A RELIGIÃO E O  TERRORISMO RELIGIOSO

Por Raquel Julia Silva Vital | 02/09/2016 | Religião


1. INTRODUÇÃO

O terrorismo religioso há algum tempo vem sendo objeto de estudo e pesquisa na área das ciências da religião, nas mais variadas partes do mundo e dentro de contextos sociais diversificados. A religião foi, historicamente, o instrumento mais amplo e efetivo da legitimação. Toda legitimação mantém a realidade socialmente definida e formatada e a presença da religião na origem da sociedade humana foi fundamental.
Os principais conflitos do final do século XX e dos inícios do novo milênio possuem um transfundo religioso. Assim na Irlanda, em Kosovo, na Kachemira, no Afeganistão, no Iraque e no novo Estado Islâmico, extremamente violento. Ficou claro em Paris com o assassinato dos cartunistas e outras pessoas por fundamentalistas islâmicos. Como se integra a religião neste contexto? Mesmo não constituindo a causa determinante do terrorismo, para muitos, a religião é entendida como um fator agravante dos conflitos de ocupação estrangeira, de desigualdades e de violência. Segundo Krueger (2007, p. 81), "62% dos atentados terroristas têm como alvo sociedades de religião diferente da sua, o que parece ser ainda mais forte em ataques suicidas, onde, como mostra o cientista Robert Pape, em todos os casos analisados de 1980 até 2003, a sociedade ocupante e a ocupada são de religiões diferentes". Isso acontece porque o movimento de libertação nacional se recrudesce quando a sociedade ocupada sente sua identidade e, portanto, existência, ameaçada por transformações radicais, o que pode ser proporcionado pela diferença religiosa entre ocupantes e ocupados nos campos de refugiados.
Esse tipo de violência se concretiza por meio das pregações religiosas, em ataques às instituições concorrentes no âmbito religioso dos mais adversos, às
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: familiavital5@gmail.com 2 outras expressões religiosas, principalmente o islamismo. À luz de alguns autores, tentaremos fazer um breve relato sobre a prática da religião e do terrorismo religioso, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto.


2. A FUNÇÃO DA RELIGIÃO

O religioso judeu hassídico Abraham Joshua Heschel afirma na sua obra Deus em busca do Homem (1975, p. 75) que, "por meio da religião, o homem se liga ao um ser absoluto e originante, ao transcendente". Assim se compreende quem pratica ou professa qualquer religião. Independentemente dos entendimentos deste ser transcendente ou da religião e das diversas expressões de religiosidade, a priori faz-se necessário que todos, crente ou não crente, compreendam o fenômeno com sua especificidade, para discerni-lo dos demais que o circunda. Sobre isso, afirma Mircea Eliade, é verdade que não existem fenômenos religiosos 'puros', assim como não há fenômeno única e exclusivamente religioso. Sendo a religião uma coisa humana, é também, de fato, uma coisa social, linguística e econômica - pois não podemos conceber o homem para além da linguagem e da vida coletiva. Mas seria vão querer explicar a religião por uma destas funções fundamentais que definem o homem, em última análise. [...] Para não sairmos do nosso âmbito: não pensamos contestar que o fenômeno religioso possa ser ultimamente encarado de modos diferentes; mas importa, antes de mais, considerá-lo em si mesmo, naquilo que contém de irredutível e de original. (ELIADE, 1990, p.17-18).
Mesmo o judaísmo, que se considera religião revelada e conduzida pela mão dos patriarcas Abraão e Moisés, bem como dos profetas, não produzida diretamente pela cultura, não pode prescindir das mediações culturais, sem as quais não seria um fenômeno histórico, datado e comunicável. Portanto, inteligível.
O fenômeno humano e social da religião, sendo um fato simbolicamente plural, relaciona-se com o conjunto da vida de um povo e das pessoas, em particular, sendo uma resposta destas pessoas à experiência com o transcendente.
Neste sentido, a religião não só é pluridimensional, permitindo várias formas de leitura ou de interpretação, mas supõe a cultura para veicular sua concepção de transcendente, do homem e do mundo. Aliás, constitui-se em fato duplamente 3 cultural. Dialeticamente, pode-se afirma que, ela é influenciada e influencia (LLANO CIFUENTES, 1971, p. 64).
No Brasil, hoje, as crenças de caráter sincrético são realidade a despeito da diferença entre dominadores e dominados, a despeito da necessidade de resistência dos dominados ou de imposição cultural dos dominadores. Antes, estão presentes nas diversas camadas sociais. Elas são realidades que se evidenciam através de elementos não apenas católicos ou das religiões oriundas da África, mas também em outras formas religiosas oriundas de outras tradições, como por exemplo, o kardecismo2 que incorpora elementos de religiões orientais, ou como nos chamados movimentos de Nova Era, que se utilizam paralelamente de elementos de diversas orientações religiosas. Elas estão presentes na formação da Umbanda, expressão religiosa eminentemente brasileira3
. Elas sobrevivem, e com frequência se ampliam, através da fé e da devoção popular, da relação do indivíduo com a intuição do que para ele se revela como uma manifestação do sagrado, a despeito das teologias específicas das formas religiosas envolvidas que em grande medida a desaprovam.
Ousamos dizer que, para ser compreendido em sua esfera, o sagrado não é redutível à luta de classes.
O antigo Israel foi influenciado e acolheu aspectos das religiões dos povos vizinhos, mas o forte monoteísmo javista4 conseguiu "purificá-los" de costumes pagãos e impedir a "contaminação dos ídolos". O Cristianismo, embora não possa ser entendido sem sua dependência originária do Judaísmo, que define a base de seu conteúdo, distingue-se da vinculação devido ao apelo universalista que o obrigou, desde o início, a admitir o processo necessário de enculturação. Por fidelidade a si mesmo e por razões de sobrevivência, a dispensa da circuncisão facilitou ambos os processos. Por estas razões intrínsecas, e devido às primeiras
2 Doutrina reencarnacionista formulada por Allan Kardec (pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail, escritor francês, 1804-1869), que pretende explicar, segundo uma perspectiva cristã, o movimento cíclico pelo qual um espírito retorna à existência material após a morte do antigo corpo em que habitava, o período intermediário em que se mantém desencarnado, e a evolução ou regressão de caráter moral e intelectual que experimenta na continuidade deste processo.
Cf.https://www.google.com.br/?gferd=cr&ei=dNWVuOLIcnM8AeEt4mgDQ&gws_rd=ssl#q=kardecismo
. Acessado dia 02 de março de 2016.
3O pai da umbanda. In: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/o-pai-da-umbanda.
Acessado dia 03 de março de 2016.
4 A tradição javista é caracterizada pelo uso do nome (Iahweh) Javé para Deus. Essa forma de nominar Deus aparece nos textos em hebraico, da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, mas quando foram traduzidos para o português, na maioria das versões, encontramos apenas Senhor ou Deus. Cf.
http://www.abiblia.org/ver.php?id=3923. Acessado dia 02 de março de 2016.
4 perseguições em território judaico, adentrou e se difundiu no mundo helênico. Logo após, entrou também em Roma. Nestas incursões, tanto influenciou quanto recebeu forte contribuição das culturas grega e latina, apesar da perseguição do Império Romano. Tornou-se uma Igreja de gentios e não mais de judeus convertidos, a não ser excepcionalmente.
Não sem razão escreveu Samuel P. Huntington em seu conhecido livro O choque de civilizações (1997), sobretudo no capítulo três quando ele questiona sobre a civilização universal se ela está se modernizando ou se ocidentalizando como acreditava V. S. Naipaul5
. Para Huntington, no mundo moderno, a religião é uma força central, talvez a força central que motiva e mobiliza as pessoas. O que em última análise conta para as pessoas não é a ideologia política nem o interesse econômico; mas aquilo que com que as pessoas se identificam são as convicções religiosas, a família e os credos. É por estas coisas que elas combatem e até estão dispostas a dar a sua vida (HUNTINGTON. 1997. p.79).
Ele critica a política externa norte-americana por nunca ter dado o devido peso ao fator religioso, considerado algo passado e ultrapassado. Ledo engano. É o substrato dos mais graves conflitos que estamos vivendo

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