A TRAGÉDIA “HOMOFÓBICA”

Por Ademir Monteiro | 26/11/2012 | Sociedade

Há uns sete anos, eram pouco mais das seis da tarde, numa calçada bem ampla, mais larga que o normal, com espaço suficiente para que pessoas não se acotovelassem. Elas seguem seus destinos, a princípio apressadas, até que se deparam com a cena: dois homens sentados numa elevação no passeio da Avenida Paulo VI, em Salvador, um deles com a cabeça no colo do mais velho, que passa as mãos nos seus cabelos, e o jovem, 19 anos, retribuí o afeto alisando o rosto do outro. Transeuntes não entendem a cena — alguns sorriem debochados, outros expressam indignação. Há caras de nojo, também. São em número bastante reduzido, no entanto. A grande maioria ignora o ato e todos continuam nos seus respectivos caminhos após fazerem uma avaliação breve do episódio

Quando tomava Zyprexa, meu filho, autista, equilibrava a condição mental. Mas, antes, efeitos colaterais do remédio o deixavam num estado psicológico estranho. Após alguns minutos da ingestão dos comprimidos, sentia-se perdido, com medo, e puxava-me pela mão até a porta da rua. Acho que percebia que, caminhando, os sintomas desagradáveis diminuíam aos poucos. Andar era bom. Os carros passando, faróis acesos e lanternas amarelas piscando. As pessoas, cada uma com roupas diferentes, coloridas; mistura de odores saindo dos restaurantes. Uma ambulância com a sirene ligada e as luzes oscilando, do vermelho para o azul, cruza a avenida, apressada. Maravilha (e agitado), este mundo dos “normais”. Mas o ápice das sensações, um carro de lixo parado com suas luzes amarela e vermelha, e a engrenagem na parte de trás, subindo e descendo, foi forte demais.

Meu filho sentiu-se mal e quis deitar em pleno calçadão. Por sorte, havia, na frente de um imóvel em reforma, uma elevação de uns vinte centímetros de altura. Sentei, ele colocou a cabeça em meu colo e olhou para mim, assustado. Em seguida, alisou meu rosto e falou “papai”. Era para avisar que sabia que eu não o abandonaria ali, sozinho. Coisa de autista. Meu filho não entendia o que se passava com ele — naquele momento e nos demais. Era urgente, então, voltar pra casa, mas os taxis não paravam. Comecei a ficar bastante preocupado, quando percebi os olhares. Eu e meu filho, prostrados na calçada da principal avenida da Pituba, sendo alvos da intolerância de algumas pessoas. Não uso o termo “pré-conceito” porque, como a pensadora Hanna Arendt, acho impossível viver em sociedade sem conceitos pré-formatados, armazenados em nosso “HD” mental. Seríamos vítimas, a todo instante, de mini “choques culturais”. O mundo em que os humanos vivem é um mundo de conceitos. A realidade humana é meramente conceitual. E os autistas não vivem neste mundo.

Normalmente, os sintomas colaterais desapareciam entre 15 minutos a meia hora. Acenei, inúmeras vezes, já nervoso, para que algum motorista de taxi parasse. Nada. A carga da bateria do celular havia acabado. Então, um moleque, no interior de um ônibus, colocou a cabeça de fora da janela e berrou, a todo pulmão, “viaadôô”!! O veículo parou metros adiante e de dentro saltaram o que gritou e outros três jovens. Caminharam na nossa direção com movimentos corporais característicos de quem vai agredir fisicamente. Senti um frio gelado subir da barriga até a garganta — pavor, não pelo que pudesse acontecer a mim, mas com o desfecho em relação a meu filho. Pensei e decidi: se iniciassem qualquer agressão física contra Ygor-Felipe, eu aleijaria ou mataria pelo menos algum deles, nem que fosse abatido depois. Pensamento insano? Imbecil? Pensei e assim decidi. Quando o grupo chegou perto, deixei evidente essa disposição. Por sorte, de meu filho e minha, desistiram. Provavelmente não por causa do meu olhar, mas porque perceberam que não se travava de dois homossexuais acariciando-se na via pública.

Essa sorte não tiveram pai e filho, há alguns meses, no interior de São Paulo, confundidos com um casal gay. Ele abraçava o rapaz, de 18 anos, em uma feira agropecuária, pouco antes do ataque. O filho se feriu sem muita gravidade. Do pai, os loucos arrancaram boa parte da orelha direita. Mas eles e nós poderíamos ter sido surrados ou mortos por pertencermos a outra “minoria” dessas aí — nordestinos, “baianos”, negros, muçulmanos, judeus, punks, funqueiros, “michelteloristas”, “luansantanistas”, sertanejos, autistas... não importa. É assim há milhares de anos e os “sábios” e legisladores, ao longo da História, foram cercando essas inclinações do espírito humano com leis assegurando direitos e proteção, configuradas em punições — a alguns apenas, no início, mas ampliando com o tempo para o resto dos humanos, incluindo os “diferentes”. A Constituição federal contempla, como “objetivo fundamental da República Federativa do Brasil”, ações efetivas de proteção ao cidadão ancoradas no princípio da “promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, ou quaisquer outras formas de discriminação”. O homossexualismo não está explicitado com este termo, mas um magistrado não contaminado por pressões fundamentalistas ligadas à moral religiosa levará em consideração, para punir eventual agressor, que esse tipo de crime está contido em “quaisquer outras formas de discriminação”.

Mas a Carta Magna brasileira — e de outros tantos países — é desrespeitada diariamente, ferindo vários de seus artigos. Nos centros chamados “civilizados”, porém, quem pratica crime vai parar na cadeia. A não ser que consiga permanecer foragido. O agressor, confesso, da dupla pai e filho, em São Paulo, está solto. O juiz recusou-se a decretar sua prisão preventiva porque considerou o atentado como “crime leve” e o enquadrou nos novos critérios, aprovados recentemente, que definem a prisão preventiva. Agora, quem cometer crime sujeito à punição de até quatro anos (os leves) e nunca antes tenha sido condenado por outro delito, só irá preso após a condenação final, quando praticar violência doméstica ou houver dúvida sobre sua identidade. Arrancar mais da metade da orelha de uma pessoa e espancar outra, não é um crime grave, na visão do juiz. O magistrado lá do interior paulista agiu como poeta, cantor, um artista enfim, realizando uma interpretação “livre” de uma obra, no caso, um texto legal. Ele ou outro “artista” ou fanático religioso poderia agir da mesma forma, mesmo se houvesse uma lei ordinária, específica, criminalizando a “homofobia”, a “nordestinofobia”, “autistofobia”. É o magistrado a quem compete interpretar e aplicar a lei. Pelo Código Penal, quem agride (física ou moralmente) alguém, independente dos motivos, terá que responder pelo ato. Ponto.

 Os militantes da causa pela “criminalização da homofobia”, sejam homossexuais ou não, estão legítima e compreensivelmente assustados e indignados com o que classificam de “onda homofóbica” dos últimos tempos. Mas é importante uma análise mais pertinente de tal “onda”. Pelas circunstâncias históricas do momento, os efeitos psicossociais desses e de outros crimes violentos, assumem padrões de amplitude compatíveis com o atual estágio das gigantescas e variadas redes de comunicação. Há cem anos, por exemplo, a repercussão de fatos de grande significado estava limitada pelo nível de abrangência das ainda rudimentares plataformas de informação. Já antes da segunda metade do século passado, no entanto, as coisas começam a mudar.

 Uma criança, que havia caído num buraco profundo, mobilizou a população americana e parte da mundial, que acompanharam durante dias os esforços dos bombeiros até conseguirem retirar o menino. Esse episódio tem pouco mais de vinte anos. Um século atrás, talvez só os habitantes do local onde ocorreu o acidente tivessem tomado conhecimento. Casos semelhantes acontecem de vez em quando no Brasil, também. Moral da história: basta uma criança — ou um adulto envolvido em circunstâncias dramáticas semelhantes — para mobilizar milhões ou até bilhões de humanos ao redor do planeta. É o conceito aristotélico de “catarse”, agigantando-se dos limites do antigo teatro grego para um universo ilimitado de emoções. O que há dois mil e quinhentos anos fazia algumas centenas de espectadores descarregarem suas emoções diante das cenas da tragédia grega, hoje bilhões de almas riem, choram, sofrem, se indiguinam e participam das novas “tragédias” midiáticas. Mas, ao contrário da Grécia na época, a sociedade contemporânea dispõe de aparatos jurídicos bem mais sofisticados, frutos da evolução dos conceitos ligados à valorização da vida e do bem estar humanos. Vivemos no melhor dos mundos, tem-se que reconhecer: crimes são praticados e uma câmera escondida capta-os e bilhões de pessoas podem flagrá-los também. 

Por isso, os sentimentos diante desses fatos se transformam em moeda política valiosa para ser mobilizada e agitada. E, mais do que isso, no caso dos ataques contra homossexuais, militantes pró criminalização vêm lançando mão das mesmas ferramentas de ampliação de fatos, ocupando pontos estratégicos não só nos meios tradicionais de difusão, mas também em centenas de nichos nas redes sociais mundo afora. Natural, porque são alvos nas duas pontas dessa nova e real tragédia — a física, através dos ataques, e a representada pelos grandes veículos de comunicação, onde são transformados em público-alvo privilegiado do drama midiático. Até o momento, não sei se alguma vítima reagiu, também fisicamente, contra algum desses agressores “homofóbicos”. A reação dos “alvos”, ao contrário, é muito mais articulada e eficiente. Os militantes da causa realizam uma espécie de versão ampliada, virtualmente, do “Occupy Wall Street” — movimento em protesto contra a crise e a desigualdade econômicas. Existem aliados de peso nessa batalha, como especialistas em legislação, jornalistas e até autores de novela, que chegam a construir personagens carregados de empatia para então liquidá-los, de forma violenta, por meio de outros personagens agressores “homofóbicos”. 

Mas aqui, há outro efeito, ligado às circunstâncias do “planeta plugado” — o excesso de informação. E de apelos dramáticos. Neste atual mundo de Deus, a função cerebral de selecionar e priorizar informação está funcionando na carga máxima. A consequência direta, nesse tipo de artilharia, é uma reação também em dois níveis: a banalização dos casos, colocando-os na “vala comum” das estatísticas; e o aparecimento de contra-reações, o que implica no recrudescimento dos atentados criminosos. Dosagem é a palavra-chave, muito embora identificar e alcançar parâmetros razoáveis de militância, num embate com tanta carga emotiva, seja uma tarefa bem difícil. Mas é um esforço necessário que as legítimas lideranças precisam empreender, sobretudo para anular a retórica dos fanáticos religiosos e bloquear a ação de oportunistas e aventureiros. Esses últimos tipos estão sempre a postos, em qualquer movimento. Quando conseguem alcançar a linha de frente dos discursos, argumentos racionais e ponderados são sempre distorcidos.

 Como não dá para fazer uma omelete sem antes quebrar os ovos, o movimento liderado por homossexuais, apesar do equívoco do objeto, possuiu um sentido que transcende a própria causa ao servir como exemplo, para o resto dos brasileiros, de que as conquistas democráticas não caem do céu. Elas são fruto de batalhas, muitas delas sangrentas. É assim que se constrói e se solidifica a cidadania — palavra ouvida ad nauseam na mídia e cujo sentido é desconhecido da esmagadora maioria da população. A agenda política do País, em centenas de setores, está reclamando dos seus habitantes o mesmo empenho e garra dos bravos militantes da “causa gay”.