A Sociedade

Por Leila Borges de Souza | 07/12/2013 | Contos

O conto “A sociedade”, de Alcântara Machado, narrado em terceira pessoa, oferece duplicidade de sentido quanto ao título, pois a palavra “sociedade” pode aludir ao ambiente social paulistano na década de 20. Mas, por outro lado, apresenta uma relação de poder econômico. Ambos os sentidos estão em consonância com o enredo, que retrata a formação de uma sociedade miscigenada, pois gradativamente ocorre a mistura entre famílias brasileiras com os italianas. Detectamos, no entanto, algum traço de ironia na escolha do título, por retratar os arranjos matrimoniais sendo resolvidos levando em consideração os interesses econômicos, acima dos sentimentos.

O espaço em que a história transcorre é o ambiente urbano da cidade de São Paulo, mais precisamente o bairro da Liberdade. A linguagem é bastante concisa e objetiva. O conto é formado por frases curtas em que o autor narra apenas o que é relevante:

— Filha minha não casa com filho de carcamano!

A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas ( MACHADO, 2005 p.41).

A narração do conto está impregnada por elementos metonímicos do início ao fim. O narrador utiliza frequentemente essa figura de linguagem na descrição dos personagens e de suas ações. Como exemplo de metonímia pode-se citar a cena de Teresa Rita na sacada, acenando para Adriano Melli: “A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino” (MACHADO, 2005, p.42). Nesse trecho temos a ocorrência de metonímia, na representação do todo (Teresa Rita) pela parte (mão), e a ocorrência de sinédoque, quando o chapéu representa seu dono, Adriano.

Outra marca na linguagem do narrador é a constante citação de marcas de produtos em destaque, na época, como marcadores do poder econômico da família italiana (Lancia) ou do bom gosto da família paulistana (vestido do Camilo):

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido de Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.

Outro recurso de linguagem largamente empregado pelo narrador, são as onomatopeias, espalhadas por todo o conto: o som do claxon do exemplifica a presença dessa figura:

Uiiiiia-uiiiiia! Adriano Meli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C sabe: uiiiiia-uiiiiia! (MACHADO, 2005, p.42).

Há também o emprego de onomatopeia par descrever o som produzido pelo saxofone da banda que tocava no Clube Paulistano, assemelhando-se a uma vaia:

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!( MACHADO, 2005. p.43).

O conto “A Sociedade”, assim como os demais contos de Antônio de Alcântara Machado, retrata basicamente fatos relacionados à cidade de São Paulo por volta do fim do século XIX e início do século XX, período em que se operavam grandes transformações sociais, econômicas e culturais, diretamente influenciadas pela chegada e adaptação do imigrante italiano. Mas não só a colaboração desses europeus para o desenvolvimento social está retratada na obra de Alcântara Machado, mas também as dificuldades e o preconceito que essa gente teve que enfrentar até conquistar respeito em terras brasileiras. 

Se por um lado o preconceito fica latente na fala e atitude de alguns personagens paulistanos do conto (“— Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão da Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?”), por outro, há também a revelação das artimanhas que os italianos em ascensão econômica usavam para conseguir entrar numa família tradicional da sociedade paulistana, ganhando um “nome” respeitado (Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda).

O conto “A Sociedade” narra o conflito entre duas famílias: de um lado a família tradicional paulista de José Bonifácio de Matos e Arruda, que inicialmente despreza os italianos, e de outro a família de Salvatore Melli, imigrantes italianos que se estabeleceram em São Paulo como comerciantes. O motivo da aproximação entre essas famílias são os filhos, o rapaz Adriano Melli e a moça Teresa Rita, que acabam formando um jovem casal.

A repulsão inicial que o romance dos dois provoca na família do Conselheiro é vencida por uma proposta de “troca” de interesses, em que um “nome” é negociado em troca de uma sociedade nos negócios. A partir da proposta feita por Salvatore Melli, seu nome deixa de ser usado pela família paulistana, que passa a denomina-lo de “o capital”, pois o seu dinheiro é tudo o que lhe interessa.

Nota-se uma diferença do personagem Salvatore Melli para os demais personagens descritos em outros contos de Alcântara Machado, pois este é apresentado como um homem de poder aquisitivo acima da família de Tereza Rita, que tem tradição mas está em decadência econômica. A ascensão econômica dos italianos é ironizada na expressão pejorativa usada pela mãe de Teresa Rita: “carcamano” ou carca la mano, que significa que os italianos pressionavam a balança com a mão para roubarem no peso das mercadorias. Embora Salvatore Melli possuísse poder aquisitivo melhor que a família de Teresa Rita, o italiano não deixou de ser vítima de preconceito da família da jovem. Nota-se que o nome da mãe não aparece por estar em evidência que se trata de família tida como “quatrocentona”, ou seja, de família tradicionalíssima de São Paulo.

O italiano de Alcântara Machado é o astucioso pequeno comerciante da nova burguesia paulista, filho do “carcamano”, o homem sem escrúpulos que carca la mano, que apóia a mão na balança para lhe alterar o peso e que se integra numa sociedade tardiamente portuguesa com o seu desabuso de ex mandolineiro”. (STEGAGNO, 2004. p.502)

Mas, apesar de sofrer preconceito por parte da família da jovem, Adriano insiste em conquista-la, usando do poder da sedução, o jovem passa por várias vezes em frente à casa da moça, com seu automóvel. Notamos que o interesse que também a moça demonstra nessa relação está mais ligado aos bens que ao próprio rapaz. Esse interesse material se evidencia na linguagem metonímica com a qual o narrador substitui a figura do moço pela de sua posse: o automóvel novinho:

O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço.

O Lancia passou como quem não quer. Quase parando (MACHADO, 2005.p.41).

 Se o rapaz possuía bens materiais, que exibia como trunfos para conquistar a mocinha, esta, por sua vez, numa posição superior a ele (no andar de cima do sobrado), lia livros de Henri Ardel[1], elemento ligado aos bens culturais.

O momento do primeiro encontro dos jovem casal foi num baile, sem a presença dos pais. Os jovens então têm a chance de dançar e conversar. Observamos que o diálogo entre os dois acontece em meio a outros acontecimentos, também descritos pelo narrador, ocorrendo um jogo de simultaneidade: há os sons dos instrumentos musicais; a letra da música entoada pelo vocalista; a conversa de um professor com um aluno e, em meio a esse burburinho, o diálogo entre a mocinha brasileira e o moço italiano:

Os pares dançarinos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feitas e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.

— Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.

— Não!

— Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.

... mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!

— Meu pai quer fazer um negócio com o seu.

— Ah sim?

Cristo nasceu na Bahia, meu bem...

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.

... e o baiano criou! (MACHADO, 2005.p.43).

A simultaneidade fica bastante evidente na forma intercalada que as ações são descritas, marca da linguagem modernista inovadora de Alcântara Machado.

Após o fragmento da cena do baile, o narrador parece nos enfatizar que o italiano tinha interesse em casar seu filho com a filha de José Bonifácio e, como havia percebido que a família estava arruinada nos negócios, tratou de fazer a proposta de sociedade. O narrador pontua Salvatore como a personificação do capital, pois seus bens  materiais acabaram convencendo José Bonifácio a “fechar o negócio”. Ao citar a fábrica como uma das propriedades do italiano, o narrador também se refere ao empreendimento símbolo do progresso que surgia na cidade de São Paulo naquele período.

A Sociedade proposta por Salvatore Melli visava um negócio em que todos ficavam no lucro. O italiano teve a ideia de propor a Sociedade, por interesse de aumentar a sua renda da fábrica, pela influência social do Conselheiro, mas visava também o interesse do seu filho Adriano Melli em casar-se a com a jovem brasileira Teresa Rita. Embora José Bonifácio relutara contra a ideia de sociedade, ele também tinha interesse nesse negócio, embora seu orgulho tenha inicialmente falado mais alto, talvez por ser de família tradicional paulistana e não admitir que já estava empobrecido. Essas famílias como eram reconhecidas por geralmente ter vários nomes, como assina o paulista José Bonifácio de Matos e Arruda.

No diálogo em que o italiano expõe sua proposta, percebemos a mistura das línguas portuguesa e italiana na fala de Salvatori, fato bastante corriqueiro entre os imigrantes, que demoravam para dominar a língua falada no Brasil, e acabavam virando motivo de chacota, por preconceito linguístico:

- O doutor...

Eu não sou doutor, Senhor Melli.

-Parlo assim para facilitar. Não é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani. Na outra semana, quando quiser.

Io o resto a sua disposição. Ma pensa bem! (MACHADO, 2005.p.44).

Depois de concretizar a sociedade, os pais de Teresa Rita parecem vencer os preconceitos iniciais (o dinheiro compra a aceitação) e acolhem o pedido de casamento de Adriano Melli. Todavia, impõem um modelo para o convite, no qual ironicamente aparece a palavra “contrato”. Alcântara Machado surpreende seu leitor com mais uma inovação estética: emprega recursos visuais para demostrar como foi escrito o convite:

O Conselheiro José Bonifácio

de Matos e Arruda

e senhora

têm a honra de participar a V.

Exa. e Exma. família o contrato

de casamento de sua filha Teresa

Rita com o Sr. Adriano Melli.

Rua da Liberdade, n.259‑C.

 

O Cav. Uff. Salvatore Melli

e senhora

têm a honra de participar a

V. Exa. e Exma. família o contrato

de casamento de seu filho

Adriano com a senhorinha

Teresa Rita de Matos Arruda.

Rua da Barra Funda, n.427.

S. Paulo, 19 de fevereiro de 1927.

 

O convite é a síntese do rumo diferente que a história tomou a partir da revelação dos interesses econômicos: antes a família da jovem Teresa Rita tinha preconceito, não admitia que a filha casasse com o italiano. Através do convite percebemos que os antigos valores. A dignidade e até mesmo a honra da filha deixam de ser importantes para essa família paulista, perante o poder de convencimento do dinheiro. Pelo convite, o italiano, que antes era chamado de carcamano, passa a ser designado como “Cavaliere Ufficiale”.

O desfecho do conto é surpreendente, pois o noivo, em plena comemoração do noivado, revela, sem cerimônias, as dificuldades financeiras que a família da noiva já vinha enfrentando há algum tempo:

No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase sempre fiado e até sem caderneta. (MACHADO, 2005.p.45).

Por essa atitude, que coloca a todos numa situação de constrangimento, os defeitos de ambos os lados ficaram revelados: a falta de poder material da família brasileira e a falta de poder cultural da família italiana.

O desfecho do conto é surpreendente, pois o noivo, em plena comemoração do noivado, revela, sem cerimônias, as dificuldades financeiras que a família da noiva já vinha enfrentando há algum tempo:

No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase sempre fiado e até sem caderneta (MACHADO, 2005.p.45).

Por essa atitude, que coloca a todos numa situação de constrangimento, ambos os lados tem suas fraquezas reveladas: Adriano Melli tenta mostrar a todos a generosidade de sua família ao conceder a venda a prazo, confiando na palavra da família da noiva. Mas, se essa atitude coloca em evidência a decadência econômica dos Matos e Arruda (problema material), também é uma demonstração do comportamento espontâneo e pouco refinado típico dos imigrantes carcamanos (problema cultural).

Em “A sociedade”, vemos a questão da miscigenação racial que começa a se instaurar na sociedade paulistana, o que colabora para que a imigração italiana vá sendo mais facilmente aceita na sociedade paulistana. Porém, essa aceitação precisa ocorrer de ambos os lados.



[1] Henri Ardel era o pseudônimo de Berthe Palmyre Victorine Marie Abraham (AmiensFrança4 de junho de 1863 – ParisFrança1938), escritora francesa dedicada a romances sentimentais para moças. 

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