não demonstrando uma maior
preocupação com manifestações mais "abstratas" do fenômeno como, por
exemplo, a "violência simbólica". Pode-se citar, ainda, as reflexões de
Sorel (1993) acerca da violência como elemento de papel criativo
essencial na história, permitindo a negação revolucionária da ordem
existente. Sorel defendia essa violência como um elemento de
purificação e libertação do proletariado.
O caráter instrumental
atribuído à violência pelas teorias mais estruturalistas (Diógenes,
1998), em especial, pelo marxismo, pode ser visualizado no pensamento
de Max Weber. Para Weber (1974), o "poder" consiste na possibilidade de
impor a própria vontade ao comportamento do outro e, esse poder, só
poderá ser exercido por intermédio da coerção. Quando o Estado impõe
aos indivíduos uma norma, faz uso de seu poder sobre os grupos e
categorias, e para a consecução desse propósito, faz uso da violência,
que no entendimento de Weber, nesse caso, é legítima. De acordo com o
pensamento de Stoppino:
"O recurso à Violência é um traço
característico do poder político ou do poder do Governo. Uma das
definições mais abrangentes e mais difundidas do poder político, que
tem sua origem na filosofia política clássica e, especialmente, no
pensamento de Hobbes, e foi melhor enunciada em seu sentido sociológico
por Max Weber, baseia-se no monopólio da Violência legítima. Esta
importância da Violência deriva, de um lado, da eficácia geral das
sanções físicas e, de outro, da finalidade mínima e imprescindível de
todo Governo (...) a função de aterrorizar da Violência é
indispensável, pelo menos, para obter a finalidade mínima de um
Governo, isto é, a manutenção das condições externas que salvaguardem a
coexistência pacífica. " (Stoppino apud Bobbio et al, 1997, p. 1293)
Nos
anos 60, grupos de cientistas sociais latino-americanos desenvolveram
uma teoria da marginalidade, que passou a fundamentar idéias
classificadas como "apressadas e preconceituosas" (Zaluar, 1994, p.
136), como uma suposta aliança entre bandidos e trabalhadores, nas
favelas do Rio de Janeiro, que passaram a ser consideradas territórios
sob um novo poder, ou seja, o "governo da marginalidade". Como observa
Zaluar:
"Do ponto de vista da direita, esta aliança é tomada como
prova de que 'o meio social sem moral' da favela ou da pobreza torna os
pobres indignos de confiança, perigosos e potencialmente criminosos,
necessitando sempre de políticas dissuasórias (grifo nosso) para
reprimir suas inclinações para o crime (...) Pela visão da esquerda, os
despossuídos unidos montam uma força de combatentes armados que
resistem ao 'sistema', à 'ordem' ao 'Estado capitalista' (grifo nosso).
Bandidos viram revolucionários apenas porque fogem da polícia mas se
aliam a ela no crime organizado e usam armas." (Zaluar, 1994, 137)
A
partir da década de 70, uma série de acontecimentos violentos,
ocorridos em todo o mundo – mormente, na Europa e nos Estados Unidos –
passou a preocupar os intelectuais. A violência deixa de ser percebida
como instrumento de libertação dos oprimidos e de assumir um papel
purificador e criativo, para revestir-se de um "caráter molecular,
(...) contestador, inusitado das gangues, grupos de amotinados ou
'grupelhos' de diversos tipos que atuavam nos centros urbanos" (Costa,
1999, p.5), desvinculado de conexões com as lutas de interesses mais
amplos, provocando a agressão gratuita e a indiferença ao sofrimento
dos semelhantes. Com a chegada dos anos 80, os fenômenos violentos
ganharam grande visibilidade, com o crescimento do número de
homicídios, atos de vandalismo, crimes e agressões, e uma peculiaridade
que fugia às expectativas: uma parcela considerável desses atos, eram
praticados por pessoas que não se enquadravam dentro dos grupos
considerados pobres e excluídos, antes pertenciam a categorias que,
aparentemente, não teriam quaisquer motivos para tais práticas.
A
violência manifesta no fim do século passado e início do presente,
esvaziou-se de um conteúdo ideológico, que de certa forma, servia como
unificador e canalizador de interesses, estabelecia referenciais e
identidades, que davam sentido à vida e legitimidade às ações.
Baudrillard (1990), faz referência ao comportamento de jovens
envolvidos com práticas violentas e ao caráter "lúdico" que atribuem a
elas, fundados na busca pela fama num mundo competitivo e na excitação
pelo risco, que potencializa os níveis de adrenalina no corpo. Alguns
fatos veiculados pela imprensa podem exemplificar essa análise: os
jovens que atearam fogo no índio Galdino na cidade de Brasília, os
arrastões promovidos por "pivetes" nas praias do Rio de Janeiro, alguns
casos de rebeliões em reformatórios para adolescentes, os atos de
vandalismo promovidos por jovens integrantes de torcidas organizadas,
entre outros.
Na sociedade brasileira encontram-se grupos como as
"galeras", as "gangues", as "torcidas organizadas", os "carecas de
subúrbio", os "pichadores" e as "turmas" em geral, compostos por jovens
e exibindo a violência como uma variável, uma marca visível em suas
manifestações e participação social. Não desprezando os aspectos
econômicos e políticos da violência, intrínsecos à realidade do país,
vale observar a análise de Diógenes ao referir-se à juventude e sua
participação nesses grupos, quando argumenta que:
"A juventude é
o segmento que mais catalisa as tensões sociais como também as
exterioriza, a juventude é a vitrine dos conflitos sociais (...) O
processo de formação de 'grupos urbanos', constituindo uma pluralidade
de turmas denominadas 'galeras', parece expressar uma maneira de os
jovens se contraporem ao vazio de referentes (grifo nosso) que recortam
o cotidiano das grandes cidades. Eles formam verdadeiros territórios,
onde a circulação é apenas permitida entre os 'enturmados'." (Diógenes,
1998, p. 165,167)
Destaca-se a expressão "vazio de
referentes" na citação de Diógenes, como uma das chaves para que se
possa entender a violência praticada por estes e outros grupos, bem
como, recorrentes às mutações societais da atualidade. Hall (2001)
afirma que, para alguns teóricos, as identidades modernas estão
entrando em colapso como decorrência de uma mudança estrutural que vem
transformando as sociedades, desde o final do século passado. Como
consequência, há uma fragmentação nas paisagens culturais de classe,
sexualidade, etnia, gênero, raça e nacionalidade, "que, no passado, nos
tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas
transformações estão também mudando nossas identidades pessoais,
abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados"
(Hall, 2001, p.9). Esse processo histórico-social contemporâneo de
formação da sociedade global é inegável, definindo-se pela integração e
pela homogeneização de tensões, desigualdades, diferenciações e
exclusões, ocorrendo de forma contraditória, heterogênea e desigual[2] (Santos, 1999).
Há
uma transformação das relações de sociabilidade, onde de forma
simultânea, ocorrem processos de "integração comunitária e de
fragmentação social, de massificação e de individualização, de
ocidentalização e de desterritorialização" (Santos, op cit, p. 18).
Passou-se a viver um social heterogêneo, onde nem grupos, nem
indivíduos dão demonstrações de reconhecer valores coletivos, o que tem
por conseqüência, o surgimento de multiformes organizações societárias
e lógicas de conduta[3].
Todavia, a violência não fica restrita às implicações dos processos
estruturais, mas é fomentada por especificidades e fragmentações
locais, moleculares. De acordo com Hobsbawm, "essas transformações na
base da vida social geram uma corrosão e uma transformação das
referências e dos estilos de vida das pessoas" (Hobsbawm apud Costa,
1999, p. 9). Torna-se, portanto, interessante observar, ainda que de
forma abreviada, algumas questões quanto ao fenômeno da violência no
Brasil contemporâneo.
A Violência no Brasil Contemporâneo
No
cenário brasileiro contemporâneo, o tema da violência tem ocupado um
lugar de crescente destaque, apresentando-se, cotidianamente, como foco
da mídia, objeto de estudos e debates acadêmicos, bem como,
evidenciando-se no discurso dos atores políticos e como uma preocupação
generalizada na sociedade.
As paisagens urbanas tupiniquins, a
partir do final do século XX, tornaram-se espaços privilegiados para a
visibilidade de uma violência que se caracteriza por apresentar
distintas manifestações. As teorias explicativas diversificam-se,
todavia mostram-se insuficientes para aclarar toda a complexidade de
variáveis que provocam e contribuem para o desenvolvimento do fenômeno,
que tem um índice de ocorrências cada vez maior.
As manifestações de
violência no Brasil vêm, ao longo do tempo, passando por um processo
histórico de mudanças. E nesta ótica, é interessante verificar alguns
aspectos elementares dessa transformação como, por exemplo, o conjunto
de fatos e questões que marcaram os últimos cinqüenta anos da história
política brasileira, bem como seus respectivos significados e
conseqüências para a vida do povo e das instituições nacionais,
podendo-se tomar, por exemplo, a volta à democracia e a questão da
cidadania.
Percebe-se quanto à questão da violência em suas raízes
sociais no Brasil contemporâneo, que, à medida que o país retornou à
democracia, os índices de violência cresceram de forma intensa. De
acordo com Peralva (2000), no período em que a abertura política tinha
início, ou seja, nos anos 80, houve um crescimento das taxas de
homicídio, que alcançaram índices até então impensados, para não falar
no aumento da ocorrência de outras formas de violência. Segundo os
dados levantados pela autora, entre 1979 e 1980, o número de crimes de
sangue, em todo o território nacional, cresceu em 25%, e entre 1980 e
1997, a taxa de homicídios por cada 100 mil habitantes cresceu,
aproximadamente, 120,3%. E este fenômeno deve-se, conforme a análise de
Peralva (2000), a quatro fatores básicos: a continuidade autoritária, a
desorganização das instituições responsáveis pela ordem pública, a
pobreza e o impacto das mudanças sociais.
A continuidade
autoritária, apesar da abertura política, refletiu-se, essencialmente,
nas instituições públicas, mormente, naquelas responsáveis pela ordem
pública. Um traço marcante deste fato, foi a quase que total manutenção
do modelo policial vigente no período de exceção. Apesar das reformas
político-administrativas de cunho democrático nos Estados-membros,
inclusive com a eleição direta para governadores, em 1982, o governo
federal mantinha as Polícias Militares sob a tutela do Exército, com
base no Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, e em 1977, através
da emenda constitucional nº 7, estabeleceu que os julgamentos de crimes
cometidos por policiais militares só poderíam ocorrer por intermédio de
tribunais militares.
Embora a Constituição de 1988 tenha
restabelecido a tutela dos governadores sobre as Polícias Militares de
seus respectivos Estados – a exemplo do que ocorria com as Polícias
Civis – o texto constitucional ainda assim, manteve o "espírito"
autoritário, quando coloca as milícias estaduais como "forças
auxiliares e reserva do Exército"[4].
Assim, a PM manteve-se como uma força militarizada e mesmo,
posteriormente, tendo sofrido alguns avanços estruturais e no tocante
ao diálogo de seus comandantes, continuou "operando dentro de
parâmetros e com a mentalidade histórica dos períodos do escravismo, do
Estado Novo e, principalmente, do arbítrio dos anos pós-64." (Mendes:
1999; 19).
Ao fim do regime autoritário, questões como delinquência
e criminalidade, passaram a integrar, destacadamente, a agenda do
debate público e, como afirma Peralva:
"Muita gente pensava que,
para reduzir o número de crimes era necessário intensificar a
repressão, inclusive talvez empregando diretamente as Forças Armadas em
funções de polícia. Mas admitia-se também que uma violência com fim de
autodefesa fosse diretamente exercida pela sociedade civil. O Estado
aceitou, assim, transferir para essa mesma sociedade civil parte de uma
violência sobre a qual até ali, mal ou bem, ele havia geralmente
exercido um monopólio." (Peralva: 2000; 76-77)
Neste
panorama sócio-político – onde havia uma tendência ao emprego de
métodos violentos pela polícia, à defesa da pena de morte e à
implantação do justiciamento ilegal de criminosos – desenvolvia-se a
noção de "autoritarismo socialmente implantado", o que de certa forma,
refletia uma insegurança com relação aos destinos do país e acerca de
uma violência urbana crescente. E neste ponto, é importante analisar o
segundo fator apontado por Peralva como elemento de composição do
quadro da violência urbana, a desorganização das instituições
responsáveis pela ordem pública.
O período de transição entre o
regime autoritário e o regime democrático em nosso país, mostrou-se (e
mostra-se) complexo para as instituições policiais. Se por um lado os
militares criaram diversos óbices legais visando impedir uma reforma do
aparelho policial, por outro a polícia autonomizava-se em relação às
autoridades que mantinham-lhe sob tutela. Logo, nem os militares
conseguiam controlá-la totalmente e muito menos, os governantes
estaduais. Isto privilegiou uma polícia vestida de autoritarismo, porém
sem um maior controle político por parte da sociedade como um todo. Em
conseqüência, surgem novas formas de violência policial, com uma gama
de violações aos direitos do homem e, o que é pior, uma criminalidade
policial diversificada que explora a cobertura institucional para suas
práticas ilícitas.
O processo de redemocratização, durante o qual o
conceito de cidadania principiou a ganhar corpo na sociedade
brasileira, promoveu a revalorização dos direitos individuais, ao mesmo
tempo que a sociedade exigia que os órgãos de segurança exercessem um
efetivo controle sobre a criminalidade. Todavia, as instituições
policiais, principalmente as militares, foram flagradas no mais elevado
despreparo para lidar com estas questões, considerando o tempo que
passaram muito mais como forças de defesa territorial e de repressão,
longe portanto de suas real missão. Além disso, com a crise econômica
que afligia o país, na virada dos anos 80, os governos estaduais
passaram a canalizar, mais intensamente, os recursos orçamentários para
outras áreas de investimento, em detrimento das políticas de segurança,
o que agravou o desaparelhamento das polícias.
Daí, pela crença
generalizada que o aumento da repressão, inclusive com emprego das
Forças Armadas e implementação da pena de morte, bem como, pelo
autoritarismo impregnado na cultura institucional da PM, o recurso da
violência, dos atos truculentos, foi e e continua sendo uma resposta,
que visa "disciplinar" e "punir" os transgressores de uma lógica, nem
sempre tão lógica, e de uma ordem, nem sempre legal. Neste estado de
coisas, a qualquer momento, pode-se passar de cidadão a condição de
suspeito em potencial.
Como terceiro fator fomentador da violência
urbana no Brasil, cita-se a pobreza, ainda que muitos estudiosos
recusem-se a estabelecer qualquer relação entre pobreza e violência. Os
dados empíricos coletados em diversas pesquisas, efetuadas por
institutos públicos e privados confiáveis, demonstram claramente que,
se for traçado um mapa da violência nas regiões metropolitanas das
principais capitais brasileiras, perceber-se-á que as áreas mais
atingidas por práticas violentas e, mais especificamente, por mortes
violentas, são aquelas habitadas pelas camadas menos privilegiadas da
sociedade. O mesmo fato pode ser comprovado se observado a condição
social da maioria da população carcerária nos Estados e os mapas de
intervenção policial. Segundo Pinheiro:
"Ainda que a violência
ilegal esteja disseminada pelas áreas rurais e pelo interior do Brasil,
as manifestações mais visíveis dessa 'violência endêmica' ocorrem nas
áreas urbanas. Na maior parte das regiões metropolitanas há uma
coincidência entre os lugares onde os pobres vivem e a violência: ali a
morte é principalmente provocada por causas violentas." (Pinheiro,
1996, p. 23)
É indiscutível a existência de um vínculo entre
pobreza e violência. Este é um terreno fértil para servir como
nascedouro de práticas violentas, ainda que não seja o único
explicativo para todas as variáveis desse fenômeno. Contudo, a
ocorrência de atos violentos, em geral, apresenta seus maiores índices
naquelas localidades onde são mais evidentes os estados de carência
sócio-econômica. Segundo Pinheiro:
"Há clara correlação entre as
condições de vida, violência e as taxas de mortalidade, onde condluem
violações de direitos civis e políticos e violações de direitos sociais
e econômicos (...) qualquer tentativa de identificar uma relação causal
entre fatores sociais e econômicos e violência seria profundamente
enganadora. Mas o crime, ainda que seja uma questão de responsabilidade
moral e individual, é irrecusavelmente uma questão social e econômica.
O ambiente, compreendido como o meio familiar, o meio cultural e a
condição social, contribui para que os grupos mais espoliados ,
desempregados, aqueles fora do sistema de educação e os marginalizados
estejam mais envolvidos em conflitos violentos e crimes do que os
entitled [sic] e os remediados(...)." (Pinheiro, 1996, p. 23)
Por
fim, o quarto fator a ser analisado como provocador de violência trata
do impacto da mudança social, ocorrida no Brasil a partir dos anos 80 e
que tomou novo impulso a partir da intensificação do processo de
globalização no fim do século passado. Os avanços no sentido da
redemocratização brasileira, principalmente com a promulgação da Carta
de 1988, deu visibilidade a determinados grupos, outrora sem maior
expressividade quanto á sua participação social, como assevera Velho ao
colocar que "categorias oprimidas e diversas minorias passaram a ter
mais reconhecimento e presença na sociedade" (Velho, 2000, p. 18). Gohn
corrobora para esta idéia ao afirmar a importância dos anos 80 "para
para a compreensão da construção da cidadania dos pobres no Brasil, em
novos parâmetros" (Gohn, 1995, p. 124). Isto significa dizer que, mesmo
tendo seus direitos constitucionais negados ou ignorados na prática, os
pobres pelo menos saíram do "ostracismo social" e passaram a ser
nominados como "cidadãos".
Na verdade, a difusão da idéia que havia
uma certa dinâmica igualitária e que, a partir de então, todos eram
cidadãos, gerou uma falsa expectativa. E é exatamente neste espaço de
insatisfação, em meio a um estado de tensão social, que explode uma
violência sem precedentes, diversificada e cruel. Na visão de Velho
(2000) e Zaluar (1994), o não acesso das camadas menos privilegiadas
economicamente aos bens de consumo expostos ao público pela mídia e que
recebem uma valoração positiva dentro da cultura de massas, provoca um
acirramento das relações de tensão e ódio social.
Velho considera
que a impossibilidade de acesso a esses bens por parte das camadas
populares, reforçada pela "inadequação de meios legítimos para realizar
essas aspirações" (Velho, 2000, p. 20) provoca o fortalecimento do
mundo do crime. E prossegue afirmando:
"A incapacidade
específica do poder público em gerir e atender às necessidades básicas
de uma população pobre, em acelerado crescimento, acentua mais ainda
este quadro (...) é importante perceber que existe uma efetiva adesão
de parte desses jovens pobres à transgressão, sustentada pela crença de
que os riscos nela envolvidos são compensados por gratificações sociais
que nem se colocavam para a geração de seus pais, pois estes ocupavam
posição subalterna no mundo hierarquizado. O acesso à droga e à arma é
a base desse estilo de vida, que torna possível usufruir uma pauta de
bens de consumo e um prestígio que facilita, entre outras coisas, o
sucesso junto às mulheres e o temor entre os homens." (Velho, op. cit,
p. 20-21)
É interessante observar o que expressa Nascimento
quanto à questão da violência contemporânea no Brasil e o fato deste
fenômeno ocupar o centro da conjuntura social no país pois, a síntese
de suas conclusões acerca do assunto, aponta para uma similaridade ao
pensamento de Velho e Zaluar. Segundo Nascimento, "tornou-se mais
difícil deixar de ser pobre, aumentou o apelo para deixar de ser pobre,
reduziu-se as pressões para o desvio e criaram-se alternativas para
romper ilegalmente o círculo da pobreza" (Nascimento, 2001, p.20), o
que implicaria em um risco maior, com a "criação de uma nova exclusão
social; grupos sociais economicamente desnecessários, socialmente
perigosos, politicamente incômodos" (Nascimento, op. cit, p. 21) e, por
conseguinte, passíveis de eliminação física[5].
Angelina
Peralva afastando-se do pensamento de Velho e Zaluar, considera como
fatores fundamentais ao surgimento da nova violência no Brasil, em
especial, nas regiões metropolitanas, a desvalorização do trabalho na
"estruturação da experiência coletiva" (Peralva, 2000, p. 84), a
valorização da educação como elemento de apoio às escolhas individuais
e o crescimento da participação dos jovens pobres no consumo de massa,
pela queda relativa dos preços dos produtos. Peralva adverte que "essas
mudanças tiveram impacto indiscutível sobre o sentimento [sic] de
igualdade, seja qual for a importância real das extraordinárias
desigualdades de renda que se mantêm na sociedade brasileira. Elas
estão na base de uma nova conflitualidade urbana, efetivamente
contaminada pelas formas de violência ao extremo que o crime adquiriu
no Brasil." (ibid)
De acordo com sua interpretação, Peralva não
concebe estipular um vínculo entre esta nova conflitualidade e a
questão do engajamento na prática criminosa, considerando que esse
engajamento firma-se em lógicas de tal complexidade, onde é necessário
observar toda a gama de variáveis no entorno dos sujeitos envolvidos e
que, segundo esta autora, "determinam em larga medida o leque das
escolhas que se lhes oferece" (ibid).
Assim, Peralva comenta que
existe uma nítida relação associativa entre as transformações mais
recentes da sociedade brasileira e o aumento da violência, considerando
que, com as mudanças, antigos vínculos são desfeitos, são criadas novas
articulações e, no intervalo, surge a violência. Segundo essa autora,
esse fenômeno não é próprio apenas do Brasil, mas desenvolveu-se em
diversas sociedades contemporâneas onde ocorreram transformações
sociais de grandes proporções. De acordo com Peralva, "é sobretudo a
ausência de mecanismos de regulação apropriados a um novo tipo de
sociedade emergente que explica a importância dos fenômenos de
violência mais maciços e mais espetaculares." (Peralva, op. cit., 85).
Silva Filho corrobora com essa afirmações ao expor que:
"Parece
que um conjunto perverso de condições, em algumas regiões, favorece o
desenvolvimento de uma subcultura de violência que valida a
transgressão como solução para as frustrações e a agressão como
expediente de resolução de conflitos (grifo nosso) (...) É provável que
o desencorajamento da violência se deva fazer com recursos morais
competitivos – o velho embate entre o bem e o mal –, nem sempre
estimulados quando o ladrão mais procurado do País é um juiz e pessoas
se transformam em ricos gênios financeiros quando fazem carreira
política. Só liderança moral pode enfrentar a maldição de Macunaíma."
(Silva Filho, 2000, p. 2)
Peralva aponta o diferencial entre
a violência transcorrida no Brasil e em outras partes do mundo,
principalmente na Europa, "as formas sangrentas que entre nós assume,
em razão da ausência de políticas suscetíveis de garantir a ordem
pública preservando-se ao mesmo tempo os direitos da pessoa" (Peralva,
op. cit, p.85). Como observa Pinheiro, "ao mesmo tempo em que foram
eliminadas as violações mais fortemente cometidas contra os direitos
humanos cometidos pelos regimes militares, os governos civis
recém-eleitos não tiveram êxito em proteger os direitos fundamentais de
todos os cidadãos" (Pinheiro, 1997, p. 44). As mudanças sociais e a
incapacidade dos governos em desenvolverem políticas públicas que
assegurem a ordem pública, aliam-se à falta de uma reestruturação das
instituições policiais, sem a qual torna-se inviável a "oxigenação" de
seus quadros; a mudança de uma mentalidade militarizada, conservadora,
restrita e pesada, para um pensamento aberto, moderno, holístico e
ágil; e da efetiva modernização de suas práticas, atentando para a
cientificidade, para a legalidade e para a humanidade.
Assim,
percebe-se o desencontro entre os avanços sociais rumo ao pleno
estabelecimento e solidificação do Estado Democrático de Direito e as
ações de segurança pública, com a permanência na estrutura da polícia
de uma cultura instituciona que ainda privilegia a violência e a
conduta truculenta, como elementos de negociação com outras categorias.
3. O Processo de Mudança nas Instituições Policiais
As
transformações sociais ocorridas no Brasil ao longo dos últimos 20 anos
e, mais efetivamente, os avanços alcançados pela criminalidade, têm
conduzido a Polícia, forçosamente, a revisar seus conceitos e práticas.
O
renascimento da democracia na sociedade brasileira, com a difusão da
idéia de cidadania e dos princípios de Direitos Humanos, fazendo com
que o povo não aceite mais uma ação policial autoritária, caracterizada
pela truculência, pelo arbítrio, pela subserviência e pelo preconceito.
Ainda que de uma forma tímida entre as classes menos favorecidas, a
consciência relativa à questão dos direitos fundamentais e dos
problemas sociais, mormente, da segurança, ganha corpo e faz com que as
pessoas cobrem do poder público e das instituições policiais uma nova
postura, mais eficiência, eficácia e efetividade. Evidenciaram-se,
portanto, "a aparente incompatibilidade entre as necessidades de
segurança das camadas médias, altas e elites, e as necessidades de
segurança da população mais pobre" (Silva, 1990, p. 21). Logo, viu-se a
urgência de compatibilizar-se o trabalho policial com as carências de
segurança das camadas menos favorecidas, partindo, em um primeiro
momento, para a minimização dos conflitos até então existentes entre
povo e polícia.
Assim, as pressões populares e a necessidade do
Estado de oferecer uma resposta adequada quanto à prevenção e à
repressão de condutas e atos criminosos, oferecendo àquelas categorias
maiores e melhores condições de segurança, bem como, níveis mais
satisfatórios no que tange ao esclarecimento de fatos delituosos e
contravencionais, conduziram as autoridades à busca de um novo modelo
de Polícia que viesse de encontro a essas expectativas. Desta feita,
dois processos fundamentais foram desencadeados no âmbito das polícias
estaduais brasileiras. O primeiro, as parcerias entre a Academia e as
instituições policiais e, o segundo, a difusão do conceito de polícia
comunitária como a mais moderna e ideal concepção de polícia no
atendimento às demandas de segurança pública da sociedade brasileira.
a. A parceria entre a Academia e as Polícias
O
desenvolvimento de parcerias entre universidades, institutos de
pesquisa, organizações não-governamentais e as polícias, através de
convênios, foi uma a iniciativa, mormente da sociedade, em especial, da
Academia e de alguns policiais estudiosos da profissão.
Mostrando-se
bastante férteis e promissoras quanto as opções que apontam e pelas
consideráveis mudanças qualitativas que podem proporcionar nas
organizações policiais, visam, essencialmente, um trabalho conjunto no
desenvolvimento de atividades pedagógicas, com a definição de conteúdos
programáticos, o redimensionamento da formação, do aperfeiçoamento e da
especialização de policiais, bem como, inserção de novos valores
técnicos, morais e, principalmente atitudinais, junto aos integrantes
dos órgãos de segurança pública, "pela inserção de atores externos ao
trabalho policial" (Sapori, 2001, p. 1).
Ainda que essas relações
sejam pautadas pela desconfiança mútua e um clima de animosidade,
recorrente ao período de arbítrio vigente no país a partir de 1964,
pouco a pouco, surgem elementos conciliadores no cerne das instituições
parceiras, o que tem contribuído para um arrefecimento desses conflitos
e possibilita o estabelecimento de uma convivência harmoniosa e
profícua que tem como seus principais benefícios:
1) o aprimoramento
técnico-profissional e cultural dos quadros policiais, com a aquisição
e o desenvolvimento de novos conhecimentos e valores, possibilitando
uma ação mais eficiente, eficaz e efetiva;
2) a abertura de novas
frentes de pesquisa científica que permitam a compreensão dos fenômenos
sociais vinculados à manifestação da violência e da criminalidade e,
por conseguinte, o estudo de ações que contribuam para sua minimização
e controle;
3) a permanente permuta de experiências, informações e
conhecimentos contribuindo para a melhoria e ampliação dos serviços
prestados à sociedade, além da efetivação de novos serviços que
contribuam para a melhoria das condições de segurança pública;
4) a
efetiva participação da Academia e dos centros de pesquisa, não apenas
como centros de produção de saber, mas como difusores e participantes
do processo de desenvolvimento e de melhoria da qualidade de vida do
cidadão, na área da segurança;
5) o oferecimento de um serviço de
segurança que goza do aprimoramento técnico-científico, sem descurar
das questões afetas à cidadania, do respeito aos direitos fundamentais
e da administração de conflitos.
Todavia, embora esse processo
apresente-se como essencial na consolidação de uma política de
segurança formatada dentro de padrões democráticos e, como afirma
Sapori, "viabilizando mecanismos de transparência das organizações
policiais" (Sapori, 2001, p. 5), é importante que se identifiquem os
impactos institucionais que provoca. Ainda que as motivações sejam
nobres e que a maioria das instituições concordem quanto à urgência na
promoção de mudanças conceituais e estruturais no âmbito da polícia,
não se pode limitar tais mudanças, meramente à adoção de novos
processos pedagógicos e conteúdos programáticos, mesmo considerando que
a Educação seja a grande ferramenta para as transformações que se
pretende. obter. Portanto, cinco medidas podem ser vistas como
importantes para identificar que impactos tais parcerias podem provocar
no âmbito das instituições envolvidas:
a. O desenvolvimento de
estudos referentes à cultura institucional, com referencial nos
processos sociais que contribuíram para sua construção, na história,
nos valores, nas crenças, nos símbolos e nos mitos institucionais;
b.
A determinação de modelos e parâmetros desejáveis para as organizações
policiais, bem como, seu nível de articulação sócio-política e
envolvimento nas relações sociais e na administração de conflitos
dentro das diversas comunidades nas quais irão atuar;
c. O
estabelecimento de uma metodologia que ordene de forma lógica e
produtiva o conjunto de ações a serem desencadeadas tanto na efetivação
das mudanças desejadas, quanto na análise dos resultados obtidos e
impactos causados por essas ações e medidas decorrentes;
d. A
elaboração de indicadores, com respectivos métodos de coleta de dados,
representação e análise, que viabilizem mensurar os impactos
institucionais variados;
e. A formação de equipes multidisciplinares
e inter-institucionais que realizem a análise dos dados coletados,
produzindo documentação relativa aos impactos institucionais,
principalmente, no tocante às transformações culturais ocorridas, às
práticas decorrentes dessas transformações e às consequências para a
sociedade em geral.
A adoção dessas medidas concorrerá para um
aprimoramento das parcerias, minimizando algumas falhas que se tem
percebido atualmente. Em primeiro lugar, a incipiência das ações quando
se voltam para os níveis básicos da hierarquia policial. E isso tem
provocado algumas sérias dificuldades na almejada comunitarização da
polícia, sendo, portanto, necessário dedicar maior atenção aos cursos
de formação, iniciais nas carreiras da Polícia. Em segundo lugar, a
exacerbada preocupação em difundir-se valores e visões de mundo, sem um
conteúdo mais prático quanto aos métodos operacionais de trabalho. Há
uma tentativa de mudança cultural (o que requer outras mudanças de
maior profundidade e com maior lapso temporal), muitas vezes em
detrimento de novas metodologias operacionais, que podem favorecer a
assimilação de novos valores e parâmetros atitudinais, até pelos
resultados apresentados na prática policial cotidiana. As
transformações culturais não podem, desta feita, transcorrer de forma
dissociada de ações práticas que, efetivamente, sirvam como
catalizadores a provocar reações como o despertamento, a reflexão e a
necessidade da mudança.
b. Polícia Comunitária: um novo paradigma de policiamento
A
partir dos anos 1970, policiais e membros da Academia começaram a
produção de considerável número de obras enfocando a reforma da polícia
e colocando o tema "policiamento comunitário" ou "policiamento para a
solução de problemas"[6]
como a grande temática nas discussões sobre a reforma da polícia e,
como esclarece Broudeur, "um novo paradigma de policiamento" (Brodeur,
2002, p. 9).
O conceito de policiamento comunitário, "cresceu a
partir da concepção de que a polícia poderia responder de modo sensível
e apropriado aos cidadãos e às comunidades" (Skolnick & Baykey,
2002; p. 57), todavia, a idéia "revolucionária" na visão policial
brasileira contemporânea, teve suas raízes com Arthur Woods, que no
período de 1914 a 1919, exerceu o cargo de Comissário de Polícia de
Nova Iorque. Woods, sugeriu em uma série de conferências na
Universidade de Yale a idéia de "incutir nas camadas rasas do
policiamento uma percepção da importância social, da dignidade e do
valor público do trabalho policial" (ibid). Para Woods, o
esclarecimento do público quanto às complexidades, às dificuldades e o
significado dos deveres pertinentes ao policial, beneficiaria a
Instituição, angariando um maior respeito pela função policial e com a
consequente disposição em recompensar o desempenho policial eficaz e
consciente. Embora não caiba nos limites deste artigo registrar suas
ações práticas à frente do Departamento de Polícia de Nova Iorque, vale
ressaltar que seu trabalho revestiu-se de profundo dinamismo, sendo
recheado de iniciativas que revolucionaram a forma de policiar à época,
envolvendo uma preocupação direta em atrair a cooperação da comunidade
no trabalho policial e em atacar problemas que se tornavam geradores de
violência e criminalidade.
A década de 1960 foi crucial para a
compreensão de que a polícia deveria sofrer reformas. Nos Estados
Unidos, este período extremamente conturbado, provocou um tremendo
impacto sobre as forças policiais, conforme escreveu Wilson ao
registrar que "tudo começou por volta de 1963 (...) aquele foi o ano,
dramatizando um pouco, em que uma década começou a entrar em colapso"
(Wilson, 1983, p. 5). Alguns dos estudos e relatórios realizados pelo
governo americano, principalmente, o Report of the National Advisory
Commision on Civil Disorders[7],
conhecido como relatório da Comissão Kerner, de março de 1968,
detectaram que dentre as principais causas dos conflitos ocorridos no
período, em especial, os de ordem racial, encontrava-se o esgarçamento
das relações entre a polícia e os negros e outras minorias. Foi visto
ainda pela Comissão, que esse desgaste das relações, que levava ao ódio
da polícia e ao conflito, funcionava como um símbolo de problemas
maiores inseridos no bojo da sociedade como, por exemplo, o papel
social dos negros, o sistema de policiamento e a justiça criminal[8].
Dentre as práticas policiais criticadas de forma mais intensa, a
principal foi a execução de um patrulhamento preventivo agressivo, com
abordagens ao cidadão de forma indiscriminada, acompanhadas de
expressões de suspeição, menosprezo e, até mesmo, escárnio,
principalmente, nos distritos de alta criminalidade. Essas áreas, em
geral, não recebiam um atendimento policial de qualidade. Verifica-se a
similaridade entre a situação nas áreas menos favorecidas das cidades
norte-americanas e a crise que a polícia daquele país enfrentava, com o
quadro existente em diversas de nossas principais cidades.
As duas
décadas seguintes, demonstraram que o problema não era restrito aos
Estados Unidos, todavia preocupava Chefes de Polícia em outras partes
do mundo, dado o aumento na manifestação da violência, mormente nos
espaços urbanos, conforme visto na primeira parte deste artigo. Os
altos índices de criminalidade levaram governos, organizações
policiais, universidades, centros de pesquisa e outras instituições a
desenvolverem estudos, pesquisas, produzirem relatórios e uma
diversidade de trabalhos, dos quais podem-se destacar algumas das
principais constatações efetuadas e plenamente aplicáveis à polícia
brasileira:
1º. Aumentar meramente o número de policiais ou o
orçamento dos departamentos policiais, não resulta, necessariamente, em
redução dos índices de criminalidade ou em aumento do número de crimes
elucidados.
2º. As rondas a pé, efetuadas de forma regular, produzem
muito mais efeito na redução do medo da população quanto ao crime, do
que o patrulhamento motorizado realizado de forma aleatória e ao acaso.
3º.
A intensificação do patrulhamento em determinada área geográfica reduz
os níveis de criminalidade nesse espaço, não por combater ou inibir as
principais causas que conduzem à prática delituosa, mas por deslocar o
crime para outras regiões.
4º. As investigações criminais têm baixo
nível de eficácia na elucidação dos delitos cometidos e informados à
polícia. A maioria dos casos nos quais a polícia tem alcançado sucesso,
só conseguem ser solucionados através da prisão em flagrante dos
criminosos ou da colaboração dos integrantes da comunidade, pelo
fornecimento de um nome, um endereço, traços identitários, placas e
descrição de veículos, entre outros detalhes e vestígios muitas vezes,
insignificantes para os leigos.
Nessa ótica, percebe-se a
importância da aproximação e fortalecimento do binômio polícia-cidadão.
Deve-se observar que, enquanto a polícia detém o conhecimento técnico,
tático e estratégico para o controle da criminalidade, a comunidade
sabe onde residem os problemas de segurança mais evidentes em seu
espaço geográfico e que lhe provocam a sensação de intranquilidade,
além de um inimaginável número de informações acerca das peculiaridades
que formam o complexo quadro sócio-cultural de suas relações cotidianas.
Esperar
que a polícia sozinha controle a criminalidade é uma inconsequência. A
participação da comunidade é essencial para o equacionamento e solução
dos problemas afetos à segurança pública. O funcionamento do sistema de
segurança e, mesmo, da Justiça Criminal, demanda que os cidadãos
vitimados apresentem suas queixas, que as testemunhas relatem os fatos
delituosos que presenciaram ou têm conhecimento, que as pessoas tragam
informações, que a população, por meio de Ong's e/ou outras entidades
representativas, acompanhem os casos e cobrem das autoridades
competentes as providências que forem necessárias à sua solução e que
se integrem ao esforço público de combate à violência e aos programas
de prevenção do crime.
CONCLUSÃO
O entretecimento de uma
aliança entre a polícia e as comunidades é uma tarefa árdua que tem na
historicidade dos conflitos entre a destinação legal e factual das
unidades policiais brasileiras, no descompasso entre os avanços
sócio-políticos da sociedade e a cultura policial tupiniquim e a mútua
desconfiança entre as instituições de segurança pública e,
principalmente, as camadas menos favorecidas da população. Além disso,
os processos de fragmentação e exclusão social a que se vêem submetidas
as categorias mais populares, aliados à corrosão e transformação das
principais instituições sociais (Família, Igreja, Estado, Empresa e
Escola), comprometem valores éticos, espirituais, sociais e cívicos que
funcionavam como referenciais, normatizadores da conduta do cidadão,
oferecendo substancial contribuição para o crescimento da violência e
da criminalidade.
Em um tempo em que profundas mudanças se anunciam
à sociedade brasileira, questões como violência e criminalidade puntuam
as agendas de discussões nos meios político, acadêmico, social e na
cúpula das instituições policiais. É indiscutível a necessidade de
reformas estruturais, operacionais e, principalmente,
filosófico-culturais, no cerne das polícias brasileiras. Entretanto,
diante de tantas iniciativas e programas (projetados, em
desenvolvimento e implantados) os quais têm recebido o qualitativo de
"policiamento comunitário", mostra-se crucial que se respondam alguns
questionamentos básicos como: que papéis polícia e povo devem exercer,
no contexto da segurança pública, dentro do novo modelo social que se
pretende para o Brasil? Que modelo a polícia deve estabelecer como
parâmetro para o cumprimento desse papel? Que mudanças (e em que níveis
e ordenamento) devem ocorrer nas organizações policiais brasileiras a
fim de que assemelhem-se a esse modelo? Como buscar uma maior
aproximação e colaboração dos cidadãos no propósito do estabelecimento
de um novo sistema policial e de segurança pública ?
Quem sabe, por
intermédio dessas respostas, a sociedade brasileira consiga definir
modelos que atendam ao necessário processo de comunitarização da
polícia, que sejam adequados à variedade cultural de nossos espaços
sociais e que ofereçam níveis mais satisfatórios de segurança pública,
pela minimização da violência e pelo controle da criminalidade.
_____________
[1] Violência, do latim violentia, uma derivação de vis (força, vigor, emprego de força física).
[2]
Segundo a análise de Ianni, "uma sociedade global no sentido de que
compreende relações processos e estruturas sociais, econômicas e
culturais, ainda que operando de modo desigual e contraditório (...)
trata-se de uma totalidade histórico-social diversa, abrangente,
complexa, heterogênea e contraditória, em escala desconhecida. Esse é o
horizonte no qual se desenvolvem a interdependência, a integração e a
dinamização, bem como as desigualdades, as tensões e os antagonismos
característicos da sociedade mundial(...) aí se fundem o
desenvolvimento
desigual e combinado e a não-contemporaneidade, em distintas gradações.
São diversidades, heterogeneidades e contrariedades mescladas em amplas
proporções." (Ianni, 1992, 39, 51, 179)
[3]
Essas novas organizações societárias e lógicas de pensamento, são
decorrentes do processo de globalização e fazem-se representar pelas
transversalidades na produção da organização social, como por exemplo,
as relações entre grupos culturais, relações raciais, relações de
gênero e entre regimes disciplinares, ultrapassando o sentido de classe
social (Santos: 1999).
[4] Constituição Federal, art. 144, § 6º.
[5]
Verifica-se neste ponto, a manifestação dos casos em que ocorrem a ação
de grupos de justiceiros e as mortes, invariavelmente desnecessárias,
cometidas por policiais em suas intervenções. V. FERNANDES, Heloísa
Rodrigues. Violência e modos de vida: os "justiceiros". Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, 4(1-2): 43-52, 1992; BARCELLOS, Caco. Rota 66: a
história da polícia que mata. São Paulo: Globo, 1992; DIMENSTEIN,
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Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 67-97.
[6]
As expressões "policiamento comunitário" e "policiamento para a solução
de problemas" foram empregadas pela primeira vez no ano de 1973, em um
relatório confeccionado por Sherman, Milton & Kelly, denominado
"Team Policing: Seven Case Studeies", publicado pela Police Foundation
de Washington D.C. (ver BRODEUR, Jean-Paul. Como reconhecer um bom
policiamento: problemas e temas. Tradução Ana Luísa Amêndola Pinheiro.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. (Série: Polícia
e Sociedade; 4)
[7] Relatório da Comissão Consultiva Nacional sobre Desobediências Civis.
[8] Ver Skolnick & Bayley, 2002, p. 61.
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