A unidade de efeito proposta por Edgar Allan Poe em " A causa secreta", de ...
Por Edvarde Mateus Lima Ornelas | 27/09/2016 | LiteraturaA unidade de efeito proposta por Edgar Allan Poe em " A causa secreta", de Machado de Assis.
O conto é um tipo de obra que em toda a história humana já foi demasiadamente explorado. Isso gerou mudanças estruturais significativas decorrentes da usualidade costumeira dessa modalidade literária. Antes, era proferido oralmente. Mais tarde, com o avanço da cultura escrita, foi adaptado e registrado nos papéis, foi quando passaram a disseminar-se com mais facilidade, propiciado também, dentro outros fatores, pelas traduções. As mudanças não foram restritas à veiculação, mas também relacionadas a mudanças no elemento estético, definindo-se, com o avanço da crítica literária, como ponto crucial para o desenvolvimento da narrativa. A estrutura, a temática e a composição com o tempo foram se refinando, até que chegou-se a concepção do conto moderno.
O conto literário moderno suprimiu o modo tradicional quando introduziu novas perspectivas estilísticas a esta influente modalidade literária. Uma vez que o modo moderno de se escrever baseia-se na fragmentação da narrativa, fazendo com que a então vigência dos eixos fixos e encadeados dos fatos fossem substituídos pela narrativa fragmentada, assemelhando-se, assim como afirma Nadia Battella, a uma estrutura invertebrada.
Sob esse patamar, situamos certas obras como “A causa secreta” de Machado de Assis. Neste conto, logo nas primeiras linhas, a suspensão do tempo é realizada de maneira inteligentíssima. Ele quebra a linearidade dos fatos, remontando de maneira atemporal os acontecimentos passados a partir de seu tempo presente. Nas páginas que sequenciam o conto, Machado consegue criar um elo, reatando sua narrativa no ponto exato em que suspende a progressão inicial dos fatos. No momento em que Fortunato, Garcia e Maria Luisa estão em silêncio na mesa de jantar, justapostos tais quais nas linhas que inauguram o conto, é quando o autor dá continuidade à história em seu próprio tempo, no presente. Estabelecendo uma ideia de continuidade, que fora suprimida anteriormente, pela história secundária, da qual Machado afirma ser inerente para o entendimento pelo leitor da completude da trama.
Falar da suspensão temporal tal como acontece neste conto, implica dizer que o autor, hipoteticamente, já teria em mente o desfecho da trama. Neste ponto entramos nas questões levantadas por Edgar Allan Poe, poeta e crítico literário norte americano de muito renome. Poe, em sua obra intitulada Filosofia da composição, comenta, dentre outros aspectos composicionais, à importância de um conto ser bem arquitetado. Poe, analisando as obras pequenas, define que um bom escritor deve ter em mente o desfecho de sua obra para eliminar pontos vagos que usualmente encontramos em diversos contos, e para estabelecer o tão importante efeito poético dentro da obra. Escrever, para Poe, implica que o autor seja extremamente consciente de cada palavra que constitui seu texto. Vemos isso em muitas obras machadianas, onde nada, absolutamente nada, é escrito em vão. Machado, em suas produções, cria uma atmosfera bastante convidativa, pois sabe como situar o leitor de maneira bastante confortável. Fazendo com que os elementos textuais que meticulosamente utilizou, confluam futuramente para o clímax, fazendo com que ocorra um insight no leitor, que atônito com o desfecho, vê o porquê do que foi escrito anteriormente.
A unidade de efeito, proposta por E. A. Poe origina-se a partir de uma série de elementos textuais que vão desde o tamanho da obra até no tipo de gênero empregado. Em uma obra grande, como num romance, o escritor consegue criar diferentes efeitos devido à amplitude deste. Em obras pequenas, as que leem-se em uma assentada, o autor deve enxergar sua obra como um todo, com um desfecho predeterminado, por que somente desta forma, segundo Poe, é que este autor conseguirá despertar efeitos significativos no leitor. As obras pequenas evocam questões concernentes a sua duração e ao efeito que reside neste curto período. Uma leitura atenta e sem interrupções, pressupõe maior elevação no grau de intensidade do efeito poético do que em uma obra extensa. Visto que em um romance a divisão da leitura, além de aceitável é extremamente normal. A questão aqui está relacionada justamente às pausas feitas na leitura de determinada obra, pois as interrupções interferem no efeito que seria proposto primordialmente pelo autor.
Em A causa secreta o efeito proposto por Machado é sequencial, pois o encadeamento de certas cenas vão aos poucos montando um mosaico que constituirá, posteriormente o perfil psicológico de Fortunato. Machado de Assis de maneira bastante pitoresca dosa o efeito poético como forma de fazer um arranjo para um final de exímia estranheza, despertando diferentes impressões no leitor, que lê pasmo com a satisfação de Fortunato diante de situações peculiares. Isso possibilita, nas linhas finais, o ápice do “efeito” e do sadismo, na cena embaraçosa proporcionada por Garcia aos prantos sobre a mulher de Fortunato.
Sob a luz da perspectiva geral da teoria do conto, e paralelo à prerrogativa dos “efeitos” proposta por E. A. Poe, temos a teoria de A.Tchekhov, que se assemelha bastante ao que Poe propôs sobre a unidade de efeito. Para Tchekhov, o acontecimento é um dos fundamentos mais sólidos dos quais um texto pode possuir para despertar um real interesse por parte do leitor. Em A causa secreta temos uma sucessão de fatos que confluem para o genuíno acontecimento no desfecho. Fortunato aos poucos é desvendado pelo narrador, e este, veste-se, certas vezes de maneira imparcial, pendendo para o lado de Garcia, quando narra as atrocidades realizadas por Fortunato em seu laboratório. “Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer […]”. Não temos neste conto um narrador onisciente puramente neutro, pois existem mínimos resquícios que fazem com que este narrador, em momentos oportunos, se posicione sob determinado lado da história. Convergir para o lado de Garcia, faz com que o peso da narrativa sobrecaia nos ombros de Fortunato, fazendo com que alguns dos breves acontecimentos que sucedem a trama, sejam exclusivamente direcionados à estranheza de Garcia e de Maria Luisa perante as atrocidades do Médico.
Como dito acima, Machado de Assis não emprega palavras à toa, o que faz com que o próprio título do conto — A causa secreta — desempenhe uma função de sentido dentro de toda a semântica da obra. De cara, o leitor já se encontra intrigado apenas por ler o título. A curiosidade humana foi sabiamente explorada quando a palavra “secreta” despertou inúmeros questionamentos a respeito do que estaria por vir. E com a sucessão dos fatos, Machado cria um “efeito” gigantesco ao chocar o leitor com a crueldade de Fortunato ao torturar o rato. Nesta parte, é possível fazer uma profunda análise psicológica deste frio personagem, que aos poucos vai sendo desvendado por esse curioso narrador. O fato do rato se assemelhar bastante com certos aspectos biológicos e anatômicos às do humano, cria um sentimento de medo e ao mesmo tempo repulsa do leitor com este personagem. É dessa forma que a narrativa prossegue, expondo cada vez mais Fortunato, até que o leitor desembarca na cena do velório, mostrando, finalmente, o que o leitor atento já presumia, que a causa secreta de Fortunato reside justamente no prazer de assistir a dor alheia, no sadismo.
Este conto integra uma das obras primas da literatura mundial. Uma obra de exímia genialidade, possibilitando a exposição da construção psicológica de um indivíduo extremamente sádico, desvelando as mais diversas facetas humanas. E isso tudo em um período tão conturbado tal como foram os anos que precederam a abolição da escravatura e a democracia brasileira. Machado de Assis também foi inteligente pelo entendimento do ser humano com um ser plural de grande potencial, mas que possui seus medos e fraquezas, sendo essas a causa de muitas problemáticas individuais que assolavam, e continuam assolando toda a engrenagem psíquica humana.