A Tirania de Galeno na Medicina

Por Julio Cesar Souza Santos | 13/12/2016 | Sociedade

 

Galeno Foi o Mais Influente dos Antigos Escritores da Ciência? Por Que Todos os Médicos Progressistas Deveriam Aprender Hipócrates? Como Galeno Efetuara Suas Anatomias Já Que Era Proibida a Dissecação de Cadáveres?

 

 Durante 1500 anos, a principal fonte do saber dos médicos a respeito do corpo humano não foi o próprio corpo humano, pois eles preferiam depender das obras de um antigo médico grego. O “saber” era a barreira para o saber e a clássica fonte se tornou um obstáculo reverenciado.

 

De todos os antigos escritores da ciência (exceto Aristóteles e Ptolomeu), nenhum foi mais influente do que Galeno (c. 130-200). Nascido de pais gregos começou a estudar medicina aos 15 anos e, depois de trabalhar sob a tutela de professores de medicina em Alexandria, aos 28 anos regressou à sua Pérgamo para se tornar médico dos gladiadores.

 

Numa época em que os cadáveres para dissecação eram tabus, aproveitou essa oportunidade para aprender com o que via dentro das feridas dos gladiadores. E, quando se transferiu para Roma, curou vários enfermos, deu lições públicas de Medicina e se tornou físico da corte do Imperador Marco Aurélio. Consta que ele escreveu 500 tratados em grego sobre anatomia, fisiologia, retórica, gramática, dramaturgia e filosofia.

 

Embora as obras de Galeno fossem prolixas, ele suplantou seus competidores compilando e organizando seus conhecimentos clínicos dos médicos mais antigos que o tinham precedido. Mas, não se limitou a ser um mero compilador, pois ele formulou a sua própria filosofia de procedimentos clínicos. Vangloriava-se, dizendo que “desde cedo desprezei a opinião da multidão e ansiei pela verdade e pelo saber, acreditando que não existia, para o homem, bem mais nobre ou mais divino”.

 

Segundo Galeno, como o saber era cumulativo, o médico progressista deveria aprender Hipócrates e outros grandes predecessores. O notável progresso da medicina era como o imperativo aperfeiçoamento das estradas romanas ao longo dos séculos. Os antigos tinham assinalado os caminhos e feito os primeiros cortes através do matagal e, depois, cada geração foi construindo diques e acrescentado superfícies de pedra.

 

Galeno instigou seus colegas a aprender com as experiências e, ao mesmo tempo, se concentrarem no saber útil que curaria os enfermos. Ele fez um estudo da pulsação e demonstrou que as artérias não transportavam ar, mas sangue. Tinha fama de ser brilhante para diagnosticar e até escreveu um estudo sobre o fingimento de doenças.

 

Na sua obra mais importante (“Da Utilidade das Partes do Corpo”) ele descreve cada membro e órgão, explicando como foi concebido para desempenhar seus objetivos específicos. Mesmo quando se apoiava em Aristóteles, Galeno instiga o leitor a precaver-se da medicina pedante: _ “Se alguém deseja observar as obras da Natureza, deve depositar sua confiança não em livros de anatomia, mas nos seus próprios olhos, e procurar a mim ou consultar um dos meus colegas ou praticar exercícios de dissecação; mas, enquanto se limitar a ler será mais provável que acredite em todos os antigos anatomistas”.

 

Por uma ironia da história, enquanto os livros de Galeno se tornavam textos sagrados, seu espírito foi esquecido. Durante séculos, o “galenismo” seria o dogma dominante dos médicos. Assim como os textos de Aristóteles se tornaram a base da filosofia escolástica, as obras de Galeno criaram a medicina escolástica.

 

Algumas de suas obras em grego provavelmente já estava traduzidas em latim no século VI e, com o advento do poder árabe no Mediterrâneo e a ocupação da Espanha, os textos de Galeno chegaram à Europa ocidental. Daí, no século XI o galenismo estava dogmatizado. O aristotelismo continuava a ser dominado pelas palavras de Aristóteles, mas o galenismo era composto pelo Galeno original e pelos textos árabes, com os comentários através dos quais ele chegou ao Ocidente.

 

Na mesma altura em que cristãos europeus viajavam pelo Mediterrâneo em cruzada contra infiéis muçulmanos e queimavam heréticos e judeus, médicos cristãos da Europa curavam os males do corpo pela sabedoria de médicos muçulmanos e judeus modernos.

 

O Renascimento, a quem atribuímos o crédito do nascimento da ciência moderna, teve consequências contraditórias e não previstas. Poucas obras científicas  de Galeno eram conhecidas na Europa antes do século XIV e a sua mais importante sobre anatomia não estava traduzida e, por isso, não se encontrava ao alcance no Ocidente antes do Renascimento.

 

A primeira tradução latina impressa de grande parte de sua obra data de 1476. De uma impressora em Veneza saiu a 1ª edição grega de Galeno (1525). Médicos europeus tinham pela 1ª vez as suas próprias cópias dos textos do seu mestre, na língua original. Os impressores que comercializavam esses textos reforçavam a ortodoxia galênica. O produto da sua colaboração não foi ciência médica e, tampouco a experiência, mas sim o pedantismo.

 

Jacob Sílvio – principal professor de Anatomia da Faculdade de Medicina de Paris – ensinava que Galeno sempre tinha razão. Seu estudo de medicina era uma procura do que Galeno realmente queria dizer e, para ele, “anatomia era um ramo da filosofia clássica”. Os debates médicos começaram a se parecer com os sofismas dos teólogos sobre o significado das palavras das Escrituras.

 

Até professores de medicina renascentistas mais atualizados procuravam a sua imagem do corpo humano no espelho da Antiguidade. A renovação de Galeno era apenas um polimento desse espelho. Por exemplo, Thomas Linacre, médico de Henrique VIII, doutor em Medicina e fundador do Royal College of Physicians, viu reforçada a sua reputação médica por ter traduzido seis obras de Galeno do grego para o latim.

 

Mas, a maior parte do que Galeno descobriu era o que nunca viu. A grande autoridade sobre anatomia humana, cuja palavra sagrada como o Evangelho durante 1500 anos, provavelmente efetuara estudos de corpos humanos, mas nunca dissecara um cadáver. Segundo ele próprio, apenas em duas ocasiões pudera estudar toda a estrutura óssea do corpo humano.

 

Como o costume romano proibia a dissecação do corpo humano, Galeno efetuara todas as suas anatomias em macacos (para anatomia externa) e porcos (interna) e, depois, projetava o que descobria na anatomia do corpo humano. Não fazia segredo e escrevia sobre os tempos antigos que a dissecação era permitida. Ele admitia que “o que encontrava em outros animais semelhantes ao homem, se encontrava também no homem”. Gerações de médicos que fizeram de Galeno a sua fonte de conhecimento anatômico aceitaram entusiasticamente essa deficiência crucial dos materiais do mestre.

 

O Cristianismo teve uma influência curiosamente diversa no advento da anatomia, pois a crença cristã numa alma imortal e o desprezo pelo corpo como mera casca que se despia quando se morre, não encorajavam qualquer interesse apaixonado pela anatomia humana. Ao mesmo tempo, essa separação do corpo físico da alma acabou por tornar mais fácil do que fora no Egito ou em Roma a autorização para dissecar cadáveres.

 

O Islã jamais aceitou a dissecação de corpos e, do século VIII ao século XIII, o conhecimento anatômico dos médicos muçulmanos era meramente “Galeno vestido de muçulmano”. Quando os melhores médicos árabes corrigiam a anatomia de Galeno, não o faziam metodicamente, mas por acaso ou sorte. Por exemplo, um médico árabe que viajava pelo Egito no século XIII, encontrou esqueletos humanos acumulados durante uma epidemia de peste e, ao examiná-los, pôde corrigir a descrição incorreta de Galeno da mandíbula humana.

 

Mesmo na era de Galeno, um observador determinado como Leonardo da Vinci podia escrever o que ele conseguia ver. Ele tencionava escrever sobre anatomia, pintura, arquitetura e mecânica, embora não tenha publicado nenhum deles. Mas, após a sua morte foram compilados – a partir de seus apontamentos – uma obra sobre pintura e outra sobre o movimento e a medição da água.

 

Se ele tivesse completado seu estudo anatômico a ciência médica poderia ter progredido mais rapidamente. Mas, Leonardo raramente completava alguma coisa e após sua morte 5000 páginas de manuscritos foram dispersas como artigos de colecionadores. Todas revelavam a miscelânea do seu pensamento e o alcance da sua curiosidade como, por exemplo, quando ele começava a desenhar uma curva, acabava em um exercício na geometria das curvas. Um desenho de cabelos encaracolados acabava em ervas enroladas numa flor de jarro e, esboços de árvores abaixo de nuvens curvilíneas, acabavam em ondas de água.

 

Leonardo exercitava o seu engenho para tornar essas dispersões ainda mais ilegíveis e inventou a sua própria ortografia, combinando palavras segundo um sistema pessoal e não empregando qualquer pontuação. A fim de mistificar ainda mais a posteridade, ele escrevia os caracteres de trás para frente e com a mão esquerda, de modo que para ler era necessário um espelho.

 

A anatomia que compilamos das páginas da sua miscelânea revela que Leonardo da Vinci viu e registrou o que os outros não viram. Se tivesse reunido suas opiniões e seus interesses não houvessem distraído, poderia ter-se tornado o sucessor de Galeno. Aliás, ultrapassou-o secretamente e leu o próprio corpo. As partes do corpo – dizia – tinham de ser mostradas de todos os lados. As suas vistas não publicadas do esqueleto humano foram desenhadas de trás para frente e dos lados.

 

No entanto, apesar da sua arte consumada, do seu trabalho e da sua capacidade de observação, da Vince aumentou apenas o seu próprio conhecimento e pouco o conhecimento anatômico do seu tempo. Tampouco as suas próprias observações foram enriquecidas como deveriam ser, pois o fórum público do material impresso tem um jeito especial para promover o produto, e o trabalho de Leonardo da Vinci se manteve no domínio privado.

 

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