A USUCAPIÃO FAMILIAR À LUZ DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO...

Por Helma Janny Barros Guimarães | 17/03/2017 | Direito

A USUCAPIÃO FAMILIAR À LUZ DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: A LEI 12.424/2011 E SEUS ASPECTOS (IN)CONSTITUCIONAIS

Helma Janny Barros Guimarães

USUCAPIÃO FAMILIAR E A CONSTITUIÇÃO: ASPECTOS DE VALIDADE DA LEI E A EMENDA CONSTITUCIONAL 66/2010

 A lei 12.424/11 introduziu uma nova figura ao instituto da usucapião no Código Civil Brasileiro, dentro das espécies de usucapião urbana, chamada de Usucapião Pró- Moradia, a qual vem recebendo a denominação de Usucapião Familiar. Esta nova modalidade inseriu no Código Civil o art. 1240-A e seu §1º:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

  • 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. (CC, art. 1240-A)

Assim como os demais casos da usucapião espacial urbana, deve-se atentar para o fato de que a propriedade não pode exceder os 250m², além de que o possuidor só usufrui deste benefício se já não tiver outro imóvel, e apenas uma vez. De acordo com Tartuce (2014), a principal novidade é a redução do prazo para exíguos 2 (dois) anos, o que torna esta categoria aquela com o menor prazo previsto, entre todas as modalidades de usucapião. Ainda segundo o referido autor, a tendência pós-moderna é a de diminuição de prazos, tendo em vista que isto possibilita a tomada de decisões com maior rapidez.

             É necessário observar que a usucapião familiar foi criada com o intuito de proteger aquele que depois de abandonado pelo cônjuge, permaneceu no imóvel. Entretanto, ainda assim, esta nova modalidade traz consigo muitos questionamentos e dúvidas a respeito de sua constitucionalidade.

       De acordo com Farias; Rosenvald (2014), há um requisito inédito na usucapião Pró-familia, qual seja, o abandono do lar por parte de um dos cônjuges. E é justamente este requisito um dos mais polêmicos do dispositivo, isto porque a EC 66/2010 optou por revogar todas as disposições contidas infraconstitucionais alusivas à separação bem como suas causas. Com a nova redação conferida ao art. 226 da CF, §6º, afirmando que: “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”, foram superados os casos estabelecidos anteriormente para o divórcio, além de acolher o princípio da ruptura em detrimento da culpa, preservando a vida privada do casal. (FARIAS; ROSELVALD. 2014).

       Um dos principais dissensos é o uso do termo “abandono do lar”, no qual se entende que aquele que “abandonou” é o culpado pela dissolução matrimonial, fazendo ressurgir a questão da imputação moral pelo fim do relacionamento. Salienta-se ainda que, em virtude da aplicação dessa norma, estaria ferido o Princípio da Igualdade, conforme artigo 5º, I, e artigo 226, §5º da Constituição Federal, já que um dos consortes, em detrimento do outro, estaria sendo mais beneficiado, gerando a desigualdade patrimonial entre ambos.

       Afirma Silva (2012) que no que tange à segurança jurídica, a confiança no pacto antenupcial e no regime de bens, deixa de existir, vez que aplicando a referida norma, os consortes apressarão a partilha dos bens com receio de perderem patrimônio, e, não obstante, encurtarão o prazo de reflexão necessário entre a separação fática e a judicial, causando a antecipação dos atos, e distanciamento de uma possível reconciliação. Observa-se que vai muito além do que previa o espírito do legislador, pois entende-se que, ao invés de simplificar algumas situações, como por exemplo, o domínio do imóvel pelo consorte que foi “abandonado”, criará um impasse, como dito anteriormente, no que tange a partilha de bens, ou ainda, estará penalizando um dos consortes com a perda da propriedade em virtude da suposta “culpa”.

       A princípio, o novo artigo pode ser visto como algo bom, vez que não deixa desamparado o consorte ou companheiro que foi “abandonado”, adquirindo assim a fração da propriedade que seria daquele que o “abandonou”. Contudo, tal dispositivo merece ser visto com ressalvas. No que tange ao abandono do lar, cabe ressaltar que, no caso em tela, é a chave mestra para a aquisição da meação do cônjuge que cometeu o ato supracitado.

       Segundo o artigo 1.573, IV do Código Civil, designa-se o abandono, também, como uma das causas que inviabiliza a convivência do casal: “Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos: IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo;”

       Importante esclarecer que, o abandono ao qual se refere o dispositivo, deve ser voluntário, caracterizando infração nos deveres conjugais ou da união estável, portanto, embora não esteja expressamente previsto, supõe-se, por extensão, que o abandono que justifica a pretensão de usucapião em comento, citado no artigo 1.240-A do Código Civil, deverá ser voluntário e injustificado; “(...) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral (...)”.

       Há, contudo, a interpretação do abandono do lar como alusão à culpa pela dissolução do relacionamento matrimonial. Após anos de críticas, a culpa foi extinta dos litígios familiares, por meio da Emenda Constitucional 66/10, que deu nova redação ao § 6º do art. 226 do Constituição Federal; “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”, trazendo como interpretação que “a única ação dissolutória do casamento é o divórcio que não mais exige a indicação da causa de pedir. Eventuais controvérsias referentes a causa, culpa ou prazos deixam de integrar o objeto da demanda” ( BERENICE DIAS, 2010).

       Boa parte da doutrina não aceita mais o indicativo de culpa no direito de família, inclusive quanto aos reflexos patrimoniais, conforme Gagliano (2010):

Obviamente que, com o fim do instituto da separação, desaparecem também tais causas objetivas e subjetivas para a dissolução da sociedade conjugal. Expendidas todas essas importantes considerações retornamos à nossa premissa: em caso de separação judicial (possível antes da Emenda) ou de divórcio, a dissolução do patrimônio conjugal dar-se-á segundo as regras do regime de bens aplicável, independentemente de quem haja sido a “culpa” do fim do casamento. 

       No entanto, algo ainda perturba neste quesito, pois, juridicamente não se exclui mais os direitos do consorte com causa na culpa, mas agora, com a inserção do artigo 1.240-A no ordenamento brasileiro, possivelmente, voltará o julgamento pela imputação moral para decisão do direito material. É preocupante, pois se trata de um retrocesso jurídico.

       Outro ponto importante, trata-se da extensão do litígio conjugal, vez que novamente será buscada a culpa pelo fim do relacionamento, com o intuito da aquisição integral da propriedade, acirrando as contendas entre os cônjuges e companheiros, sendo que o novo dispositivo supõe o abandono por um dos consortes e este deverá ser provado por quem ficar no imóvel, tornando essas batalhas judiciais mais turbulentas. (GODINHO, 2011).

       É certo que as partes ficarão numa situação de degradação moral, vez que, com o medo de perder a propriedade, se submeterão a ferir sua liberdade e intimidade, não saindo do lar após o término do casamento. Mas há algo preocupante na interpretação das palavras “culpa” e “abandono”, pois, se pensar que uma mulher é agredida e acaba por “abandonar” seu lar para deixar de sofrer a violência, não existe “culpa” em sua atitude, a qual se deu por motivo de segurança à sua integridade física. Passados os dois anos sem impugnar sobre a posse, caberia ao agressor que ficou no imóvel, a propriedade, afastando assim, o direito de meação da violentada. (SILVA, 2012).

       Desta forma observa-se a incompatibilidade da lei 12.424 quando confrontada com a EC 66/2010, o que gera insegurança jurídica ao ordenamento jurpidico. E conforme ensina Dias 2010, a verdade é uma só: a única forma de dissolução do casamento é o divórcio, eis que o instituto da separação foi banido - e em boa hora - do sistema jurídico pátrio. Qualquer outra conclusão transformaria a alteração em letra morta.

        Importante crítica ainda é feita em relação ao prazo de afastamento do lar como causa da perda da propriedade. Para tanto faz-se necessário analisar o dispositivo em questão em conjunto com o art. 5º da CF , segundo o qual ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal, pois a complexidade das relações familiares não permite efeitos tão fortes pelo simples decurso do tempo. Veja-se, por exemplo, que esse período de dois anos pode ser o prazo no qual as partes estão definindo se devem dar mais uma chance  ao relacionamento ou devem por fim ao mesmo. (WESENDONCK, 2012).

   Esse é um período em que muitos casais separados de fato ainda não tomaram nenhuma medida quanto à definição da partilha de bens porque estão elaborando a idéia de separação

ou reconciliação. E por conta disso não se pode considerar que o período de indecisão possa reverter na conclusão de abandono da posse, sem que exista um ato voluntário dirigido a tal fim.

       Outro ponto é a recolocação do que quesito da culpa, pois o dispositivo estabelece esta como requisito para determinados reflexos patrimoniais, matéria que foi praticamente sepultada com as inovações legislativas pelas quais passou o Direito de Família. De fato, considerar abandono do lar como fato juridicamente relevante pode conduzir à retomada de um significado que fora esvaziado ao não mais se colocar a culpa em papel central. A interpretação da lei deve considerar que em algumas situações a saída do lar se dá por outras razões que não têm relação com o abandono da posse (requisito que seria essencial para a contagem de prazo de usucapião de bem comum). Um exemplo a ser refletido é o caso do cônjuge, em geral a mulher, que sai do lar conjugal com o intuito de preservar a sua segurança física. A partir da nova lei, a mulher que sofre violência doméstica poderá sentir-se obrigada a permanecer no lar, até que o Poder Judiciário determine a retirada do lar do marido ou companheiro, para evitar que o prazo que ela fique fora do lar conjugal conte para fins de usucapião (e aí pode acontecer que a sua segurança física ou a sua própria vida

sofram com a espera de uma decisão judicial de afastamento do lar que pode nem mesmo vir).

       Também é interessante refletir sobre os casos em que há separação de fato e os cônjuges ainda não deliberaram sobre a partilha dos bens, porque há uma chance de reconciliação, como já referido acima. Pode também que se chegue a conclusão de ser a partilha do bem prejudicial para a família, decidindo-se, então, que um dos cônjuges ou companheiro irá sair do lar.

        Conforme aduz Wesendonck (2012), a solução que a lei traz em si, o reconhecimento de usucapião entre cônjuges, é uma solução que se mostra viável e necessária em determinados casos. Porém, a forma como se incluiu o reconhecimento de usucapião entre cônjuges ou companheiros no Código Civil de 2002 pode representar grande retrocesso ao Direito de Família se interpretada em seu sentido literal ou segundo a vontade do legislador, por reacender a discussão a respeito de assuntos que em boa hora foram sepultados como a noção de culpa na dissolução de vínculos e os seus reflexos para o Direito Patrimonial de Família.

       A intenção da lei é diferente da intenção do legislador, razão pela qual pode-se certamente dizer que o sentido do ordenamento jurídico não é o de interferir na tomada das decisões que são tão pessoais dos cônjuges e dos companheiros como a dissolução do vínculo.(TARTUCE , 2014). Caso contrário, as pessoas que forem se separar não poderão mais deixar a casa onde vivem, pois correrão o risco de serem punidas com a perda da propriedade em um prazo muito exíguo.Também é preciso mencionar, que a lei pode ser usada de maneira oportunista para àqueles casos em que ela sabidamente não teria interesse em tutelar, no que se refere aos imóveis de elevado valor. Como a Lei tem origem no programa minha casa minha vida e tenta limitar a metragem do imóvel, ao que tudo indica quer benificiar pessoas de baixa renda, mas isso não fica claro na lei.

       Além disso, não é demasiado considerar que pela redação da lei, outras situações em que mereceriam o reconhecimento de usucapião ficariam a descoberto, dependendo de posição

doutrinária e jurisprudencial, como os casos de imóvel rural, ou de imóvel de baixo valor, mas acima de 250m², ou mesmo de bens que não se enquadrem em nenhuma das situações de usucapião especial, mas que mereceriam a viabilidade do reconhecimento da aquisição da propriedade pela usucapião, tendo em vista o abandono da posse. (GODINHO, 2014).

       Por isso, talvez a melhor orientação fosse, simplesmente, determinar que a separação de fato põe fim aos efeitos patrimoniais do casamento da sua data iniciando a fluência do prazo para usucapião, respeitados os requisitos legais das diversas formas, desta figura, tudo estando restrito aos casos em que, concomitantemente à separação de fato ocorresse o abandono da posse dos bens daquele que se retira do lar, conjugadamente com o exercício exclusivo da posse pelo outro indivíduo que permanece na posse dos bens. (WESENDONCK, 2012.)

       Assim, estariam resolvidos alguns dos problemas espinhosos do Direito de Família, sem que se ressuscitassem velhos fantasmas que já não podem mais encontrar lugar na sociedade brasileira. 

 CONCLUSÃO

       A melhores das intenções do legislador nem sempre são suficientes para criar boas leis. Por isso, a intenção do legislador não é parâmetro para interpretação das leis. Esse é o caso da Lei 12.424/11, que embora tivesse por interesse proteger segmento frágil da sociedade, tramitou em caráter de urgência, foi produto de conversão de Medida Provisória em Lei e talvez por isso não contou com debate adequado da comunidade jurídica para evitar os problemas técnicos de sua redação que precisarão ser enfrentados para uma adequada aplicação. O artigo 1.240-A do CC/02 está eivado de inconstitucionalidade, por trazer em seu texto incompatibilidade com a CF/88, quando da lesão aos princípios e preceitos norteadores do ordenamento jurídico pátrio.

       Nota-se que até mesmo a própria denominação do termo utilizado para definição da nova modalidade de usucapião já é objeto de repulsa nos meios acadêmicos, pois o termo abandono de lar é uma figura ultrapassada no Direito de Família, tendo em vista que a discussão a respeito da existência ou não da culpa para rompimento de vínculos matrimoniais ou de uniões estáveis passou a ser irrelevante e até mesmo repudiada no cenário atual, já que a doutrina comemorava fervorosamente o fato das mudanças no Direito de Família terem eliminado a aferição de culpa como requisito para a atribuição de qualquer efeito jurídico, no que concerne à dissolução do vínculo conjugal, na concessão de alimentos e na partilha de bens.

Assim, deve se utilizar a interpretação sistemática Direito para interpretar o art. 1240- A do Código Civil, com a finalidade de não comprometer a evolução do ordenamento. O dispositivo deve ser adequado aos princípios vigorantes no Direito de Família. 

REFERÊNCIAS

 DIAS, Maria Berenice. EC 66/10 - e agora? Disponível em:< http://arpen-sp.jusbrasil.com.br/noticias/2287526/artigo-ec-66-10-e-agora-por-maria-berenice-dias>. Acesso em: 01 out, 2014.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos reais. v.5 10ª ed. Salvador: Juspodivm, 2014.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O novo divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010

GODINHO, Adriano Marteleto. A nova modalidade de usucapião prevista pelo art. 1.240-A do Código Civil. Disponível em: . Acesso em 28 set, 2014.

SILVA, Cláudia Regina Fernandes da. A usucapião familiar e suas consequências no direito de família, 2012. Disponível em: . Acesso em: 02 out, 2014.

TARTUCE, Flávio. Direito das coisas. Vol.4. 6.ed. São Paulo: método, 2014.

WESENDONCK, Tula. Usucapião familiar: uma forma de solução de conflitos no direito de família ou (re)criação de outros?.RIDB, Ano 1 (2012), nº 1.