A velha que ressuscitou

Por Henrique Araújo | 31/05/2009 | Literatura

A VELHA QUE RESSUSCITOU

 

        Era criança, eu me lembro. Foi pelos idos de 1960. A cidade era Rosário Oeste nos confins de Mato Grosso. Morávamos na rua da Barra, por ser perto do ribeirão.

          Gostava muito do lugar, pois o rio era perto e havia muitos peixes e na floresta muitos pássaros. Eu gostava de caçar e pescar. Estava como eu queria. Também não era pra menos, para um homem de sete anos de idade.

          Bem perto de nossa casa, morava o seu Malaquias. Ele tinha um bando de filhas. Todas mulheres. A mais velha chamava-se Jadinir e a segunda mais velha: Jadir. Eu gostava mais da Jadinir, não que ela fosse tão boazinha, é que ela era a mais bonita. Tinha 21 anos de idade. Eu tinha 7 e achei que só ela servia para mim.

          De vez em quando eu ia para a casa da Jadinir, quase sempre na hora do almoço. Como ela sabia preparar um pirão de peixe! Após a pança cheia, ia para a casa do Ireno jogar bolitas. Não é pra me gavar não, mas eu era bom naquilo.

          A vida ia assim, de vento em popa. Não era rico, confesso, mas eu não precisava de coisa melhor.

          Nessa mesma rua morava uma velha, mas velha mesmo. Não tinha nenhum parente. Todos diziam que quando chegaram ali, aquela velha já morava lá. Nunca ninguém soube de onde era. Uns falavam que tinha 105 anos de idade, outros diziam que ela era mãe do diabo, mas o que todos falavam mesmo é que ela era riquíssima e que os baús dela estavam todos abarrotados de ouro.

          Fiquei impressionado com aquilo. Eu era pobre e me contentava com qualquer coisa, mas uns quilinhos de ouro não fazem mal a ninguém, de modo que fiquei de olho na velha( como quase todos da rua), assim que ela morresse eu iria lá também, tomar conta dela, quem sabe me sobraria algum ourinho.

          A velha só andava de bengala. Sua voz era fraca, como se estivesse sempre rouca. Quase não saía de casa. Era corcunda, mas tão corcunda que andava arcada para a frente. Apesar de tão velha, sua casa estava sempre bem arrumadinha. Andava com uns vestidões, porém bem cuidados. Recebia bem todos que lhe procuravam, mas só na sala. Isso despertava a curiosidade nos vizinhos, de modo que cada uma dizia uma coisa.

          O tempo foi passando e a velha vivendo sempre, mais e mais. O povo já dizia que “aquilo não morria”, mas como todo mortal, um dia fez um frio danado e a porta da casa da velha não se abriu. Todos desconfiaram de alguma coisa, pois ela abria a porta todos os dias. Lá pelo finalzinho da tarde seu Malaquias bateu na porta, mas o silêncio foi geral. Após muito bater e chamar e não obter resposta, arrombou a porta e entrou. Lá estava a velha morta, mortinha. O rebuliço foi geral. Logo apareceram lampiões para iluminar a sala, uns trataram de fazer a mortalha, outros trouxeram velas, alguém se preparou para comprar um caixão. Umas senhoras trataram de banhar a velha, alguém arrumou a mesa. Lá pelas seis horas trouxeram a velha para a mesa. Que dificuldades para ajeitar essa velha. Como ela era corcunda, de todo jeito que lhe arrumavam, ficava desajeitada. Se se ajeitava a velha da cintura para baixo, a mulher ficava sentada, se se ajeitava da cintura para cima, ela ficava com as pernas para cima. E ficou nesse lenga lenga por algum tempo, quando lhe abaixava a cabeça,  ela  erguia  as  pernas, quando lhe abaixavam as pernas, ela erguia a cabeça. Viraram então a velha de bruço. A coisa piorou, pois a velha ficou com o bumbum para cima.

          Depois de algum tempo alguém teve uma idéia - uma idéia brilhante. Pregaram quatro pregões na mesa. Em cada canto um. Em seguida amarraram os dois pés da velha nos pregos de baixo e os braços da velha nos pregos de cima. Esticaram tanto  a velha que os ossos estralaram. Foi um sufoco danado, mas encontraram a solução. Acenderam duas velas e puseram uma em cada um lado do braço e duas embaixo, em cada lado dos pés.

          Todos passaram a rezar bastante, muita gente chorava. Todos, porém com interesse na riqueza dela. A casa estava lotada de gente, minha família não estava lá, mas eu permanecia quieto num canto, vendo toda aquela lamentação fajuta. Na verdade eu pensava em pegar um ourinho da velha também.

          O relógio deu meia-noite. As velas estavam no fim. A maioria das pessoas conversavam e contavam estorinhas típicas de velório. Eu estava no canto, distraído e meio sonolento. E não se sabe por qual arte do diabo, mas pegou fogo nas cordas que amarravam os braços da velha nos pregos. As cordas arrebentaram-se imediatamente os músculos da velha se contraíram e ela ficou sentadinha em cima da mesa. Foi um corre-corre dos diabos. Ninguém ficou na casa dela, só se via negro correndo pela porta da frente, pelos fundos, pela janela. Teve gente que atravessou o ribeirão sem ver, outros ficaram espetados no arame farpado do quintal com a roupa em frangalhos, uns erraram até o caminho de casa. Eu, quando dei por mim, estava debaixo da coberta, tremendo que só taquara verde. Esqueci até o ourinho da velha. Só se ouvia gente gritando na rua: a velha ressuscitou, ressuscitou. Outros diziam: eu não falei que essa velha era a mãe do Cão? E outros: quem é que quer o ouro dela agora?

          Seu Malaquias, que era um homem corajoso, voltou lá meia hora depois. A velha continuava sentada na mesa. Estava morta, mortinha. Tinha ressuscitado coisa nenhuma. Arrumaram a velha no caixão que mandou buscar na funerária. Tapou bem tapado e esperou o dia amanhercer.

          No outro dia às seis horas eu já estava de pé. Tomei um lanche. Minha família já sabia do ocorrido. Saí para a porta da frente e fui chegando devagarinho à casa da velha, meio com medo ainda. Da porta da frente eu vi o caixão lá dentro. Fui devagarinho e perguntei a seu Malaquias:

          - Ela... ela está morta?

          - Está bem morta.

          Entrei na sala. Sentei-me e fiquei lá até a hora que levaram o caixão. Seu Malaquias ficou encarregado de distribuir tudo o que a velha tinha. Foi um alvoroço danado, era baú sendo revirado, colchão rasgado, guarda-roupa destruído, penteadeira fuçada, nada. Ninguém achou nada de valor. A velha não tinha coisíssima nenhuma a não ser um monte de roupa velha. Foi uma decepção geral para o povo da rua. É bem possível que a velha lá no outro mundo desse boas gargalhadas ao ver aquele bando de imbecis a procura da herança dela.

 

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