A tipificação do feminicídio

Por EDNALVA MENEZES FURTADO | 19/05/2017 | Direito

A violência contra as mulheres teve, e tem, manifestações diferentes de acordo com a época e contextos nos quais se realiza e reproduz. Frente às violências, os sistemas de justiça responderam das mais diversas formas: desde a incompreensão da magnitude destas ações como consequência dos padrões culturais patriarcais e misóginos que prevalecem em nossa sociedade, a excessiva burocratização dos procedimentos legais, a dificuldade para investigar as modalidades cruéis e complexas deste tipo de violência, até a impossibilidade de estabelecer uma caracterização dos responsáveis, sendo eles membros do ambiente familiar da vítima, ou pertencentes a estruturas estatais ou organizações criminosas.

Em resposta a atual situação de violência generalizada, e frente às demandas das organizações de mulheres de diversos locais, houve a promulgação de uma série de instrumentos legais de caráter mundial, regional e nacional, com a finalidade de fazer com que a sociedade e os Estados assumam seu dever ético, político e jurídico de prevenir e erradicar qualquer forma de ameaça e afetação dos direitos humanos das mulheres (VÍLCHEZ, 2008).

MARCOS NORMATIVOS INTERNACIONAIS

O Direito Internacional dos Direitos Humanos é uma das principais ferramentas utilizadas, nas últimas décadas, pelos movimentos de mulheres e feministas para alcançar a plena vigência dos direitos das mulheres em diversos países do mundo. Dentro do ramo do Direito Internacional, produziu-se uma evolução substancial, desde instrumentos adotados e interpretados a partir de uma mera igualdade formal entre homens e mulheres, até instrumentos e interpretações que reconhecem a desigualdade e discriminação estrutural das mulheres e, em consequência, a necessidade de uma completa revisão da forma como seus direitos são reconhecidos e aplicados (VÁSQUEZ, 2009).

A ONU reconheceu a violência contra as mulheres como uma forma de discriminação e violação de direitos humanos. De acordo com Vílchez, (2008), na Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (DEVAW), de 1979, os Estados signatários, entre eles o Brasil,  obrigaram-se a tomar uma série de medidas e ações que visam alcançar a plena igualdade entre homens e mulheres, em matérias como participação na vida política, social, econômica e cultural, acesso à alimentação, saúde, ensino, capacitação, oportunidades de emprego e satisfação de outras necessidades.

A DEVAW foca principalmente nos direitos humanos das mulheres, com ênfase em sua discriminação – que é vista como o eixo através do qual se articulam as violências se articulam na maior parte das sociedades.

Pastili Toledo Vásquez, aponta que é interessante observar que este eixo – a discriminação contra as mulheres –,é de importância fundamental para a evolução dos direitos das mulheres, na atualidade e com o passar dos anos, experimentou uma mudança substancial na forma como é interpretado e compreendido, e que este processo é consequência tanto da evolução e desenvolvimento das teorias feministas e suas ênfases, como das próprias reivindicações dos movimentos de mulheres em diversos países.

Da análise inicial sobre a discriminação a partir da equiparação com os direitos dos homens – que são tomados como paradigma –, deu-se lugar a uma interpretação a partir da realidade de subordinação e submissão que vivem as mulheres no mundo, sem que necessariamente existam um equivalente direto e imediato com o direito dos homens, ou seja, não se trata de apenas conseguir o reconhecimento dos mesmos direitos que a eles foram reconhecidos historicamente – direito ao voto, ao trabalho, a participação política, a mesma remuneração, etc. – mas também do reconhecimento de direitos que surgem a medida em que se consideram as características próprias da realidade das mulheres, por exemplo, em relação a questões relacionadas a violência e ao aborto”. (VÁSQUEZ 2008, p. 39). 

A Plataforma de Ação de Pequim, adotada na 4a Conferência Mundial sobre as Mulheres, em 1995, identificou a violência contra as mulheres como uma das 12 áreas críticas de preocupação e que requeriam ações urgentes para atingir os objetivos de igualdade, desenvolvimento e paz, clamando por ações de prevenção. (Senado Federal, p. 31).

Nas conclusões acordadas da 57ª Sessão da Comissão sobre o Status da Mulher, da ONU, cujo texto foi aprovado em março de 2013, o termo “feminicídio” aparece pela primeira vez em um documento internacional acordado (aprovado pelos países membros da Comissão), com uma recomendação expressa aos países membros para “reforçar a legislação nacional, onde apropriado, para punir assassinatos violentos de mulheres e meninas relacionados a gênero (genderrelated) e integrar mecanismos ou polícias específicas para prevenir, investigar e erradicar essas deploráveis formas de violência de gênero”.

Ainda, com o apoio da ONU Mulheres, houve a criação de um Protocolo para a Investigação de Assassinatos Violentos Relacionados a Gênero de Mulheres/Feminicídio para a América Latina, cujo objetivo é criar diretrizes para a investigação efetiva de mortes de mulheres, usando o conceito de feminicídio, e garantir que os Estados cumpram seus deveres internacionais em relação à garantia do direito à vida e à dignidade humana para todas e todos, conforme expresso em múltiplos diplomas internacionais.

No âmbito regional, a Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra as Mulheres (Convenção de Belém do Pará), aprovada em 1994 e da qual o Brasil é signatário, foi um importante instrumento no qual se estabelece o direito de toda mulher a uma vida livre de violência, tanto no âmbito público como no privado. Ainda, estabeleceu que toda mulher tem direito ao reconhecimento, gozo, exercício e proteção de todos os direitos humanos e liberdades consagrados pelos instrumentos regionais e internacionais sobre a matéria. Os países signatários assumiram, entre outras, a obrigação de legislar para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher. (VÍLCHEZ, 2008).

A partir da Convenção de Belém do Pará, ficou claro que, no que diz respeito ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Estado, segundo Vásquez (2009), será responsabilizado pelas violências cometidas contra as mulheres quando não adotar as medidas adequadas para sua prevenção, sanção e erradicação – independente da forma de violência que está sendo perpetrada, seja a cometida na esfera privada ou pública, e mais ainda quando se trata de violência institucional, na qual a responsabilidade do Estado está mais diretamente relacionada. Desta maneira, o Estado que não previna, investigue ou sancione com a devida diligência o feminicídio, seja o cometido na esfera pública ou na privada, descumpre com sua obrigação de garantir o direito à vida das mulheres.

Em concordância com os instrumentos internacionais aprovados, os países da América Latina e Caribe aprovaram leis internas que desenvolvem os princípios contidos nas normas internacionais sobre proteção e promoção dos direitos das mulheres.

Ana Isabel Garitta Vilchez (2008), explica que este processo de reformas legais iniciou-se na região por volta da década de 90, com a aprovação de leis que hoje são chamadas como de “primeira geração”. Nelas, se estabelecem medidas de proteção não- penais, mas coercitivas, para proteger as mulheres frente aos atos de violência que se originam no âmbito familiar, doméstico e íntimo. A importância destas leis, promulgadas entre os anos de 1994 e 2002, reside no fato de que, a partir delas, houve a judicialização da luta contra tais manifestações de violência.

A partir de 2005, os países aprovaram outras propostas legais que vem sendo chamadas de leis de “segunda geração”.

Nelas, se amplia a compreensão da violência contra a mulher, regulando-se como tal não apenas a que se produz no âmbito privado, mas também a que se produz no âmbito público. Nestas leis, se penalizam diversos atos de violência, de maneira que sua contenção e sanção se translada da jurisdição civil ou familiar ao âmbito penal, além de ampliar a definição de violência contra as mulheres ao incorporar novos tipos penais como a violência sexual, psicológica/emocional, patrimonial, obstétrica, institucional, laboral. Em algumas delas, se assinala a importância da atenção integral às vítimas, e se obriga o Estado e suas instituições a elaborar e executar políticas públicas que previnam e combatam a violência contra as mulheres; se estabelece um rol amplo de medidas de proteção, se eliminam a mediação e a conciliação como mecanismos de resolução das controvérsias, se estabelecem sanções mais fortes para o responsável pelos atos e se proíbe a aplicação de escusas ou atenuantes nos delitos graves, como invocar costumes ou tradições culturais ou religiosas como causa de justificação da violência. Uma característica desta legislação é reconhecer a responsabilidade do Estado pela ação ou omissão em que incorram os funcionários públicos que obstem, retardem ou impeçam o acesso das mulheres à justiça”. (VILCHEZ, 2008, p. 11).

 Quanto à tipificação expressa do feminicídio, sete países da América Latina tomaram a decisão política de tipificar o femicídio/feminicídio; Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Nicarágua, Chile, México, Peru tipificaram expressamente a figura do feminicídio.

A Colômbia não criou um tipo penal específico para definir e sancionar o feminicídio, mas reformou seu Código Penal e incorporou, por meio de circunstância agravante, o homicídio “cometido contra uma mulher pelo fato de ser mulher”.

Essas legislações tem seu fundamento em diversas circunstâncias, dentre as quais se destacam (i) a obrigação dos Estados de adequar sua legislação aos instrumentos internacionais, (ii) o aumento dos casos de mortes de mulheres, (iii) a excessiva crueldade com que tais atos se dão, (iv) a ausência de tipos penais especiais para descrever adequadamente o assassinato de mulheres baseado em razões de ódio, desprezo, e em todo caso como resultado das relações assimétricas de poder entre homens e mulheres e (v) os altos índices de impunidade.

As leis que incorporam o delito de feminicídio nestes países diferem entre si tanto em na matéria quanto na forma, e a técnica legislativa para incluir o feminicídio na legislação penal varia de país para país.

No caso do Chile e do Peru, optou-se por reformar o delito de parricídio já contido no Código Penal, incorporando nele a descrição típica do feminicídio; no México, também decidiu-se por reformar o Código Penal mas, diferente do Chile e do Peru, o feminicídio se estabeleceu como um tipo penal independente; na Costa Rica, promulgou-se uma lei especial de penalização da violência contra a mulher, na qual se inclui, entre outros delitos, o feminicídio; em El Salvador, Guatemala e Nicarágua, o delito de feminicídio foi incorporado à leis especiais integrais que além de incluírem outros tipos penais, estabelecem órgãos especializados em matéria penal para investigar e sancionar os delitos criados por aquela lei, e definem mecanismos encarregados de criar e executar políticas públicas para prevenir, atender e proteger as mulheres vítimas de atos de violência. (VILCHEZ, 2008).

Segundo Vilchez, a vantagem de contar com leis integrais acerca do feminicídio e da violência contra as mulheres, é que nelas se incorporam aspectos importantes para a compreensão e aplicação do delito de feminicídio, e para sua investigação, sanção e reparação.

MARCOS NORMATIVOS NACIONAIS

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, elenca os direitos e garantias fundamentais de mulheres e homens, dentre os quais, o direito à vida, à igualdade, a não discriminação e à segurança. O inciso I do artigo mencionado estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e deveres, nos termos da Constituição.

O artigo 226, por sua vez, estabelece que a família tem especial proteção do Estado, e prevê, em seu §8º, que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”

Já no plano infraconstitucional, um novo paradigma legal foi criado com o advento da Lei n. 11.340, de 07/08/2006, popularmente denominada de Lei Maria da Penha, uma legislação específica de proteção à violência doméstica e familiar contra as mulheres.

A lei, conforme dispõe artigo 1º, foi criada após denúncia feita por órgãos internacionais de proteção aos direitos das mulheres e pela farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes – ela própria vítima de violência doméstica por mais de 23 anos – ao Sistema Internacional, através da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização Dos Estados Americanos (OEA), pelo não cumprimento dos compromissos firmados na Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e na Convenção Interamericana pra Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, tratados internacionais com efeito vinculativo, ratificados pelo Brasil.

O diploma legal assegura a todas as mulheres, independente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura e nível educacional, idade e religião, o gozo de seus direitos, e cria mecanismos para coibir essa violência específica, dispondo sobre os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher e estabelecendo uma série de medidas de proteção e assistência.

Para a proteção dos direitos das mulheres, a Lei prevê medidas protetivas de urgência em favor da vítima e que obrigam o agressor a cumpri-las, estabelece novas atribuições aos agentes públicos e, mais importante, cria medidas integradas de prevenção, de assistência e de repressão à violência.

Ademais, a Lei n. 10.778/2003 estabeleceu a notificação compulsória da violência contra a mulher que for atendida pelos serviços de saúde públicos e privados, obrigando todo e qualquer serviço de saúde a notificar a violência, seja ela praticada contra a mulher no âmbito doméstico, familiar, praticada por parceiro, convivente ou não, ou perpetrada por qualquer pessoa ou ainda pelo Estado.

Quanto ao impacto da Lei Maria da Penha na diminuição dos feminicídios, um estudo do Ipea constatou que não houve redução nas taxas anuais de mortalidade, comparando-se os períodos antes e depois da vigência da Lei. As taxas de mortalidade por 100 mil mulheres foram de 5,28 no período de 2001-2006 (antes da Lei) e 5,22 entre 2007-2011 (depois da Lei). Houve um sutil decréscimo na taxa do ano de 2007, imediatamente após a vigência da Lei, porém, nos últimos anos, os números retornaram aos patamares inicialmente registrados.

Após a divulgação dos resultados da pesquisa, a Lei foi bastante criticada. Porém, é fundamental ter em mente, em primeiro lugar, que a aplicação da Lei não ocorre nos termos previstos. As medidas protetivas, que incluem a estipulação de distância mínima entre agressor e vítima, por exemplo, não funcionam. As casas de acolhimento não existem em números suficientes, e a mulher agredida não tem para onde ir, sendo obrigada a permanecer junto ao agressor, ou procurar a família, cujo endereço o agressor geralmente conhece – fato alarmante, ao considerar-se que 85% das pessoas entrevistadas em uma pesquisa realizada pelo Instituto  Patrícia  Galvão  concordam  que  as mulheres que denunciam seus parceiros correm mais risco de sofrer assassinato.

A Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República está construindo uma casa de passagem em cada capital brasileira – iniciativa importante, mas que não será capaz de resolver o problema oferecendo algumas vagas para cidades com milhões de habitantes.

Contudo, a mídia e os esforços concretos do governo em difundir informações sobre a Lei Maria da Penha e o conceito de violência doméstica tem surtido efeito. A pesquisa do Instituto Patrícia Galvão, sobre a percepção da sociedade sobre violência e assassinato de mulheres, revelou que apenas 2% dos entrevistados nunca tinha ouvido falar da Lei Maria da Penha. Em 2011, outro levantamento, do Instituto Avon/Ipsos, indicou que, apesar de 94% dos entrevistados já terem ouvido falar na lei, somente 13% a conheciam bem.

Em segundo lugar, ressalta-se que a suposta não diminuição da violência e dos feminicídios íntimos também está ligada ao aumento das denúncias, ou seja, a diminuição da subnotificação ocorrida nesses casos. Como mostram os resultados do Instituto Patrícia Galvão, para 86% dos entrevistados, as mulheres passaram a denunciar mais os casos de violência doméstica após a Lei Maria da Penha. A Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, apontou que em 2007, o número de denúncias de violência doméstica não passava de 50 mil. Em 2012, o número aumentou para 732.468 mil.

Um dos grandes avanços da lei é justamente o reconhecimento de que existe violência doméstica, tema que não era tratado sob nenhum aspecto antes do advento da legislação especial. Entre os anos de 2006 e 2007, período de promulgação da lei, foram promovidos inúmeros debates sobre o tema, o que lhe rendeu uma visibilidade grande, e a violência doméstica parou de ser vista como algo pontual, passando a ser tratada como fruto de uma cultura que subordina as mulheres ao poder dos homens.

Metade dos entrevistados na pesquisa do Instituto Patrícia Galvão afirmaram que a forma como a Justiça pune não reduz a violência contra a mulher. O resultado mostra que a ideia de que a existência de uma lei penal vai prevenir a prática de novos crimes deve ser superada. Se o Direito Penal comprovadamente não resolve fenômenos criminais menos complexos, como esperar que solucione a violência de gênero? Uma simples previsão normativa, e a sanção que cabe a quem sobre ela incide, não mudarão comportamentos que se fundam em conformações sociais e culturais.

Além disso, as medidas protetivas previstas pela lei parecem ter sido deixadas de lado frente à ânsia punitivista, que aposta e confia na prisão como forma de solução de conflitos sociais, do mais simples ao mais complexo. Tais medidas protetivas são essenciais para quebrar o ciclo de violência no qual a vítima de violência doméstica está inserida, e que, não raramente, termina em um feminicídio – 92% das pessoas ouvidas pelo Instituto Patrícia Galvão concordam que, quando as agressões contra a esposa/companheira ocorrem com frequência, podem terminar em assassinato. O medo de ser assassinada fica em segundo lugar – atrás da vergonha – na lista de razões pelas quais a mulher que sofre agressão não se separa do marido.

A pesquisa do Instituto Avon conclui que, apesar do significativo avanço que resultou da promulgação, em 2006, da Lei Maria da Penha, a grande aliada na repetição da violência contra a mulher é a invisibilidade sob a qual se acobertam comportamentos opressores, ainda tidos como naturais.

A Lei Maria da Penha não resolve o problema da violência estrutural, nem muda um comportamento entranhado na sociedade, mas serve para revelar o retrato de um país que ainda subordina as mulheres ao poder dos homens. Ela não resolve o problema da violência, mas dá meios para a mulher conseguir viver dignamente longe do agressor.

É bastante precipitado acreditar que a lei, em vigência há apenas nove anos, sanará milênios de opressão e violência. Ela foi um avanço simbólico, discursivo, político, que deu visibilidade a uma realidade que ficava circunscrita ao ambiente doméstico – e por trazer essa visibilidade, é por si só um avanço.