A RELEVÂNCIA DA REPERCUSSÃO DO FATO NO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA...
Por HUMBERTO MENDES NASCIMENTO | 14/03/2015 | DireitoA RELEVÂNCIA DA REPERCUSSÃO DO FATO NO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA JUNTO AO ILÍCITO PENAL DE CONTRABANDO OU DESCAMINHO: uma crítica ao critério “valor mínimo” estabelecido pela Lei nº. 10.552/2002[1]
Heitor Ferreira de Carvalho[2]
Humberto Mendes Nascimento[3]
Maria do Socorro Almeida de Carvalho [4]
Sumário: Introdução; 1. Aspectos estruturais do crime de contrabando ou descaminho. 2. A incidência do Princípio da Insignificância na natureza delituosa do crime de contrabando ou descaminho. 3. A eficácia do critério “valor mínimo” ante a subjetividade da relevância da repercussão do fato no princípio da insignificância na aplicabilidade do ilícito penal de contrabando ou descaminho. 4. Conclusão. Referências.
RESUMO
O presente estudo tem por finalidade verificar a aplicabilidade do princípio da insignificância no crime de contrabando ou descaminho, uma vez que este tem por conseqüência lógica definir o que é insignificante para o direito penal brasileiro. Partindo-se desse pressuposto, analisa-se criticamente a eficácia do critério “valor mínimo” deste princípio, estabelecido pela Lei nº. 10.552/2002, ante a subjetividade da relevância da repercussão do fato no ilícito penal de contrabando ou descaminho.
Palavras-chave: Contrabando ou Descaminho. Princípio da Insignificância. “Valor Mínimo”.
INTRODUÇÃO
A discussão acerca da defesa incondicional da moralidade da Administração Pública justifica a relevância do presente trabalho, no sentido de legitimar a eficácia da estrutura tributária do Estado.
A aplicabilidade do princípio da insignificância, demarcado por sua estrutura subjetiva, contrasta com a tentativa do poder público de estabelecer parâmetros de ação no processo de materialização da tipicidade penal do crime de contrabando ou descaminho.
Dessa forma, faz-se necessário elucidar o conflito da interpretação que adéqua o princípio da insignificância, no caso concreto, ao tipo penal do art. 334 do Código Penal (CP), qual seja, o crime de contrabando ou descaminho.
Sendo assim, configuram-se como objetivos deste trabalho: entender o crime de contrabando ou descaminho; compreender o princípio da insignificância e sua incidência na natureza delituosa do crime em questão; bem como, verificar a eficácia do critério “valor mínimo” ante a subjetividade da relevância da repercussão do fato do princípio da insignificância na aplicabilidade do ilícito penal de contrabando ou descaminho.
Utilizou-se para a realização desse estudo o método dedutivo, uma vez que este é o procedimento adequado para as pesquisas em que se investiga a aplicabilidade de postulados teóricos a uma realidade empírica. Sendo assim, realizou-se o estudo denominado “estado da arte”, cujo objeto pesquisado é um conjunto de fontes bibliográficas (livros, artigos científicos, dissertações de mestrado e/ou doutorado, relatórios de pesquisa), no sentido de perceber quais as principais explicações para o problema em tela, como também, a busca de jurisprudência atinente à questão da aplicação do princípio ao ilícito penal ora analisado.
Para tanto, este artigo constitui-se de três capítulos. No primeiro capítulo entende-se de que modo a doutrina compreende a delito de contrabando ou descaminho, demonstrando classificação, elementos objetivos, sujeitos do delito, consumação e tentativa, elemento subjetivo e bem jurídico tutelado. No segundo capítulo compreende-se a natureza jurídica do princípio da insignificância como elemento de desqualificação da incidência do tipo penal à conduta no crime de contrabando ou descaminho. No terceiro e último capítulo, verifica-se as limitações do critério valorativo do “valor mínimo” do dano gerado à sociedade e à Administração Pública, previsto em lei, como insuficiente par mensurar o desvalor da conduta ante o caso concreto, em razão do seu grau de subjetividade.
1 ASPECTOS ESTRUTURAIS DO CRIME DE CONTRABANDO OU DESCAMINHO
O tipo penal disposto no art. 334 do Código Penal apresenta como classificação doutrinária a natureza de crime comum em relação ao sujeito ativo e crime próprio quanto ao sujeito passivo. Exige o desejo livre e consciente de praticar a conduta delituosa, qual seja, o dolo, sem o fim especial de agir. É crime de ação livre, podendo ser a conduta materializada como comissiva ou omissiva própria. Quanto ao tempo do crime, é instantâneo, tendo os seus efeitos caráter permanente. Em relação ao agente que pratica a conduta é unissubjetivo e quanto à prática do ato pode ser unissubsistente (não admitindo tentativa) e havendo o caminho do crime (iter criminis) plurissubsistente (admitindo tentativa). Segundo Rogério Greco (2013), o tipo penal ainda apresenta-se como transeunte assim qualificado por não produzir vestígios, salvo, se for possível a realização de perícia. (GRECO, 2013, p. 553).
A esse respeito, José Adilson do Nascimento Rodrigues (2011b) esclarece ainda sobre o crime, como:
[...] formal (crime que não exige, para sua consumação, resultado naturalístico, consistente na produção de efetivo dano para a Administração Pública) nas modalidades 'importar' e 'exportar'. Caso a mercadoria seja proibida de ingressar ou sair do País, o simples fato de fazê-lo consuma o crime, embora não se tenha produzido um resultado passível de realização fática. É formal (delito que não exige para sua consumação a ocorrência do resultado naturalístico), também na forma “iludir o pagamento”. É de forma livre, pois pode ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente; comissivo, na forma “importar” e “exportar”, bem como comissivo ou omissivo (implicando em abstenção) na modalidade “iludir o pagamento”, a depender do caso concreto. Quando o agente tem o dever jurídico de evitar o resultado nos termos do art. 13, § 2º, CP, trata-se de crime omissivo impróprio ou comissivo por omissão. É instantâneo, pois a consumação não se prolonga no tempo, ocorrendo em momento determinado na importação ou na exportação, quando a mercadoria for liberada, clandestinamente, na alfândega. É unissubjetivo, uma vez que pode ser cometido por um único agente; unissubsistente (praticado num único ato) ou plurissubsistente, pois a ação do delito é composta por vários atos, permitindo-se o seu fracionamento, conforme o caso concreto. [...] trata-se de norma penal “em branco”. Neste tipo o delito não é precisamente determinado, carecendo a proibição de complemento através de outras normas legais, ao contrário das normas penais tipo “fechado”, onde se contém todos os elementos (descritivos, subjetivos e normativos) necessários à sua compreensão. (RODRIGUES, 2011b, p. 45)
O elemento subjetivo do referido tipo penal aponta duas condutas: a) importar ou exportar mercadoria proibida, e b) iludir no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.
A primeira conduta caracteriza o crime de contrabando, cuja ação recai sobre a integridade da indústria nacional, marcado pela ação de importar ou exportar mercadoria de natureza proibida, não devendo em regra, passar pela aduana, “é por caminhos escusos, e por sítios desertos, longe das vistas das autoridades, ou com algumas delas cientes, mas sempre rodeado de sigilo, que o fato se passa, e, já agora, a referência é a entrada ou a saída do solo pátrio ou de águas territoriais”. (FRANCO; STOCO, 2001. p. 4035).
Para Júlio Fabbrini Mirabete (2004, p. 385) é pouco relevante se a mercadoria proibida transite pela alfândega ou fora dela, importando apenas, a posse da mercadoria proibida, seja ela proibição absoluta ou relativa.
Em relação à segunda conduta, o descaminho, a ação de iludir, que afeta o erário público, consiste, “na fraude empregada para que se consiga a exportação ou a importação, sem o pagamento dos direitos relativos a elas, ou do imposto pago na alfândega, na ocasião do despacho correspondente à importação” (FRANCO; STOCO, 2001. p. 4036).
Assim, configura-se o crime de descaminho “posse de mercadoria estrangeira sem comprovante da importação regular e em quantidade superior às necessidades de uso pessoal do agente (RF 275/284)” (MIRABETE, 2004, p. 386). Há a exigência de que, nessa modalidade do tipo penal, não havendo a exibição de documentos necessários à legitimidade da importação, não exista a habitualidade da atividade comercial.
Davi de Oliveira Rodrigues (2011a, p. 26-27) corroborando com a ideia acerca da distinção entre as duas figuras típicas existentes no art. 334 do Código Penal entende que
na teoria moderna, o contrabando consiste em importar ou exportar produto proibido por lei. Percebe-se, portanto, que não se pergunta acerca da origem do produto ou se o agente ativo pagou algum tipo de tributo. O descaminho, por sua vez, consiste na entrada ou saída de mercadoria tida como legal e permitida, no que se refere à importação ou exportação. Entretanto, o agente ilude o pagamento do tributo devido [...].
Quanto ao sujeito ativo, o crime por ser praticado por qualquer pessoa, sendo crime comum, em relação ao sujeito passivo, onde a lesividade ao bem jurídico protegido afeta o Estado, representado pela Administração Pública.
O crime consuma-se na modalidade do contrabando, por se tratar do trânsito de mercadoria proibida, no momento “da entrada (importação) ou saída (exportação) do território nacional”, e na modalidade de descaminho, no momento da liberação pela alfândega, ou seja, “a fraude ou o expediente surtiu efeito, iludiu as autoridades alfandegárias, entrando o destinatário na posse de coisa sem pagar os tributos ou direitos respectivos” (GRECO, 2013, p. 553-554).
O elemento subjetivo refere-se à ação livre e consciente de realizar o contrabando ou descaminho, portanto, dolo direto, não havendo previsão da culpa. Esse tipo penal não apresenta fim especial de agir e nem dolo eventual. É crime misto alternativo, podendo o agente praticar a conduta de contrabando ou descaminho. É crime comissivo, onde exige-se a ação do agente, e ainda, omissivo próprio, pois, a fraude exigida na modalidade de descaminho pode ser efetuada por omissão do agente público.
O bem jurídico tutelado é genericamente a Administração Pública,
em primeiro lugar o objeto do crime é o erário público, prejudicado pela evasão de renda [...]. São tutelados também, a saúde, a higiene, a moral, a ordem pública, quando se trata de importação de mercadorias proibidas e até a indústria nacional, protegida pelas barreiras alfandegárias. [...] (MIRABETE, 2004, p. 385).
No tipo penal, dependendo da conduta e do resultado alcançado, poderá incidir o princípio da insignificância, se constatado o menor valor da lesividade à integridade da produção e comercialização industrial nacional, no caso do contrabando, e a menor lesividade ao erário público, estabelecido pela Lei nº. 10.522/2002, alterada pela Lei nº. 11.033/2004, no caso do descaminho.
2 A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NA NATUREZA DELITUOSA DO CRIME DE CONTRABANDO OU DESCAMINHO
Para que a ação criminosa sofra incidência do poder punitivo estabelecido nas penas do Código Penal, precisa apresentar: a conduta dolosa ou culposa, o desejo de alcançar o resultado pretendido, o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, e a tipicidade formal e conglobante, ou seja, o fato tem que ser típico, marcado pela ilicitude e culpabilidade. O princípio da insignificância reside na tipicidade conglobante, em razão do aspecto, onde o fato é “materialmente típico”.
No caso de aplicação do princípio da insignificância haveria a ausência da tipicidade material e, por conseguinte, da tipicidade penal.
O princípio da insignificância é o postulado de política criminal segundo o qual os fatos que causem lesão mínima ao bem jurídico tutelado pela norma, embora formalmente subsumíveis a um tipo incriminador, hão de ser considerados materialmente atípicos. [...].
A elaboração do princípio da insignificância parte do pressuposto de que a tipicidade penal não se esgota na verificação assintomática dos termos descritivos do preceito primário da norma incriminadora, tal qual propugnado pelos causalistas, devendo-se considerar, ainda, a teleologia inserta na norma, ou seja, o fim de proteção de bem jurídico. Em outras palavras, vislumbra-se na tipicidade duas facetas: uma formal e outra material (MENDES, 2010, p. 28-29).
Ainda nesse sentido, Rogério Greco (2011, p. 65) ao referendar o penalista Claus Roxin, pronunciando-se sobre a preleção de Assis de Toledo, conclui:
segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas.
A “insignificância” de que trata o princípio, refere-se à tolerância social em razão da conduta, pois não é capaz de lesar consideravelmente o bem jurídico tutelado e ameaçar a sociedade,
[...] permite-se, na maioria dos tipos, excluir, desde logo, danos de pouca importância, havendo de se partir da asserção de que uma conduta somente pode ser coibida por meio de uma pena quando resulta de todo incompatível com os pressupostos de uma vida pacífica, livre e materialmente assegurada. O moderno Direito Penal não se vincula a uma imoralidade de conduta, senão ao seu potencial de dano social.
Diante do exposto, vislumbra-se que o princípio da insignificância não se confunde com o princípio formulado por Welzel. Na verdade, a adequação social pressupõe a aprovação do comportamento pela coletividade; ou seja, a conduta é socialmente tolerável. O princípio da insignificância, a seu turno, leva em conta a tolerância do grupo em relação à determinada conduta de escassa gravidade; ou seja, ela é desconsiderada por tratar de bem jurídico insignificante. (NOSCHANG, 2006, p. 170-171. Grifos nossos)
Ressalta-se ainda, a convergência de sentido do princípio da insignificância com o princípio da intervenção mínima, estabelecendo que o direito penal ocupa-se apenas com as condutas que lesionam gravemente os bens jurídicos tutelados.
Não há, pois, como discordar de que o princípio da insignificância atua como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, de modo a revelar e estabelecer a natureza subsidiária do Direito Penal, exigindo intervenção mínima do Estado (FRANCO; STOCO, 2001, p. 4054).
Na assertiva de que mesmo que o princípio da intervenção mínima guarde muitas semelhanças com o princípio da insignificância existem diferenças, Vanessa Barros Farias (2009, p. 43-44) esclarece:
O princípio da intervenção mínima guarda muitas semelhanças como o princípio da insignificância, já que ambos consideram o conteúdo material da conduta para determinar a relevância desta para o direito penal. A diferença é que o princípio da intervenção mínima atinge o conteúdo material da conduta no momento da tipificação, determinando que só a partir de um certo patamar de gravidade esta conduta ensejará subsunção ao tipo penal, sendo, pois, um princípio voltado à atividade legislativa. Já quanto ao princípio da insignificância, embora a conduta provoque lesão de parcas dimensões, é perfeitamente típica do ponto de vista formal (provavelmente uma falha do legislador, que não observou adequadamente o princípio da intervenção mínima no momento de prever o tipo penal), mas materialmente atípica, sendo um princípio voltado à atividade dos operadores do direito.
A relação do princípio da insignificância com o disposto no art. 334 do Código Penal, o crime de contrabando ou descaminho, que na primeira conduta refere-se à importação ou exportação de mercadoria proibida, e na segunda conduta, a entrada e a saída de mercadorias sem o devido pagamento dos tributos, restringe-se ao estabelecimento de um “valor mínimo”, para a mercadoria proibida e para as alíquotas cobradas.
Nessa linha de pensamento André Luís Callegari expõe: “embora a conduta do sujeito do delito previsto no art. 334 do CP seja formalmente típica, entendemos não ser materialmente típica; nos casos em que a incidência da alíquota leve a um valor mínimo aludido, posto que o dano social em tela é irrelevante, ou seja, o seu conteúdo valorativo é tão pequeno que a aplicação do Direito Penal não se faz necessária, posto que não se pode falar até mesmo em dano significativo ao bem jurídico tutelado, no caso em tela, a União, que não recebeu os impostos devidos. (FRANCO; STOCO, 2001, p. 4054).
O entendimento da jurisprudência do STJ acolhe a legalidade da aplicação do princípio da insignificância quando da ausência da tipicidade material.
HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. APREENSÃO DE MERCADORIA DE PEQUENO VALOR. INEXISTÊNCIA DE INTERESSE FISCAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUDENTE DE ILICITUDE. PRECEDENTES DO STJ.
1. Não se vislumbra na hipótese a existência de ilícito fiscal, o que se torna inviável a imputação do delito de descaminho ao paciente, uma vez que a conduta que se lhe imputa a peça acusatória não chegou a lesar o bem jurídico tutelado, qual seja, a Administração Pública em seu interesse fiscal.
2. Aplicação do princípio da insignificância como causa supralegal de exclusão da tipicidade. Precedentes do STJ.
3. Habeas corpus concedido (BRASIL, 2013).
Esse entendimento é recepcionado no Supremo Tribunal Federal, sendo pacífica a aplicação da “insignificância”, para a conduta do crime de contrabando ou descaminho.
Com relação à jurisprudência brasileira, depois daquela primeira decisão do STF (de 1988: cfr. RTJ 129/187 e ss.), cabe assinalar que praticamente toda a jurisprudência passou a admitir o princípio da insignificância como corretivo da abstração do tipo penal.
No delito de descaminho, por exemplo, a pequena quantidade e o pouco valor do objeto de procedência estrangeira que está no poder do acusado autoriza a aplicação do critério de insignificância, descaracterizando o delito. A sanção criminal, “in casu”, seria, em virtude de suas consequências, desproporcionada ao dano resultante da conduta praticada”. O ponto discutível dessa linha jurisprudencial reside no critério adotado para o reconhecimento da insignificância.
De todo modo, já se sublinhou que o relevante é a existência de uma ofensa mínima ao bem jurídico, não a proporção do dano em relação aos bens do sujeito passivo.
(GOMES, 2001, p. 180)
No entanto, a doutrina tradicional, vencida pelo pensamento moderno no Direito Penal, insiste em dizer que
[...] não reconhece a insignificância como excludente da tipicidade penal. [...]. Seu argumento baseia-se na lei penal não fazer referência à quantidade de lesão necessária para configurar-se um delito. Não seria possível auferir o que é, realmente, insignificante, medindo o valor do bem para dar-lhe proteção jurídica. Logo, o princípio seria muito liberal e esvazia o Direito Penal. É uma concepção clássica, ultrapassada, na medida em que considera apenas a tipicidade formal de uma conduta para qualificá-la de delituosa, além de não enxergar além da prescrição da norma penal. O Direito deve estar, no entanto, aberto a inovações que aperfeiçoem a sua aplicação (NOSCHANG, 2006, p. 181).
A insignificância, por fim, em relação ao crime de contrabando ou descaminho, é deslumbrado no caso concreto, sendo recorrente, incidir na modalidade da conduta do descaminho, em razão da previsão legal do “valor mínimo”, encontrando por sua vez dificuldade na materialização do valor da mercadoria proibida, na modalidade contrabando.
3 A EFICÁCIA DO CRITÉRIO “VALOR MÍNIMO” ANTE A SUBJETIVIDADE DA RELEVÂNCIA DA REPERCUSSÃO DO FATO NO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NA APLICABILIDADE DO ILÍCITO PENAL DE CONTRABANDO OU DESCAMINHO
A natureza do “valor mínimo” como critério de atipicidade, foi estabelecida pelo art. 20 da Lei nº. 10.522/2002, que previa, no caso da conduta de descaminho, qual seja, iludir, fraudar o pagamento de alíquotas das mercadorias, objeto de entrada e saída da zona fiscal, o valor de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), como parâmetro para aplicação da mínima repercussão do fato, elemento essencial para a materialização do princípio da insignificância.
A repercussão do fato funcionaria como elemento identificador da conduta de menor valor, que mesmo adequando-se aos elementos do tipo penal, em razão do custo-benefício da ação penal, impõe à União conceder “anistia fiscal por lei, até certo valor [...] declarando a insignificância do débito” (FRANCO; STOCO, 2001, p. 4054).
No entanto, o dispositivo da Lei nº. 10.522/2002 foi alterado pela Lei nº. 11.033/2004, ampliando o “valor mínimo” para R$ 10.000,00 (dez mil reais). A União diante desse dispositivo determina por lei que existe um limite tolerável de lesão ao erário público.
Contrária a esse entendimento, parte da doutrina entende que a ação de fraudar o erário público em, por exemplo, R$ 300,00 (trezentos reais), representa os elementos de reprovação social, uma vez que fere a moralidade pública e o equilíbrio das contas públicas, não devendo ser acolhida pelo princípio da insignificância. A lei apresenta um critério objetivo em razão da economia processual, estabelecido pela União, quando em contrapartida, o que deve balizar o direito penal é a busca do princípio da insignificância no caso concreto.
A esse respeito pronuncia-se Rogério Greco (2013, p. 560), afirmando
ser impossível aplicação do raciocínio relativo ao princípio ao tipo do art. 334 do Código Penal. Existem fatos considerados como de bagatela, nos quais, certamente, restará ausente a tipicidade material. Assim, entendemos ter agido com acerto o Superior Tribunal de Justiça quando decidiu:
“Recurso especial. Descaminho (art. 334, do CP). Ausência de dolo e princípio da insignificância. Não comprovação da destinação comercial da mercadoria.
No caso sub exame, a pequena quantidade e o ínfimo valor da mercadoria de procedência estrangeira apreendida em poder do acusado autoriza a aplicação do princípio da insignificância.
Peculiaridades do caso que evidenciam não ter o recorrido agido dolosamente para fraudar o fisco. Absolvição que deve ser mantida, por se harmonizar o aresto recorrido com jurisprudência dessa Corte.
Recurso especial não conhecido” (REsp. 124897/CE, Recurso Especial 1997/00202288-7, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, julgamento em 2/12/99, publicação no DJ em 21/2/2000, p. 148).
Ainda seguindo esse entendimento, qual seja, a adoção de critérios subjetivos para a aplicação das penas do crime de contrabando ou descaminho, pronuncia-se sobre a divergência jurisprudencial dos critérios que balizam a aplicação ou não do princípio da insignificância, José Adilson do Nascimento Rodrigues (2011b, p. 69-70):
No acórdão da 8ª turma do TRF4 nº 2003.71.05.001323-8/RS o relator alertou que para a aplicação do princípio da insignificância dever-se-ia analisar não apenas o valor do tributo suprimido, mas os aspectos subjetivos do agente. Ainda segundo o eminente julgador, não se mostra compatível com o princípio da insignificância o fato de o acusado possuir antecedentes em crimes da mesma natureza, denotando grau de profissionalismo e habitualidade na conduta delituosa, conforme pode-se abaixo:
PENAL. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. REITERAÇÃO
DA CONDUTA.
1. O reconhecimento do ilícito de bagatela, no crime de descaminho, pressupõe não só a análise do valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas, mas de aspectos subjetivos do agente.
2. Não se mostra compatível com o princípio da insignificância a verificação de que o acusado possui antecedentes em crimes da mesma natureza, denotando grau de profissionalismo e habitualidade na conduta delituosa.
3. Recurso em sentido estrito provido (BRASIL, 2011h. Grifo nosso).
No mesmo sentido foi a decisão no recurso criminal em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal - MPF contra decisão que rejeitou a denúncia com base no princípio da insignificância, bem como por já estar extinta a punibilidade em decorrência da prescrição antecipada. Analisando o inteiro teor do acórdão, o MPF sustentou a tese que o reconhecimento do ilícito de bagatela, no crime de descaminho, não deve se pautar apenas nos valores dos bens apreendidos, mas na intensidade da lesão produzida, que se revelou alta na espécie, em razão do grau de profissionalismo do agente. Para corroborar seus argumentos, mencionou a certidão de antecedentes do acusado, que, segundo alegou, demonstra a prática reiterada de condutas delituosas. Por fim, argui o repúdio da jurisprudência à prescrição antecipada.
O juiz teria assim, a discricionariedade para na decisão verificar as motivações de caráter subjetivo do agente, se houve a intenção livre e consciente de lesar o erário público, ou se a agilidade do agente, bem como, sua reincidência afastaria a incidência na conduta do princípio da insignificância. “O juiz tem a faculdade (na verdade, um poder-dever) de declarar a ausência de tipicidade ‘penal’, reconhecendo que a lesão é insignificante e caracterizadora tão-somente de uma infração disciplinar”. (GOMES, 2001, p. 179).
No entanto, parte significativa da jurisprudência entende que o critério objetivo, estabelecido pela Lei nº. 10.522/2002, alterada pela Lei nº. 11.033/2004, qual seja, o “valor mínimo” do tributo sonegado, é o parâmetro para auferir a “insignificância”.
No Supremo Tribunal Federal, o Ministro Sepúlveda Pertence, relatando o Agravo de Instrumento n° 559.904-QO, publicado no DJ de 26 de agosto de 2005 decidiu que para a incidência do princípio da insignificância somente os aspectos objetivos referentes à infração praticada seriam considerados; a caracterização da infração penal como insignificante não abardaria considerações de ordem subjetiva, conforme abaixo:
Recurso Extraordinário: descabimento: falta de prequestionamento da matéria constitucional suscitada no RE; incidência das Súmulas 282 e 356.
II. Recurso Extraordinário, requisitos específicos e habeas corpus de ofício. Em recurso extraordinário criminal, perde relevo a inaplicabilidade do RE da defesa, por falta de prequestionamento e outros vícios formais se, não obstante- evidenciando-se a lesão ou ameaça à liberdade de locomoção – seja possível a concessão de habeas-corpus de ofício (v.g. RE 273.363, 1ª T., Sepúlveda Pertence, DJ 20.10.2000). III. Descaminho considerado como 'crime de bagatela': aplicação do princípio da insignificância'. Para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos referentes á infração praticada. Assim a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; a inexpressividade da lesão jurídica causada (HC 84.412, 2ª T., Celso de Melo, DJ 19.11.04). A caracterização da infração penal como insignificante não abarca considerações de ordem subjetiva: ou o ato apontado como delituoso é insignificante, ou não é. E sendo, torna-se atípico, impondo-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa (HC 77.003, 2ª T., Marco Aurélio, RTJ 178/310). IV. Concessão de habeas corpus de ofício, para restabelecer a rejeição da denúncia (fl. 6-grifos no original) (BRASIL, 2011n).
Em 19 de fevereiro de 2008 a Ministra da1 ª Turma do STF, Carmem Lúcia, no HC 92.740, de sua relatoria, além de admitir o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), afastou as considerações de ordem subjetivas do TRF4, dando provimento ao HC impetrado pelo acusado contra decisão do Ministro Paulo Galloti, do STJ, que negou seguimento ao recurso especial. (RODRIGUES, 2011b, p. 76-77).
Acompanha essa tese a Corte do Superior Tribunal de Justiça, relatada em análise de Recurso Especial, objeto de estudo do pesquisador José Adilson do Nascimento Rodrigues (2011b, p. 71):
[...] diante da fixação do novo patamar, houve uma reação nos Tribunais Pátrios. No Superior Tribunal de Justiça- STJ, por iniciativa do Ministro Félix Fischer, passou-se a adotar o patamar de parcos R$ 100,00 (cem reais), conforme acórdão abaixo:
PENAL. RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. DÉBITO FISCAL. ARTIGO 20, CAPUT, DA LEI Nº 10.522/2002. PATAMAR ESTABELECIDO PARA O AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE EXECUÇÃO DA DÍVIDA ATIVA OU ARQUIVAMENTO SEM BAIXA NA DISTRIBUIÇÃO. ART. 18, § 1º, DA LEI Nº 10.522/2002. CANCELAMENTO DO CRÉDITO FISCAL. MATÉRIA PENALMENTE IRRELEVANTE.
I - A lesividade da conduta, no delito de descaminho, deve ser tomada em relação ao valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas.
II - O art. 20, caput, da Lei nº 10.522/2002 se refere ao ajuizamento da ação de execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, não ocorrendo, pois, a extinção do crédito, daí não se poder invocar tal dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizador de matéria penalmente irrelevante.
III – In casu, o valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas é superior ao patamar estabelecido no dispositivo legal que determina a extinção dos créditos fiscais (art. 18, § 1º, da Lei nº 10.522/2002), logo, não se trata de hipótese de desinteresse penal específico. Recurso provido (BRASIL, 2011j. Grifo nosso).
A divergência doutrinária jurisprudencial aponta conclusivamente para a não incidência dos critérios subjetivos, uma vez que afastam uma linha segura de entendimento da tipicidade material do crime de contrabando ou descaminho, amparando largamente a tese do “valor mínimo”, de natureza essencialmente objetiva, como fronteira segura para a aplicação da incidência do princípio da insignificância.
4 CONCLUSÃO
Conclui-se, ser a repercussão do fato, qual seja, a conduta tolerável, que por carregar a mínima afetação ao bem jurídico tutelado, permite a materialização da incidência do princípio da insignificância.
Especificamente no caso do crime de contrabando ou descaminho, a repercussão do fato ora pode ser identificada na ação do agente, nesse caso, o critério adotado será de natureza subjetiva, pontuando entre outras coisas, a vontade livre e consciente (dolo) do agente de praticar a conduta, a sua reincidência ou agilidade na ação. De outro modo, adotando-se o disposto na Lei nº. 10.522/2001, alterada pela Lei nº. 11.033/2004, que estabelece o “valor mínimo” para a incidência do princípio da insignificância, materializa-se o critério objetivo. Portanto, é possível uma dupla dimensão para a mensuração da repercussão do fato, essencial para a aplicação do referido princípio.
Assim, será necessário um esforço do julgador para balizar a conduta em grau de insignificância, tendo como referencial o universo do caso concreto.
Pelo exposto, coadunando com a ideia de Alberto Silva Franco e Rui Stoco (2001), é certo que a verificação da insignificância para efeito de não aplicação de pena deve ser feita diante do caso concreto, segundo criteriosa análise do julgador, verificando o valor das mercadorias e o quantum de tributo correspondente e que foi distraído pelo agente ativo.
Portanto, embora o “valor mínimo” favoreça largamente o interesse da economia processual e da responsabilidade jurídica da União, fica evidente que a ação, independente de valor, quando dirigida na modalidade do contrabando ou do descaminho, fere o bem jurídico da moralidade pública e o equilíbrio das contas públicas, uma vez que o valor distraído do erário público tem a função de atender o interesse público. O desvalor da conduta estaria materializado.
Entretanto, prevalece a rigor do entendimento dos tribunais, por estar disposto em lei o critério objetivo do “valor mínimo”. Pois, pelo discutido por José Adilson do Nascimento Rodrigues (2011b), das interpretações jurisprudenciais restou configurado que foi o STF quem primeiramente afastou a valoração dos critérios subjetivos do agente para o reconhecimento da insignificância, sendo seguido pelo STJ, uma vez que foi o tribunal que mais resistiu em afastar a análise dos critérios subjetivos do agente para a aplicação do aludido princípio. Na atualidade, não mais só o STF e o STJ, mas todos os Tribunais pátrios seguem o entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal, de que para a aplicação do princípio da insignificância não podem serem levados em consideração os aspectos subjetivos relacionados ao sujeito ativo do delito.
Assim, conclui-se da necessidade de discussão da natureza de incidência do princípio da insignificância, nos seus critérios subjetivos e objetivos, para não servir de parâmetro para a impunidade, visto que há flagrante ameaça ao bem jurídico protegido por este tipo penal, qual seja, a integridade à indústria nacional e à sonegação fiscal ao erário público.
REFERÊNCIAS
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[1] Paper apresentado à Disciplina Direito Penal Especial III, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.
[2] Aluno do 10º Período, do Curso de Direito, da UNDB.
[3]Aluno do 10º Período, do Curso de Direito, da UNDB.
[4] Professora Especialista, Orientadora.