A sobrevivência dos rituais no mundo contemporâneo
Por Gustavo Uchôas Guimarães | 28/03/2016 | HistóriaOs rituais são muito antigos na história humana. Já no período Paleolítico (surgimento da humanidade até a Revolução Neolítica, cerca de 10 mil a.C.), o homem enterrava seus mortos com flores e pintava animais nas paredes das cavernas (muito provavelmente como parte de sua espiritualidade). A partir de então, os rituais foram ganhando complexidade e importância entre os diversos grupos humanos, enraizando-se de tal forma que sobrevive mesmo no mundo tão racional e científico em que vivemos.
Mircea Eliade, historiador romeno, assim fala do caráter ritualístico do ser humano:
Quando acaba de nascer, a criança só dispõe de uma existência física, não é ainda reconhecida pela família nem recebida pela comunidade. São os ritos que se efetuam imediatamente após o parto que conferem ao recém-nascido o estatuto de 'vivo' propriamente dito; é somente graças a estes ritos que ele fica integrado na comunidade dos vivos. [...] Para certos povos, [...] a morte de uma pessoa só é reconhecida como válida depois das cerimônias funerárias, ou quando a alma do defunto foi ritualmente conduzida à sua nova morada, no outro mundo, e lá embaixo foi aceito pela comunidade dos mortos. (ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. p. 143-144)
O texto de Mircea Eliade pode ser entendido e estendido a todos os aspectos da vida humana (não somente o religioso). O caráter ritualístico humano extrapola os limites religiosos para se fazer presente, por exemplo, na esfera legal. Podemos ilustrar isto com a necessidade de se registrar uma criança após o seu nascimento. Até que um responsável vá a um cartório e registre o recém-nascido, este é apenas um ser físico, mas não um "ser existente" aos olhos da lei, do Estado e da sociedade. O registro cartorial virou um rito a ser obrigatoriamente cumprido a fim de que a existência do indivíduo seja reconhecida legal e socialmente. O registro (não o cartorial) é também um rito que vai acompanhar o indivíduo durante toda a sua existência, sendo condição para o acesso a educação, saúde, emprego, cultura, etc. Veja que o caráter ritualístico do ser humano não é restrito a sociedades ditas "primitivas" e "tribais" ou apenas a esfera religiosa.
Outra ilustração que podemos utilizar é o conjunto ritualístico em torno da morte e que também extrapola os aspectos religiosos / espirituais. Uma pessoa morta normalmente é liberada para os procedimentos funerários após ser cumprido o rito de registro (certidão de óbito).
Além do nascimento e da morte, todas as situações da vida cotidiana contemporânea ainda são permeadas por rituais que expressam a "paleolítica" inclinação humana para gestos, palavras e símbolos que marquem os momentos da vida. Podemos ver isto, por exemplo, nas cerimônias de posse de governantes e autoridades, nas rotinas escolares e até nos hábitos mais triviais das pessoas ao longo das atividades diárias. E até mesmo na ciência, com toda a sua racionalidade e rigor metodológico, também são imprescindíveis os rituais (métodos, gestos, etc) que garantem a confiabilidade, a autenticidade e a seriedade dos estudos científicos.
Por tudo isto, é certo afirmar que o ser humano, por mais "evoluído" e "científico" que seja, não perde "essências paleolíticas" que lhe são úteis e importantes até hoje, ajudando a compor e ao mesmo tempo mostrar suas crenças, mentalidades e práticas.