A UNIÃO HOMOAFETIVA COM BASE NA ADPF 132

Por Larissa Lima Linhares | 10/02/2015 | Direito

A UNIÃO HOMOAFETIVA COM BASE NA ADPF 132

RESUMO

O presente trabalho trata sobre a família homoafetiva, abordando o modelo da família brasileira ao longo do tempo, bem como a sua evolução no contexto social. Ao longo dos séculos, o modelo familiar foi deixando de ser formado por homem, mulher e filhos. Novos arranjos foram formados, sendo reconhecidos como a base da sociedade, conforme nossa Constituição Federal. Diante disso, foi imprescindível que o direito se amoldasse a tais mudanças, a fim de atender aos anseios de uma sociedade que almeja pelo reconhecimento destes novos modelos. Com base nisso, estudaremos a união entre pessoas do mesmo sexo, que é uma nova entidade familiar protegida constitucionalmente, pois estas preenchem os pré-requisitos e afetividade e estabilidade, possuindo finalidade de formar família. A homossexualidade representa um fato na sociedade, pois sempre existiu, no entanto, tais relações, foram marginalizadas e alvo de omissão legislativa. Desta forma, com a inexistência de normas expressas que amoldem ao tema, foi necessário que o Supremo Tribunal Federal solucionasse e regulamentasse o assunto com base nos princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade. Com o avanço da sociedade, a família de pessoas do mesmo sexo foi ganhando seu espaço

Palavras-chave: Familia Homoafetiva; Entidade Familiar; União Estável Homoafetiva; Arranjos Familiares.

FAMÍLIA

O conceito de família é uma questão complexa, visto que é mutável no espaço e no tempo. A família nos dias atuais é totalmente diferente de como era vista no século passado. O modelo de estrutura familiar brasileiro inspira-se no modelo Romano.

Com a elevação do cristianismo em Roma, os costumes passaram unicamente a girar em torno do matrimônio. Mesmo com o catolicismo impregnado na sociedade, a estrutura patriarcal ainda permaneceu. A igreja católica na época do Cristianismo, era detentora dos poderes e impôs sua regra na sociedade, onde o casamento seria celebrado por ato religioso.  A finalidade do casamento, até então indissolúvel, era a procriação. Após a ascensão do cristianismo, passou a existir também o casamento civil.

Pelo Relato de Aline Kazuko e Sandro Marcos:

Posteriormente, ao lado do casamento religioso, ato formador de uma família segundo a igreja católica, surgiu o casamento civil através da reforma protestante liderada por Lutero, já que para ele não só a celebração religiosa era capaz de iniciar uma família. Sobreveio então, a Revolução Industrial, que acabou abolindo o Sistema patriarcal, já que mulheres e crianças começaram a contribuir na economia doméstica, ganhando lugar dentro da família.[1]

No século passado, o homem era o chefe e o papel da mulher era de ser dona de casa, educando sua prole. A estrutura familiar ao longo dos séculos sofreu modificações, pois houve uma modernização no seio familiar. A família romana tinha bases religiosas, sendo lideradas pela figura do pater famílias. Na família patriarcal, a mulher era totalmente submissa ao marido, e seu único papel no seio familiar era na educação dos filhos não emancipados. O pai, que detinha o pátrio poder, estava encarregado de ser o chefe da família e o responsável na organização familiar. Assim, tantos os filhos, como a mulher ficavam a mercê do marido. O pater-familias[2] com o passar do tempo foi deixando de ser absoluto.

Dessa maneira, com o início da Revolução Industrial, houve a transformação de sociedade rural, onde predominava a família patriarcal, para uma sociedade de bases industriais. Foi na Revolução que o patriarcalismo ocidental foi se abolindo. César Fiuza aduz que:

O golpe crucial é desferido pela Revolução industrial. Que tem início já no século XVII. Com ela, a mulher se insere no mercado de trabalho, e a revolução da família começa. O golpe fatal ocorre nos idos de 1960, com a chamada Revolução Sexual, em que a mulher reclama, de uma vez por todas, posição de igualdade perante o homem. Reclama, enfim, um lugar ao sol. É também a Revolução Sexual que põe em xeque os padrões morais da sociedade ocidental.[3]

O código civil de 1916 regulamentava apenas o casamento, que tinha um modelo patriarcal.

O citado código admitia apenas o casamento civil como elemento de formação da família, muito embora existissem já doutrinas e jurisprudência e até leis especiais  sobre a união estável. De forma bem arcaica, o código civil da época regulamentava o instituto do casamento de maneira indissolúvel e a única maneira de se confinar os vínculos matrimoniais era com o desquite, o qual não acabava com o vínculo conjugal, além de vetar um novo casamento e também não existir regulamentação sobre filhos advindos de relações extraconjugais. As referências feitas aos vínculos extramatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam exclusivamente para excluir direitos, numa vã tentativa de preservação do casamento.[4]

Pelo relato de Keith Diana da Silva

A princípio, a sociedade só aceitava a família constituída pelo matrimônio sendo que, a lei apenas tratava sobre o casamento, relações de filiação e o parentesco; todavia devido à constante mutação do seio familiar, e tendo em vista que cabe ao Estado, o dever jurídico constitucional de implementar as medidas necessárias para a constituição e desenvolvimento das famílias, surgiu ao longo da história humana o reconhecimento de relações extramatrimoniais.[5]

O antigo Código não reconhecia as relações extramatrimoniais. Nosso legislador se omitiu em regular esse tema visando a preservação da família. O concubinato era proibido. Contudo, nos dias atuais se reconhece e encontrar-se previsto no art. 1.727 do Código Civil[6] vigente. Podemos entender que, de acordo com a evolução na forma como as pessoas se relacionam na sociedade, houve uma modificação na lei.

Com a revolução sexual no final da década de 60, cresceu o número de separações e divórcios, a religião foi perdendo a sua força não mais conseguindo manter a relação conjugal. Após o ingresso feminino no mercado de trabalho, o cuidado que elas tinham com a casa e com as crianças foi diminuindo e nesse contexto, o homem foi se adaptando e assumindo tarefas antes vistas como tipicamente femininas. Com o avanço da sociedade, a família contemporânea foi tendo seu espaço na sociedade. Homem e mulher revezam papéis, sendo o lar sustentado pelo casal.

Percebe-se que a Carta Magna trouxe inovações na área familiar de acordo com essa nova estrutura familiar. Na Constituição Federal de 1988, o Direito de Família foi criando espaço, em que se percebe que com o avanço da sociedade, se estendeu o conceito de família.

O alargamento de conceito de família para além do casamento acabou permitindo o reconhecimento de outras entidades familiares[7].

Nas lições de Ana Carla Harmatiuk Matos

A família é uma formação social e com a sociedade se transforma no tempo. Numa intepretação literal, já percebemos o grande avanço conquistado com nossa atual Constituição. Porem, as inovações não se resumem às expressões impressas no texto. Numa interpretação teleológica, nossa Lei Maior está a informar a necessidade de o direito de família abrir-se à sua plural possibilidade, estando as duas novas entidades familiares expressamente tratadas a exemplificar o novo modelo. Por isso, cabe aqui uma alerta: se adotada uma interpretação restrita dos comandos constitucionais, pode-se chegar a uma compreensão em nosso entender equivocada, segundo a qual a pluralidade de família se restringe ao rol elencado pela Constituição.[8]

Percebe-se que a nossa Lei Maior desconstruiu esse modelo conservador. A Constituição Federal de 1988 abriu espaço para as formas de famílias, já considerando célula familiar a união estável, família monoparental e o casamento. Com essa nova visão, a família não é somente aquela formada pelo casamento. De acordo com Rolf Madaleno, com a promulgação da Carta Magna, houve três mudanças essenciais na forma de pensamento, quais sejam, o da família plural, com várias formas de constituição (casamento, união estável e a monoparentalidade familiar); a igualdade no enfoque jurídico da filiação, antes eivada de preconceitos; e a consagração do princípio da igualdade entre homens e mulheres.[9]

Dessa maneira, contrário ao código de 1916, com a promulgação da Constituição, o legislador deu proteção à família, porém não determina o que seria considerado família. Fala no casamento, e igualmente não o conceitua.[10] No que tange à união estável, só comenta que poderá ser convertida em casamento e com relação à monoparentalidade, explica que se entende, também, como entidade familiar[11]

Pela trajetória desde os costumes do Ocidente até os dias atuais, percebemos que houve significativas mudanças no conceito de família e no próprio direito.

Nessa linha, Luciano Marcelo Dias:

o conceito de família ao longo dos anos mudou seu objeto, passando de uma entidade institucionalizada e estritamente matrimonial, de procriação e economia básica (transmissão de patrimônio e circulação de riquezas), para uma entidade instrumental, que visa o alcance da felicidade por seus indivíduos, representada esta felicidade, pela realização profissional, econômica e pessoal, pautando-se, para tanto, na isonomia e na dignidade da pessoa humana.[12]

Podemos perceber que a família nos dias atuais está pautada principalmente no afeto.

As significativas mudanças no contexto histórico desde o modelo de família tradicional até o advento da constituição federal obtiveram uma vastidão de mudanças e formas do que seria uma família, seja no contexto político, econômico e social.

Pensar em família, na opinião de muitos, ainda é aquela ideia de um casamento entre homem e mulher com um ou mais filhos, vivendo sob o mesmo teto. Na verdade, esse conceito se alargou, não mais sendo entidade familiar somente o casamento. O alargamento conceitual das relações interpessoais acabou deitando reflexos na conformação da família, que não possui mais um significado singular.[13]

A nossa Lei Maior nos trouxe mais duas formas, que foi a união estável e a família monoparental. Mas, o fato é que existe uma diversidade de tipos que iremos discorrer para se ter uma noção geral.

ARRANJOS FAMILIARES

O alargamento de conceito de família para além do casamento acabou permitindo o reconhecimento de outras entidades familiares[14]

Patricia Matos Amatto Rodrigues preleciona:

Para se viver em dignidade, deve ser respeitado o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas, segundo sua peculiar forma de ser. Não se pode excluir uma pessoa do sistema jurídico tutelador das consequências da afetividade, como é o Direito de Familia, em razão de sua orientação sexual, a qual é constituidora de sua personalidade, sendo elemento essencial do seu ser. Como fundamento primário das uniões homoafetivas, tem-se o afeto, da mesma forma como em qualquer outra entidade familiar. Por isso, não é crível, nem admissível, que lhes seja negada a caracterização como entidade familiar. Da constituição federal extraem-se fundamentos que justificam tal assertiva.’’[15]

De acordo com Maria Berenice Dias e Rolf Madaleno, além das entidades familiares trazidas com a Promulgação da nossa Constituição, ainda se tem mais 5 tipos de arranjos familiares, onde conceituamos quais sejam: família anaparental, reconstituída, paralela, eudemonista e por fim, objeto do nosso estudo, a família homoafetiva.

A família anaparental é encontrada quando há a afetividade entre parentes consanguíneos ou não, estando juntos com o ânimo de estável vinculação familiar. Trata-se de um tipo familiar bem simbólico, pois poderá ser composta apenas por irmãos que moram juntos, quando os ascendentes não forem falecidos. Percebe-se que nesse arranjo familiar não há a presença do genitor, mas somente de membros que tem alguma afinidade.

Na família reconstituída pode ser entendida por um conjunto de pessoas com filhos unidas por um vínculo afetivo a outrem que um dia já foram casadas. É também conhecida como entidade familiar reconstituída ou plurilateral, onde pode ser composta por individuos que se divorciam e constituindo, respectivamente, outra união estável, podendo os mesmos se casarem ou não. Essa união de pessoas divorciadas ou mesmo que viviam em união estável é chamada de família pluriparental, mosaica ou reconstituída. Segundo Maria Berenice Dias:

‘’Agora surge a expressão famílias pluriparentais ou mosaico, que resultam da pluralidade das relações parentais, especialmente fomentadas pelo divórcio, pela separação, pelo recasamento, seguidos das famílias matrimoniais e das desuniões. A multiplicidade de vínculos, a ambigüidade dos compromissos e a interdependência, ao caracterizarem a família-mosaico, conduzem para melhor compreensão desta modelagem’’.[16]

Na cultura brasileira, a bigamia é crime. É o que diz o art. 235 do Código Penal Brasileiro: ‘’ Contrair alguém, sendo casado, novo casamento: pena - reclusão, de dois a seis anos²’’. O art. 1521, inciso IV do Código Civil aponta no capítulo referente aos impedimentos que não é possível realizar o casamento entre pessoas que são casadas.

No entanto, existem uniões paralelas que são toleradas dentro da nossa sociedade. Mas percebe-se que só é possível o desenvolvimento delas agindo dentro do princípio da boa-fé. A frequência tem sido cada vez maior de decisões judiciais reconhecendo direito frente a essas uniões denominadas concubinato. Não é de hoje que existe o concubinato, e não deixa esse de ser um arranjo familiar denominado de paralelo. Embora o art. 1723, §2° diz que não é considerada união estável a pessoa casada. Na visão de Rolf Madaleno diz que:

‘’presente o afeto, na atualidade os julgamentos admitem soberanamente, sacrificar os bens da esposa que ingressam na partilha em divisão por três, mesmo quando demonstrado que o varão nunca se afastará da mulher e dos filhos havidos de seu casamento. Arrestos concluíram que a mulher e a concubina aceitaram o concubinato, criando-se uma situação anômala, tornando-se estável a relação adulterina e não furtiva, portanto irregular, e merecendo ser judicialmente agasalhada para colocar a companheira no mesmo patamar da esposa.’’[17]

Portanto, a família paralela seria aquela definida como uma relação adulterina de união estável paralela ao casamento.

A família eudemonista nas palavras de Rolf Madaleno seria:

Aquele núcleo familiar que procura a felicidade individual e vive um processo de emancipação de seus membros. O direito de família não mais se restringe aos valores destacados de ser e ter, porque, ao menos entre nós, desde o advento da carta política de 1988 prevalece a busca e o direito pela conquista da felicidade a partir da afetividade.[18]

A família Eudemonista é pode ser entendida como a convivência com indivíduos unidas por laços afetivos e solidariedade recíproca, como por exemplo é o caso de amigos que vivem juntos na mesma residência, onde os mesmos dividem os gastos, compartilhando alegrias e tristezas, como se irmãos fossem. Esse é o motivo que muitos de muitos juristas, pois entendem que pela natureza, são considerados como formadores de mais um núcleo familiar. Esse novo arranjo familiar envolve uma parte afetiva, que ganhou a nomenclatura de família eudemonista, que busca a felicidade individual, onde vivem um processo de emancipação de seus pais. A possibilidade de buscar formas de concretização individual e uma recompensa profissional é a maneira que as pessoas encontram de viver, convertendo-se em indivíduos socialmente úteis.

UNIÃO HOMOAFETIVA

A Constituição Federal trouxe um rol exemplificativo dos arranjos familiares. A família constitucionalizada encontra-se no caput do art. 226, onde dá espaço para o matrimônio, união estável e a família monoparental. A Lei Maior exemplifica essas espécies familiares sem, entretanto, colocar barreiras a outras entidades familiares. A prole advinda da união entre homem e mulher não constitui fundamento para que qualquer relacionamento não seja reconhecido legalmente. Esse requisito da prole não é justificativa para deixar na marginalização a família homoafetiva, visto que homossexuais podem ter prole, adotados ou por reprodução assistida. Dessa maneira, não existe um texto normativo que proíba o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A legislação omite, porém não tem uma norma que proíba, ou que fale que a família homoafetiva não constitui forma entidade familiar. Quando a lei não cita um fato, estamos diante de uma lacuna normativa que pode ser preenchida por analogia ou até mesmo por interpretação extensiva. O afeto é o elemento principal para a caracterização de qualquer arranjo familiar e é ele que une os indivíduo, sendo portanto, dignos de proteção estatal. A carência de normas expressas e o silêncio da Magna Carta não impedem que casal de gays vivam como se casados fossem.

Até as relações homoafetivas serem reconhecidas pela decisão histórica do STF na ADPF 132 e a Adin 4.277, muita coisa aconteceu, pois o único jeito que os LGBTT’s encontraram formas de garantias foi recorrendo ao judiciário.

No campo do direito, antes da ADIN 4.277 e ADPF 132 do STF, da qual falaremos a seguir, um dos pressupostos necessários para caracterizar a união estável era a diversidade de sexos. Não se pode dizer ser inquestionável à luz da Constituição Federal a união de pessoas do mesmo sexo, pois é uma característica inerente da personalidade humana, que merece o devido respeito por todos, devendo ser justa e livre, preservando o princípio constitucional basilar que é o da dignidade da pessoa humana.

Nossa Lei Maior trata do direito à vida, à liberdade, à integridade, promovendo o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação. É o que diz o art. 5º.  Cada indivíduo busca a felicidade afetiva, e o legislador não pode se omitir frente a isso, visto que o mesmo deve ser imparcial quanto a orientação sexual. Assim, ninguém deve sofrer qualquer proibição ou algum tipo de constrangimento motivado por preconceito, inclusive de gênero. Uniões homoafetivas constituem uma realidade inegável inserida na sociedade, que não podem ser ignorada.

A ADI n. 4.277, tendo como parte autora a Procuradoria-Geral da República (PGR), foi protocolada como ADPF n. 178, onde assegura o reconhecimento da união homoafetiva como um arranjo familiar, desde que preenchidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre o homem e a mulher, bem como a expansão, aos companheiros homossexuais, de iguais direitos e deveres presentes nas uniões estáveis heterossexuais. A PGR requereu que a demanda fosse distribuída por dependência à ADPF n° 132, pois se tratava de questão conexa.

Com o julgamento histórico do Supremo Tribunal Federal da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, 132-RJ, com votação unanime, as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, ganharam respaldo jurídico, sendo reconhecidas e equiparadas a uniões estáveis heteroafetivas.

Senão vejamos:

Ementa:

1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação.

2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art.  da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própriaConstituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no § 3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas deconstituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do § 2º do art.  da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição.6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.

O ministro relator da ADPF citada acima, Ayres Britto, afirma que a orientação sexual de cada ser humano não pode ser usada como justificativa para excluir as cidadãs e cidadãos da proteção do Estado. Segundo o ministro, este diz que a preferencia sexual não pode ser fator de desigualação jurídica. O julgamento conferiu ao art. 1723 do Código Civil uma interpretação nos moldes constitucionais, onde afastou qualquer definição que fosse capaz de impedir o reconhecimento da união, pública e duradoura entre casais do mesmo sexo.

Tal decisão produziu eficácia erga omnes e efeito vinculante. Aliás, vários tribunais já passaram a acolher causas nesse sentido, admitindo a conversão das uniões estáveis homoafetivas em casamento. Diante do exposto, nenhum tribunal poderá alegar impossibilidade jurídica do pedido das demandas envolvendo a união homoafetiva, bem como, as ações deverão tramitar nas Varas de Família, sendo reconhecidas como união estável. Dessa maneira, direitos já conquistados, comentados anteriormente, não poderão ser negados, por exemplo, direito aos benefícios previdenciários, à adoção, herança, dentre outros.



[1]KAZUKO, Aline. A evolução da entidade familiar. Disponível no site http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1614/1538. Acesso em 15.09

[2] Termo latim que significa pai de família.

[3] FIUZA, César. Direito civil curso completo. 8ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6ª. ed. São Paulo:  Revista dos tribunais  2010.

[5] SILVA, Keith Diana da.  Família no direito civil brasileiro. Disponível no site http://www.fmr.edu.br/npi/045.pdf. Data do acesso 07.08.2014

[6] Art. 1.727, CC/02 diz: As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.

[7] DIAS, Maria Berenice. A evolução da família e seus direitos, p.05. Disponivel no site http://www.mariaberenice.com.br/uploads/7_-_a_evolu%E7%E3o_da_fam%EDlia_e_seus_direitos.pdf. Data do acesso 19.10.2014

[8] MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Perspectiva civil-constitucional. 2ª ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais. 2011

[9] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família, 5ª ed, São Paulo: Editora Forense. 2013

[10] DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os direitos LGBTI, 6º ed, São Paulo: Revista dos Tribunais.  2014.

[11] CF, art. 226, parágrafo 4º. Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes.

[13] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6ª. ed. São Paulo:  Revista dos tribunais  2010.

[14] DIAS, Maria Berenice. A evolução da família e seus direitos. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/uploads/7_-_a_evolu%E7%E3o_da_fam%EDlia_e_seus_direitos.pdf. Acesso em 21.08

[15]RODRIGUES, Patrícia Matos Amatto. A nova concepção de família no ordenamento jurídico brasileiro, disponível no site:http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6792. Data do acesso em 21.08

[16]DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6ª. ed. São Paulo:  Revista dos tribunais  2010

[17] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família, 5ª ed, São Paulo: Editora Forense, 2013

[18] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família, 5ª ed, São Paulo: Editora Forense, 2013

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