A VELHA QUE ENTERREI VIVA

Por Henrique Araújo | 04/06/2009 | Literatura

Dizem que até o diabo tem medo de guri, não por ele ser ruim, trapaceiro, brigão ou coisa assim. É que ele apronta cada uma que você fica a pensar...

Fui guri e por isso posso falar em defesa própria. Lembro-me bem que aprontava cada uma pior que a outra. Nesse tempo meu pai possuía uma fazenda: dez alqueires. Fazenda de pobre é quintal de rico, mas os pobres se sentem fazendeiros e batem papo assim mesmo.

Em nosso sítio, porém havia muito movimento, muito trabalho, muita luta, por isso havia também muitos serviçais.

Tínhamos um engenho que movimentava muitos animais e muita gente para dar conta do recado. Precisávamos dar conta do melado e das rapaduras da cidade.

Havia também um pasto e umas cabeças de gado de onde tirávamos o devido sustento e plantávamos mamão e milho para o tratamento dos porcos, de modo que a nossa vida não era nada moleza, mas de muita luta e sacrifício. Eu, tinha já uma certa idade, porém não possuía nenhuma instrução, pois sempre vivera no campo.

Um dia meu pai me mandou ir a um sítio vizinho buscar empresado um arreio, visto que o nosso estava extremamente estragado. Isto foi lá pelas sete horas da manhã. Prestativo, que não sabia negar nada, imediatamente fui. No caminho encontrei outros gurizolas e passamos o tempo brincando no campo, peloteando passarinhos e pescando lambaris na grota que havia lá. quando me lembrei de buscar o arreio, já era tarde, por isso saí correndo feito louco e fui direto para a casa do vizinho. Como já era muito tarde, ele obrigou-me a jantar na casa dele. E para comer, ninguém me convidava duas vezes. Na segunda vez já estava com o prato na mão. Ainda mais sendo comida na casa dos outros, prato diferente, gostoso. Dizem que a pessoa com a pança cheia esquece 50% dos problemas. Foi o que aconteceu comigo, só que esqueci de 100%. Comecei a brincar com a gurizada dele e com as meninas também. quando me lembrei novamente da tarefa, já estava escurecendo. Peguei o arreio e saí meio apressado, mas deu um temporal enorme no meio do caminho. Corri muito, não entrei em casa alguma. Foi o pior azar, pois arreio de couro já meio velho, não pode tomar chuva. Cheguei em casa com o arreio mole, encharcado, dilindo. Só não apanhei porque eu também estava todo ensopado e tremendo de frio. Fizeram-me tomar um banho com água bem quente, deram-me alguns remédios amargos e me passaram um tremendo sermão após terem sabido de todo o ocorrido.

No outro dia o velho foi à casa do vizinho saber o preço do arreio para pagá-lo, pois acabou jogando foram o outro. O vizinho não cobrou nada, o que foi a minha salvação.

As coisas voltaram ao normal no sítio. Continuei trabalhando com os serviçais, fazendo um servicinho aqui, outro acolá, porém gostava mesmo era de andar à toa, sem fazer nada, coisa da idade.

E foi assim que um dia meu pai precisou de mim novamente. Faltaram alguns empregados lá em casainclusive dona Alzira, nossa empregada doméstica. Como havia muito serviço e pouca gente, o velho pediu que eu fosse buscar a velha. Prazeirosamente me dispus a ir. Quando eu ia saindo ele me disse:

- Estou até o pescoço de serviço, agora você vai e me enterra a velha...

Saí correndo para a casa de dona Alzira, embora achasse meio estranho aquela fala do velho: enterrar a velha... Matutei a cabeça de tudo quanto foi jeito. Como é que eu ia enterrar a velha, dona Alzira? Sentei à beira do caminho, pensei e repensei e não conseguia descobrir porque ele dissera aquilo. Fui caminhando devagar, muito pensativo. Eu sozinho não daria conta. A velha não era brava, mas era um pouco forte. Fui à casa de uns amigos, contei a eles o fato. Acharam muito esquisito, mas quando o velho falava lá no sítio, ninguém discutia, do contrário ele mandava todo mundo ir embora.

Arrumamos umas boas cordas e fomos à casa da velha. Fizemos com que ela nos acompanhasse. No caminho derrubamos a velha, amarramos os pés e as mãos. Como gritava aquela velha e esperneava e bufava de raiva e gritava e perguntava o que iríamos fazer com ela. Ninguém dizia nada. Cavamos um buraco enorme, colocamos a velha e a enterramos. Deixamos somente a cabeça da velha do lado de fora. Fizemos questão de socar bem para a velha não sair. Coitada, além de amarrados os pés e as mãos, ainda enterrada. Queria ver como sair dali.

Sinceramente achamos estranho tudo aquilo, mas ordem é ordem, não se discute. Tem que ser cumprida. Fomos embora tranqüilamente. A velha ficou lá resmungando e pedindo por todos os santos que a retirássemos de lá. O meu único receio é que aparecesse por ali alguma cobra faminta e comesse a cabeça da velha.

Lá pelas 6 horas da tarde cheguei em casa. Como se nada tivesse acontecido, fui direto ao banheiro, tomei um banho. Estava cansado. O dia fora árduo, muito serviço. Quando ia saindo do banheiro meu pai perguntou:

- E a dona Alzira, por que não trouxe ela?

- Dona Alzira? O senhor não mandou enterrar ela?E completei: está enterrada.

Meu pai pulou lá no telhado:

- Valei-me, minha nossa senhora do Dilúvio! O que é que este menino fez? Eu mandei você enterrar a mulher?

- O senhor disse quando eu ia saindo: "Agora você vai lá e me enterra a velha". Foi o que eu fiz. E deu um trabalho danado.

Foi um alvoroço enorme em casa. Imediatamente ele chamou outras pessoas, pegou a pá, picareta e enxadão.

- Matou a velha, este canalha - disse ele - estou arrasado. Mando o filho buscar a empregada e esta peste vai lá e dá cabo da mulher.

- Morreu não, pai - deixamos a cabeça dela de fora - respondi.

- Ah! Graças a Deus. Vamos lá logo, seu peste. É provável que tenha morrido sim.

Corremos o mais que pudemos. Estava escuro, mas ainda vimos a cabeça da velha chorando e xingando de tudo quanto era nome. Em 10 minutos retiramos a velha. Nem se mexia. Claro, estava amarrada.

- Este seu filho aí queria me matar, seu Zé. Que guri mais ruim! Se ele me enterra a cabeça, uma hora desta eu estava morta. E disse que foi o senhor quem mandou. O senhor vai ter que se explicar com meu marido.

- Eu não mandei nada, dona Alzira. Ele é que é desastrado mesmo. Mandei buscar a senhora para me ajudar, pois tinha muito serviço na fazenda hoje. Mas não tem problema não. Vou pagar um mês inteiro para a senhora tirar férias.

- Queria me dar férias permanente, né?

Foi um sacrifício botar as coisas em ordem, pois a velha não aceitava desculpas. Depois de um certo tempo as coisas foram voltando ao normal.

Agora meu pai toma muito cuidado quando vai pedir um favor a alguém, prefere escrever um bilhete. Assim ele tem-se livrado dos vexames, também os outros.