A tridimensionalidade do direito e a crise do ordenamento jurídico
Por Airton Rodrigues Moreira | 22/07/2012 | DireitoA tridimensionalidade do direito e crise dos sistemas legais
Um dos temas jurídicos pouco enfrentados na literatura acadêmica ou em salas de aula nos cursos de Direito é a Tridimensionalidade do Direito. Se fato, valor e norma são elementos fundamentais da compreensão da experiência jurídica nos ordenamentos, porque não considerar que o Direito uma Ciência Tridimensional?.
Miguel Reale, cultor no Brasil do Direito Tridimensional, faleceu recentemente, e, muitos poucos juristas tentaram seguir adiante na compreensão da experiência jurídica a partir da Teoria Tridimensional, na sua tríade: fato, valor e norma.
O Direito é um produto da cultura, e possui o dinamismo da evolução humana em todos os sentidos e áreas, daí, estar sempre dicotomizado em duas partes: o estudo do ordenamento jurídico ou sistema jurídico de normas; e, através da Ciência do Direito, para explicar a variedade de conteúdo social e estudo da Jurisprudência.
Li, não faz muitos anos, um artigo de um professor Oliveiros Litrentos, da Universidade Estácio de Sá, que partindo da compreensão do Direito e experiência, propunha não um direito tridimensional, mas, pentadimensional, acrescentando aos conceitos de Reale, Espaço e Tempo.
Disto tratarei muito adiante neste trabalho, por enquanto, vou preferir analisar a teoria do ilustre mestre do nosso Direito, Reale, na visão de busca de um paradigma, que permita avançar sobre o sistema “Direito e Experiência”, suas lutas e meios de solução dos atuais conflitos, deixando de lado, o sistema puramente tradicionalista de solução por decisões judiciais muitas vezes afastadas da realidade das pessoas, a quem a norma se dirige.
Em sua obra clássica “Lições Preliminares de Direito”, edição de 2002, Reale traça uma relação de convivência entre a Ciência do Direito e a História, dizendo ali que embora sejam campos distintos do conhecimento humano, se reúnem sobre uma base única da experiência humana, e em síntese afirmava ali, que estudar o Direito era compreender os fundamentos dos fenômenos sociais, históricos-culturais e morais da sociedade e seus grupos, suas questões, sempre baseadas no fenômeno cultural que molda o modelo e sistemas de regras.
Sintetizou assim, o citado mestre: “Direito, significa, por conseguinte, tanto o ordenamento jurídico, ou seja, o sistema de normas ou regras jurídicas que traça aos homens determinadas formas de comportamento, conferindo-lhes possibilidades de agir, como o tipo de ciência que estuda a Ciência do Direito e a Jurisprudência” v. p. 62, ob. Cit.
O direito em sua evolução, diremos sempre, é produto primeiro dos elementos multiculturais de um povo, mas, em segundo lugar, produto da experiência vivida por esse mesmo povo.
Nesse caminhar pensou o jurista ARTEMIO ZANON, que afirmou : “Organizados, os homens se submetem ou são submetidos a regras de conduta, de responsabilidades – deveres e direitos - , regras providas de sanções mais ou menos efetivas visando assegurar um comportamento individual e coletivo: são as regras ou as normas éticas. Tais normas não são arbitrárias ou artificiais. São parâmetros seguidos da observação e da experiência e que visam regular a atividade humana”. V. p. 23, in Introdução à Ciência do Direito Penal, OAB-SC, 2ª. Ed. 2000.
E não adianta a arbitrariedade normativa, inspirada na falta de apoio social, moral e ético ou mesmo histórico, pois se assim o for, a norma pode não ter efetividade. Como dizia Maria Helena Diniz, escrevendo a respeito em uma de suas obras sobre o tema, que a falta de efetividade normativa dá-se pela resistência social à mesma, de forma que faltando-lhe respaldo social, por exemplo, ela não possui fundo prático ou aplicação. Todo conteúdo normativo necessita para a sua implementação no mundo jurídico de respaldo social sob pena de não ter efetividade.
Prova disso, quando a Constituição prefigurou a repartição dos lucros das empresas com seus empregados. O dilema aqui é a repartição dos lucros do capitalista com os trabalhadores, como fazer?
A regra constitucional é sempre extensiva, pela inaplicação em face a resistência de empresários e empregadores, surgiu a necessidade de interpretar o que viria a ser lucros para esse fim.
A saída foi entender possível a repartição daquilo que pudesse o empresário ou empregador abater na receita operacional junto ao Imposto de Renda, sua obrigatoriedade foi mitigada e sua conseqüência abrandada.
É o contexto social e cultural que manteve a norma acima destituída de respaldo moral para efetivar-se.
Outro exemplo, que pode servir de indicação de falta de força efetiva na aplicação da norma, é a resistência moral e cultural. Nós caímos de cara no chão com os princípios ensinados pelo jurista alemão Konrad Hesse, segundo que toda regra constitucional em si tem uma efetividade normativa própria.
Hesse contrariava o pensamento de Ferdinand La Salle, para quem a Constituição não passava de uma folha de papel, necessitando de uma força política para dar-lhe força efetiva.
No Brasil nosso de cada dia, temos o caso da lei Maria da Penha, criada a partir de um fato indicador de violência gratuita sobre contra as mulheres, e, tendo a sociedade o desejo de ver essa situação resolvida, assim reclamando o amparo de soluções reais e morais para impedir a continuidade dessa violência, é que os legisladores resolveram editar uma lei impondo punições aos maridos e parceiros, ou companheiros violentos, o que gerou a reação de não mais bater ou violentar, porém matar.
Ou seja, os agressores passaram a entender que já que teriam de ser punidos o seriam pela maior violência possível, os agressores contrapondo-se à lei, mandaram um recado, não adianta essa lei, agora vamos fazer o que sempre fizemos, e ao final, mataremos.
Embora, os tribunais digam que há o combate a essa violência, em várias situações pouco podem fazer para evitar o trágico desfecho, razão por que as medidas impositivas não deram ou não dão resultado satisfatório à sociedade e ao combate a essa violência. E sabe por quê? Porque o Direito Penal não tem base pedagógica para educar, apenas para punir.
Assim como os outros ramos do Direito, precisa de conteúdo social, moral e racional para indicar o caminhar no sentido correto da cultura de um povo.
A democracia ou o sistema de democracia normativa não serve de simples emblema, pois, não é suficiente explicar conflitos e alternar soluções reais, se não houver consenso e desejo de submissão.
Isto é assim, continuará como tal, pois nenhuma norma de alcance é discutida pelas comunidades e populações atingidas. As normas são criadas e aditadas ao sistema complexo de ordem jurídico onde há outro enfeixe de normas de variadas situações em contradição, ou reguladas por submissão e subjugamento, e algumas dessas situações e direitos são deixados de lado na prática.
O nosso STF ao julgar casos com base na proposta de razoabilidade e proporcionalidade pratica alguns absurdos que são pouco compreendidos, sujeitos a interpretações sobre o comportamento judicante do próprio Supremo, que, às vezes, apresenta o famoso fundamento da “Katchanga”, ou seja um decisionismo de “achados”.
Depois, não nos assiste ao brasileiro o direito de arena, e outros meios típicos de sistemas democráticos podem visualizar.
Então, porque isso é assim. Embora queiramos nos imaginar diferentes, não somos, por exemplo, dos nossos vizinhos hispânicos. Nosso sistema é legislado e puro, e os modelos são impostos de cima para baixo.
A nossa cultura é essa. Ibérica. Formalista. A nossa história é essa, porque o nosso mundo é esse.
Muitos dos que se voltam contra a teoria da tridimensionalidade do direito, imaginam apenas um sistema juspositivista hermético, a impor uma ordem ou situação jurídica onde as pessoas sofrem o influxo da predeterminação normativista. Mas não é isso.
Numa análise criteriosa, RONALD DWORKIN, revela-nos essa distância entre os positivistas e o dinamismo jurídico efetivo que se envolve nas reais condições morais, sociais, econômicas e até políticas nas sociedades modernas.
Diz esse autor, aduzindo a nova roupagem juspositivista dos seguidores de BENTHAM:
“A teoria dominante é contestada, por exemplo, por diversas formas de coletivismo. O positivismo jurídico pressupõe que o direito é criado por práticas sociais e decisões institucionais explícitas; rejeita a idéia mais obscura e romântica de que a legislação é produto de uma vontade geral ou da vontade de uma pessoa jurídica” – v. pág. 119, da obra Levando os direitos a sério, Martins Fontes ( editora).
Dworkim seguindo em sua análise, se posiciona sobre as decisões judiciais em si, dizendo: “O meu ponto de vista não é que o direito contenha um número fixo de padrões, alguns dos quais são regras e outros, princípios. Na verdade, quero opor-me à idéia de que o direito é um conjunto de padrões fixo de algum tipo”. – idem, idem.
Isto significa não um mundo jurídico estático, ou estaríamos negando o dinamismo afirmado, mas um direito dependente dos valores, cultura e condições sociais de um povo. As leis se determinam pela necessidade de encontrar um equilíbrio moral e ético, que possam enfeixar as situações muticulturais.
Mas, o Direito não é norma pura, mas um conhecimento humano que informa a necessidade de estruturação de uma realidade concreta, como aprendemos com Reale, linhas abaixo:
“ a) que toda interpretação é de natureza teleológica (finalística) fundada na consistência axiológica ( valores) do Direito; b) que toda interpretação jurídica dá-se numa estrutura de significações, ou seja, visa “penetrar nas suas significações particulares”, busca um fim próprio dos seus termos; e, c) que cada preceito significa algo situado no todo do ordenamento jurídico ( algo sistêmico).”
Trabalhando a questão da aplicação justa da lei, Reale, cuidadosamente exprime a necessidade de fundamento sociológico da regra, onde a aplicação hermenêutica deve levar em conta a finalidade social da lei, dizendo:
“se amenizam as condições esquemáticas da regra genérica, tendo em vista a necessidade de ajustá-la às particularidades que cercam certas hipóteses da vida social” v. pág. 295, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 1993, 20ª edição.
Na verdade, os puros positivistas são seguidores de esquemas legais, prontos, repassados, e muitas vezes repetidos em decisões judiciais, numa pura opressão ao destinatário da aplicação da justiça, seja para um benefício seja para sentenciar.
Os elementos ou fatores fato, valor e norma, não existem isoladamente, fazem parte e integram o processo cultural da experiência jurídica e humana. Eles funcionam reunidos como sistema integrado devido a realidade histórico-cultural que os determina.
Ora, explica-nos mais uma vez Reale: o fato é subjacente como fenômeno jurídico, pois é um contexto econômico, geográfico, de ordem técnica; o valor é o que confere significação a esse fato, logo está integrado ao momento e ao contexto, inclinando ou determinando o agir humano numa dada finalidade; e, a norma, é a expressão ou medida que vai orientar e integrar os demais elementos, dando-lhes dimensão.
É que o Direito, segundo o citado mestre, como toda área de estudo e compreensão, precisa de um fundamento, e eis fundamento, diz o mestre:
“Em resumo, são três os aspectos essenciais de validade do Direito, três requisitos para que uma regra jurídica seja legitimamente obrigatória: o fundamento, a vigência e a eficácia, que correspondem, respectivamente, à validade ética, à validade formal ou técnico-jurídica e à validade social. Fácil perceber que a apreciação ora feita sobre vigência, eficácia e fundamento vem comprovar a já assinalada estrutura tridimensional do Direito” – v. pág. 115, obra e autor citados.
Assim, notamos uma distância enorme das decisões atuais, em razão do dano moral, por exemplo, quando a pessoa sofre ofensa que lhe é irreparável, mesmo quando somente prejudicial, e embora reconhecido, os magistrados preferem arbitrar coerções, sanções ou indenizações que não enquadram os condenados, e ainda, informam a possibilidade de que novas ofensas possam resultar em nada.
Ou ainda decisões de limitação de conduta aos agressores de mulheres, mas que na prática o Estado não tem meios nem formas de impedir que a vingança dos ofensores sejam ainda mais violentas.
Nesse ponto, essas questionáveis decisões não trazem justiça, não traduzem qualquer ideal de justiça, ainda que juspositivo, e criam uma descrença na validade delas, pois, velam uma proteção sutil ao ofensor, deixando as vítimas sem amparo, já que o agressor segue no incentivo de praticar novas ofensas porque compensa o comportamento e conduta escolhida. Geram, estas decisões, insatisfações que, de alguma forma estão a indicar que procurar o Judiciário não vale muito a pena.
E são mesmos questionáveis. Conforme explicava Maria Helena Diniz, faltando à norma respaldo social, sua eficácia carece de validade, e, para o homem comum, a decisão judicial é um sentido de norma, embora de fato não o seja.
O fracasso do Judiciário, moroso, lento, ineficaz, solve a confiança em suas decisões, dissolve a crença de busca de justiça estatal, aliás, recentemente, em uma entrevista a uma emissora de TV, o Ministro Cesar Peluzo do STF, admitiu que a crença em soluções via Judiciário diminui cada vez mais, face ao modelo e sistema que temos no momento.
E Reale expressou bem isso, ao tratar do fundamento da regra no tempo e no espaço, que variam conforme a cultura, não se opondo ao pensamento de Dworkim, posto que para este, o direito não segue padrões específicos, depende antes de tudo, da cultura que lhe empresta o valor de norma capaz de reger o mundo do direito e a vida dos direitos.
Portanto, padrões multiculturais em evolução no tempo e espaço, como os juristas da Estácio, e fato, valor e norma, demonstrados pelo saudoso mestre autor entre nós da tridimensionalidade.