A Trajetória dos Malês no Brasil

Por | 28/11/2008 | Religião

OS MALÊS

Eduardo Pablo dos Santos

RESUMO

Com o objetivo de identificar e compartilhar a história religiosa e cultural dos Malês, produzimos este pequeno artigo a fim proporcionar uma melhor compreensão, sobre a trajetória dos Malês, grupo este de africanos que professavam a religião Islâmica que em sua grande parte descendem da Região Golfo da Guiné – África, onde foram escravizados e trazidos para o Brasil, especialmente para a cidade de Salvador-Bahia por ocasião das relações comerciais que permitiram um intenso comércio entre a Bahia e o antigo Sudão Ocidental da África. Neste sentido, analisaremos os traços da religião africana Islão negro e suas características esotéricas, bem como os conflitos sociais, religiosos que a escravidão imposta aos "Malês.

Palavras-chaves: Escravidão. Revolta. Islão Negro. Animista. Identidade.

OS MALÊS

Com o objetivo de melhor compreender o acontecimento histórico da Revolta dos Malês, este estudo tratará das questões intrínsecas a revolta, como a religião matriz dos africanos, o império de Mali, a expansão do Islamismo na África, para tanto iremos caracterizar o modelo de escravidão no Brasil, o sincretismo religioso, o cotidiano hostil que os negros eram submetidos, com o fim de compreender como se deu o conflito destes escravos islamizados contra as forças do Governo da Bahia.

Sendo assim, destaca-se que é preciso primeiramente identificar os malês, portanto deve-se compreender que o termo não significa um povo. O termo "malê" deriva do iorubá "imale", designando o que significa "muçulmano", que identifica negros africanos que sabiam ler e escrever em árabe. A maioria dos Malês utilizam a língua iorubá, e são identificados como "nagôs" e "Haussás", pois quando na África este negros obedeciam aos mesmos reis africanos, por estarem envolvidos no mesmo Império. Quando ainda em solo africano aceitaram a religião islâmica apropriando-se das tradições orientais, onde as inúmeras etnias africanas sincretizaram sua religião matriz "animista" com o Islão, unindo-se as tradições e doutrinas dos dois mundos (Africano e Oriental-Islâmico). Dessa forma o animismo africano que se traduzia em cultuar, o viver e o pensar com a natureza, juntou-se ao Islamismo o qual na sua principal característica tem o monoteísmo (crença em um só Deus, Alá), nos ensinamentos de Maomé, e no corão.

Portanto é de se entender que o Islão Negro influenciou, bem como, foi influenciado na África e no Brasil pela tradição dos orixás africanos gerando um islamismo esotérico, compatibilizando representações simbólicas dos orixás, rituais, cerimônias e mandingas que mantiveram viva a magia "pagã" dos orixás, exemplo que podemos destacar na afirmação de Lopes:

No Islão Negro, a magia pagã não desapareceu. O marabu faz concorrência aos adivinhos e curandeiros no mesmo terreno mágico, apenas através de processos diferentes. Ele confecciona e vende amuletos que são geralmente versículos do Corão num estojo de couro. E se utiliza também do êxtase e da inovação dos djins[1].

Com relação à escravidão, as autoridades portuguesas empenharam-se em um discurso de justificativa para escravizar o negro, onde defendiam que estavam salvando almas, pois livrava o negro do paganismo das práticas antropofágicas, da idolatria e outras. Portanto dessa escravidão gerou-se traumas provenientes dos castigos físicos, psicológicos, do regime do trabalho escravo, discriminações com o intuito de despersonalizar o escravo, problemas estes que os malês por sua religião Islâmica e tradição africana, a quais não aceitavam a escravidão do negro convertido ao Islão, e nem a escravidão do negro guerreiro nascido na África, por conseguinte não aceitavam este modelo de escravidão europeu, em que o homem negro era transformado em mercadoria, visto que na África o escravo tinha direitos à alimentação, roupas, casamentos, podia ainda em algumas regiões africanas ter mobilidade social, ou fazer parte da família. Portanto ocorre uma associação de forças dos malês com os também negros islâmicos Haussás, e os escravos nascidos na África, decidindo por fim a escravidão na Bahia. Atrelado a este sentimento de negação e de associação em relação aos outros negros, Nei Lopes defende que quase sempre intransigente em seus princípios religiosos, os Malês em geral não eram vistos com simpatia pelos outros negros, principalmente pelos Bantos[2].

Desse modo é possível perceber a cultura e religião diferenciada por parte de grupos étnicos ou religiosos, não podendo assim atribuir uma única cultura negra no Brasil, pois as regiões africanas tinham suas peculiaridades. É preciso ter em mente que como em qualquer movimento revoltoso, não houve uma participação coesa, ou seja, houve negros muçulmanos que não participaram da Revolta dos Malês.

Contudo destacamos que das perspectivas do movimento, havia um projeto de se continuar à escravidão para os negros nascidos no Brasil, negros estes tidos como "mulatos", onde destaca-se o preconceito religioso e étnico do Malês, por não aceitarem negros católicos ou miscigenados.

Lopes defende que:

Havia certo preconceito por parte dos brancos, em relação ao Malês: criou-se a mítica do negro altivo por considerá-lo insolente, insubmisso e revoltoso[3].

Defendendo esta afirmação, Lopes cita em seu livro a descrição feita pela autora Elizabeth Cary Agassiz, sobre os negros islamizados, descrevendo um encontro de um grupo de negros "minas" por ela observados no Rio de Janeiro em 1865:

Os homens dessa raça são maometanos e conservam segundo se diz, a sua crença no profeta, no meio das práticas da Igreja Católica. Não me parecem tão afáveis e comunicativos como os negros congos: são pelo contrário, bastante altivos[4].

Em razão disso acredita-se que os Malês eram muito fechados e intolerantes por entenderem que a religião Islâmica, não seria tolerada no Brasil, logo ocultaram suas tradições e utilizaram de inúmeros artifícios para continuarem professando sua religião, algo parecido com que os negros que cultuavam o candomblé fizeram a associarem suas divindades do candomblé os santos da Igreja Católica, como uma forma de cultuar suas crenças no candomblé e resistir ao processo de despersonificação do negro.

Em relação aos inúmeros levantes, percebe-se que o movimento utilizava-se de muitos atentados, roubos, incêndios no período de 1807 as véspera de 1835, com a finalidade de disseminarem a idéia abolicionista entre os escravos dos engenhos, na periferia de Salvador e no Recôncavo Baiano. Tentavam assim principalmente influenciar os escravos mais isolados, neste caso os dos engenhos que, consequentemente, sofriam maior rigor da escravidão. Dessa forma estes negros revoltosos, tentavam sacudir a capital baiana, por meio de invasão de lojas, roubos de armas, na tentativa de arrebatar multidões de adeptos e ferir qualquer um que opusessem a causa. Estes primeiros conflitos, foram rapidamente sufocados por forças imperiais e não eram entendidos como uma revolta pelo governo da Bahia, logo não havia uma maior preocupação.

Já em 25 de janeiro de 1835, um domingo estourou acidentalmente em Salvador a Revolta dos malês, por estes terem sido surpreendidos horas antes do levante por guardas do Governo, desencadeando uma pequena batalha na ladeira da Praça, seguindo de um ataque à Câmara, onde estaria preso um dos líderes dos Malês, o idoso Pacifico Licutan, conhecido também por Bilal, que estava preso por seu dono estar completamente endividado e ter seus bens confiscados, até o pagamento das dividas.

Diante dos fatos o autor Nei Lopes acredita que a falta de divulgação do levante, associado aos delatores, fez com que a revolta fosse rapidamente sufocada, deixando mortos mais de 70 rebeldes, muitos presos que foram deportados, e quando identificados como líderes do movimento executados ou aprisionados para servirem de exemplo correcional à comunidade negra. Contudo o medo de um novo levante levou as autoridades da Bahia e do Rio de Janeiro, Recife e das demais províncias a submeterem os negros a uma constante vigilância e conseqüentemente uma abusiva repressão de seus direitos, principalmente nos grandes centros urbanos, por estes cativos gozarem de maior "liberdade".

Durante o processo de perseguição e identificação dos revoltosos as autoridades se impressionaram com os indícios de organização que os Malês utilizaram para sublevar-se contra a escravidão e contra a autoridade da Bahia. Pois estes tinham alto grau de conhecimentos da língua árabe, dos processos de escripturação dos códigos, documentos e utensílios árabes, elementos esses que deram suporte para a revolta. Assim após o sufocamento da revolta os malês a província do Rio de Janeiro, tornou-se a principal rota de fuga, desses escravos.

De acordo com estes fatos históricos considera-se que os malês não aceitaram pacificamente a escravidão por terem sua formação social africana e principalmente sua religião "o Islão Negro", o qual norteava o caminho religioso e os diversos campos da atividade humana, campos estes que estavam constantemente sendo atacados pelo modelo de escravidão adotado no Brasil. Contudo devemos entender que houveram negros que praticavam o candomblé, e outros que não professavam nenhuma religião, mas que também participarem ativamente da Revolta dos Malês. O que conflui com a defesa de Lopes:

Que definindo resumidamente o movimento pode-se dizer que a conspiração foi male e o levante foi africano; e que se os malês que convulsionam a Bahia na Primeira metade do século XIX, tinham em mente uma jihad, uma guerra santa, era uma jihad convenientemente desviante do modelo clássico, pois incluía gente de fora da comunidade islâmica[5].

 

Diante da História dos malês, pode-se identificar a projeção africana na história brasileira, visto estes negros terem participado ativamente da história do Brasil, em especial na província da Bahia, onde demonstraram suas intenções de liderar uma mudança contestando por meio da revolta toda uma sociedade escravista e racista.

Assim, este movimento faz com que os negros fossem visto pelas autoridades como um grupo que não devia ser subestimado, pois após a revolta de 1835, as ameaças esteve presentes estendendo-se até o governo de Dão Pedro II.

Por fim acredita-se que a resistência negra sempre esteve presente por meio de ações isoladas e inexpressivas, mas na Província da Bahia, os malês revoltaram-se lutando contra todo tipo de injustiça que acreditavam estar ferindo sua identidade, evento este que fez com que muito negros orgulhem-se de sua ancestralidade considerada nobre por serem ou se intitularem descendentes dos "malês". Instituindo assim uma manifestação de revalorização popular com base nas revoltas islâmicas que uniram o orgulho e a auto-afirmação do negro brasileiro para o fim da escravidão conforme defende Lopes:

O Islamismo para cá transplantado foi inquestionavelmente um importante e revolucionário fator de aglutinação na luta pela abolição da escravatura e continua sendo na memória do negro brasileiro, um dos seus grandes motivos conhecidos de orgulho e auto-afirmação[6].

Logo este artigo procurou descrever a trajetória dos escravos africanos no Brasil onde houveram inúmeras importantes revoltas contra a escravidão, contra a imposição da cultura branca e a religião católica aos negros. Pois por meio dessas formas de controle, a Igreja e o Governo tentaram remodelar toda uma identidade africana.

Portanto nós como historiadores, não podemos deixar de perceber que a historiografia tradicional não se interessou por esta revolta de grande importância, visto não ter trabalhado ou registrado nos livros acadêmicos e principalmente nos livros didáticos tais acontecimentos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NEI LOPES. Bantos, Malês e Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.



[1] NEI LOPES. Bantos, Malês e Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 56.

[2] NEI LOPES. Bantos, Malês e Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 62.

[3] op. cit. p. 60

[4] apud AGASSIZ, Luiz; Elizbeth, Cary. Viagem ao Brasil (1865-1866). Belo Horizonte, livraria Itatiaia Editora, 1975, p. 69

[5] NEI LOPES. Bantos, Malês e Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 89.

[6] NEI LOPES. Bantos, Malês e Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p.96.