A singularidade do campesino
Por Valmere Santana | 31/01/2016 | SociedadeMarx nos diz que o homem é posto na natureza apenas com sua capacidade para o trabalho e que, com este, cria o instrumental necessário para produzir sua condições de existência e transformar o meio em cultura. Mas Vygostsky vai além e mostra que, além de transformar o meio, o homem transforma-se a si mesmo pela cultura, construindo sua própria rede neuronal no seu processo de aprendizagem e de ação. Logo, não há como fugir da nossa essência de seres sociais que se constroem dentro da cultura.
Contraditoriamente, o mesmo ser que constrói seu instrumental para atuar no meio e que constrói redes neuronais para permitir sua utilização e aperfeiçoamento, também pode construir lógicas altruístas ou perversas de utilização dos mesmos, contribuindo para uma existência integrada pela solidariedade ou pela exclusão. Mas entre uma lógica e outra há um elo de ligação, a apropriação do instrumental produzido pelo homem para lidar com o meio, aquilo que Marx denomina “meios de produção”. Quando o produtor é detentor ao mesmo tempo da força de trabalho e dos meios de produção, detém automaticamente a posse da produção, mas se é dono apenas da força de trabalho e produz utilizando meios de produção que não lhes pertence, ou paga pelo aluguel destes ou produz para o proprietário deles, alienando-se do produto de seu trabalho.
O universo produtivo da sociedade capitalista é caracterizada pela dissociação entre o trabalhador e o produto de seu trabalho, uma vez que sua base é a propriedade privada dos meios de produção. Isto se dá porque sem o instrumental necessário para produzir, o indivíduo não tem outra alternativa senão vender sua força de trabalho a quem lhes tem a propriedade, recebendo para tanto uma compensação na forma de salário, com o qual precisa suprir as necessidades vitais para continuar produzindo.
O campesino é um ser destoante nesse universo capitalista. Por possuir os meios de produção – terra, ferramental, sementes, fertilizantes orgânicos etc -, assume uma existência independente, uma vez que produz praticamente tudo aquilo de que necessita e demanda minimamente monetarizar sua produção para estabelecer trocas no mercado. Seu modo de viver e de produzir não se encaixa dentro da dinâmica capitalista, exatamente porque seu consumo não se realiza no mercado. Em suma, o campesino é um ser singular no capitalismo, um empecilho à plena realização do sistema em suas relações de mercado.
Tudo isto explica o movimento atual da estrutura capitalista no sentido de desterritorialização do campesinato e de alargamento das fronteiras do agronegócio e até da aparentemente despretenciosa “agricultura familiar”. Do agronegócio porque é a expressão autêntica da lógica do capital no campo, tanto nas relações produtivas caracterizada pelo trabalho assalariado, quanto por sua integração ao mercado pela perspectiva fundiária, de exploração ambiental, de aquisição de insumos (fertilizantes, agrotóxicos, sementes) e de mecanização da produção. Mas por que da agricultura familiar? Simples, porque apesar de não dissociar o trabalho do seu principal meio de produção, a terra, ainda assim a agricultura familiar pode perfeitamente ser integrada ao mercado, quer pelo consumo, quer pela comercialização da produção, fato que monetariza as relações e as insere na lógica do mercado.
O conjunto dessas pressões tem causado uma rápida transformação das relações produtivas no campo, culminando por sacrificar aquele que não cabe nas novas relações que se instauram: o campesino. Salvar esse ícone produtivo que ousa ser livre dentro de uma ordem econômica tão opressora significa, antes de tudo, preservar viva a prova de que é possível resistir ao capitalismo e existir independente dele.