A realidade prisional feminina em (des)conformidade com os parâmetros legais: a efetivação dos direitos da criança no ambiente carcerário do crisma
Por Larissa Pereira Rodrigues | 27/03/2012 | DireitoA REALIDADE PRISIONAL FEMININA EM (DES)CONFORMIDADE COM OS PARÂMETROS LEGAIS: A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA NO AMBIENTE CARCERÁRIO DO CRISMA
Bárbara Bandeira de Freitas
Larissa Pereira Rodrigues
Marcelo Oliveira Brito[1]
Sumário: Introdução; 2 A necessidade de estabelecimento de um critério objetivo para regular o tempo de permanência da criança no ambiente prisional; 3 A responsabilidade do estado brasileiro: entre a legislação e a efetivação dos direitos relativos à mulher apenada; Conclusão; Referências
RESUMO
Evidencia-se no seguinte trabalho uma análise crítica acerca da realidade prisional feminina no que tange à criança filha de mãe presidiária e a garantia do não ferimento à sua dignidade, bem como à observância ou não do princípio do melhor interesse da criança. Buscou-se no referido trabalho fazer uma análise comparativa entre outros países, assim como buscou-se trazer à baila os instrumentos legais capazes de garantir a efetivação de tais direitos, evidenciando também a situação atual das crianças cujas mães encontram-se submetidas à privação de liberdade.
PALAVRAS-CHAVE
Criança. Dignidade. Ambiente carcerário. Realidade.
“Não existe outra via para a solidariedade humana senão a procura e o respeito da dignidade individual.”
INTRODUÇÃO
De acordo com o art. 3º do Código Civil de 2002, inciso I, são reputados como absolutamente incapazes os menores de dezesseis anos. Conforme preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, em seu art. 2º, criança é toda a pessoa até doze anos não completos.
Bem, diante dos conceitos acima elencados, pode-se depreender que a criança é apontada como sendo um ser inapto para exercer os atos da vida civil, em virtude de sua visível vulnerabilidade, tanto física quanto psicológica.
A criança, que se encontra na primeira fase de formação de seu intelecto e de sua base emocional, carece de certos cuidados que devem ser observados, a fim de propiciar o seu pleno e razoável desenvolvimento.
Foi em função disso que a Lei Maior tratou em estabelecer a proteção aos seus direitos e interesses, e evidenciar os deveres de seus responsáveis, apregoando que:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Não obstante, o ECA também buscou ratificar o que já afirmara o ordenamento jurídico no sentido de expor a fragilidade da criança, buscando proteger sua integridade, e mais ainda, sua dignidade, dispondo da seguinte forma:
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo e qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Também o Código Penal reconheceu a criança como ser essencialmente dependente tanto material quanto moralmente (arts. 244 e 245 do CP, respectivamente). Dessa forma, percebe-se que a criança dispõe de vasto amparo legal e constitucional no que concerne à sua dignidade, integridade física e moral.
Como bem dispõe o já mencionado art. 227 da Constituição Federal, além da família e da sociedade, é dever do Estado respeitar e efetivar os direitos da criança, erradicando toda forma de negligência, discriminação etc. Além do referido dispositivo, elenca também o art. 226 da CF que a família é a base da sociedade, entendendo-se, dessa forma, que o Estado preconiza e privilegia a sua mantença.
Entretanto, fazendo uma análise comparativa e crítica acerca da situação fática da efetivação dos direitos da criança, de um modo geral, percebe-se que tais direitos são, por muitas vezes, desrespeitados.
Contudo, vale registrar que o tratamento dado às crianças filhas de mães detentas é consideravelmente pior em relação àquelas que não compartilham da mesma realidade.
Cumpre destacar que tanto a Constituição brasileira quanto as legislações infraconstitucionais já traçaram diretrizes capazes de nortear tal realidade.
1 A TUTELA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA FRENTE OS PARÂMETROS LEGAIS
Como já dito acima, embora a situação das crianças cujas mães se encontram em medida privativa de liberdade não seja das mais felizes, tanto o ordenamento jurídico quanto as leis infraconstitucionais já trazem elementos normativos para tratar do assunto, no escopo de assegurar juridicamente o princípio do melhor interesse da criança.
Tal princípio, como bem destaca Andréa Amin,
é princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, determinando a primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério de interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras regras[2].
O art. 5º, inciso L da CF estabelece que “às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”. Neste sentido, percebe-se que o legislador constituinte teve uma preocupação especial em proteger o direito da mãe presidiária de amamentar e estabelecer uma relação de afeto com seu filho, colocando esse direito no rol das garantias fundamentais.
Como sustenta Paulo Lôbo, tal princípio não é uma recomendação ética, mas diretriz determinante as relações da criança e do adolescente com seus pais, com sua família, com a sociedade e com o Estado”[3].
Além do supracitado autor, Maria Dinair também destaca que insurge daí
a consagração do princípio da prioridade absoluta, de repercussão imediata sobre o comportamento da administração pública, na entrega, em condições de uso, às crianças e adolescentes dos direitos fundamentais específicos, que lhe são consagrados constitucionalmente[4].
A própria Lei de Execuções Penais de 1984 teve sua redação alterada pela Lei 9.049 de 1945, incluindo o preceito de que os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçários, onde as condenadas possam amamentar seus filhos.
Também o Estatuto da Criança e do Adolescente, o maior e mais importante documento jurídico brasileiro no que concerne à tutela do direito da criança e do adolescente, previu que também configuraria um direito elementar a amamentação, mesmo a mãe estando privada de sua liberdade.
Art. 9º. O Poder Público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas a medida privativa de liberdade.
Neste sentido, percebe-se que o Estatuto protege o direito de amamentação à mãe e à criança, impondo como um dever a ser cumprido tanto pelo Poder Público, como também pelas instituições, e até mesmo, pelos empregadores.
Outro instrumento que protege a criança e busca garantir seu salutar desenvolvimento pode ser encontrado no art. 29 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Esse diploma confere uma atenção especial à educação infantil, que pode ser compreendida até os seis anos de idade, estabelecendo que, nessa primeira etapa de educação da criança, busca-se o seu desenvolvimento, considerado-se tanto os aspectos físico, psíquico, intelectual e social, tendo a família e a comunidade a obrigação de complementar esse processo.
Art. 29. Primeira etapa da educação tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até os seis anos de idade, em seus aspectos físicos, psicointelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.
2 A NECESSIDADE DE ESTABELECIMENTO DE UM CRITÉRIO OBJETIVO PARA REGULAR O TEMPO DE PERMANÊNCIA DA CRIANÇA NO AMBIENTE PRISIONAL
Apesar de ser notório o reconhecimento da Constituição no que tange ao direito conferido à criança de habitar temporariamente o ambiente carcerário, percebe-se que, para efeitos de efetivo cumprimento de tal direito, ela (a Constituição), como também a LEP, foram negligentes ao não estipular o lapso temporal mínimo dessa permanência. Tal omissão configura uma ofensa à dignidade da criança, posto que a não observância em lei impede que tal direito seja efetivado. Como já exposto acima, o princípio do melhor interesse da criança e sua efetivação dão ensejo à criação de futuras leis, consolidando mais ainda no ordenamento brasileiro a garantia do bom desenvolvimento da criança.
Neste sentido, aponta Rosangela Santa Rita que o preceito legal parece colidir com aspectos subjetivos da gestão prisional, podendo a maternidade na prisão configurar ou um fator de felicidade para a mãe ou dupla penalização, tendo em vista que, um dia, terá de se separar de seu filho[5].
Entretanto, apesar de não haver um critério objetivo para se estipular o tempo mínimo de permanência da mãe com a criança, é possível elencar alguns instrumentos que têm servido de parâmetro para esclarecer e nortear o poder público na tarefa de buscar um critério que possa auxiliar no efetivo cumprimento dos preceitos tanto da CF quanto dos preceitos infraconstitucionais.
O primeiro critério que poderia ser apontado foi exposto pelo Ministério da Saúde e pela Organização Pan Americana de Saúde quando da edição do Guia Alimentar para Crianças Menores de Dois Anos. Nesse guia, há uma recomendação de que os Estados protejam e apóiem o aleitamento materno exclusivo durante 6 meses[6].
Além do critério supracitado, Rosangela Santa Rita elenca que há estudos psiquiátricos que recomendam que a separação entre mãe e filho não deve ocorrer antes de completados os três anos, pois tal separação oriunda de uma privação da presença da mãe para a criança poderia resultar em transtornos depressivos, anti-sociais e drogalização[7].
Por fim, resta apontar como esse critério de garantia da permanência da criança com a mãe no início da vida tem sido estabelecido em outros países. Novamente, Rosangela Santa Rita traz à baila, para fins de exemplificação, que na França adota-se o período de 18 meses, e na Espanha, até 3 anos. Já na America Latina, esse interstício também é similar, sendo permitido o período de até 4 anos da criança com a mãe na Argentina, e de 3 anos na Colômbia[8].
3 A RESPONSABILIDADE DO ESTADO BRASILEIRO: ENTRE A LEGISLAÇÃO E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS RELATIVOS À MULHER APENADA
Apesar de os direitos da criança serem amplamente tutelados juridicamente, havendo contudo, uma omissão legislativa no que concerne à estipulação do tempo mínimo para a permanência da criança no ambiente prisional, ainda assim, o direito positivo não se fez suficiente para garantir a efetivação de tal direito e princípio (dignidade e melhor interesse da criança, respectivamente).
Além disso, o que se observa é que as instalações capazes de comportar as crianças no ambiente carcerário são ou inexistentes, em sua maioria, ou precárias. É o que mostra, mais uma vez, Rosangela Santa Rita:
Do total de unidades prisionais femininas estudadas, 59,9% não dispõem de estrutura física adequada ao atendimento às crianças; 21,6% indicam a existência de berçário, e 18,9% destas informam que as crianças ficam em creche.
A pesquisa feita pela autora em alguns dos estabelecimentos prisionais femininos do país demonstra que o não cumprimento do que dispõe os parâmetros legais tem se tornado, ou melhor, sempre foi regra no sistema. Percebe-se, dessa maneira que, esses estabelecimentos prisionais constituem-se muito mais em um ambiente onde se subtrai a dignidade do que aquele proposto utopicamente pelos parâmetros legais.
Contudo, felizmente, toda regra tem sua exceção. O Centro de Reeducação para Mulheres Apenadas (CRISMA) surge como uma dessas exceções ao conseguir comportar de maneira digna os filhos das mães submetidas à privação de liberdade. Neste centro, desenvolve-se atividades profissionais, estimulando o processo de ressocialização e integração e integração na sociedade.
Conforme afirma Maria da Providência Sena Sousa, uma das detentas,
aqui eu sinto que minhas habilidades servem para ajudar os outros. Mesmo não tendo liberdade para sair e sabendo da minha real situação aqui, tem dia que me sinto mais professora do que presidiária. Isso é bom, faz a gente manter a auto-estima alta[9].
CONCLUSÃO
O problema envolvendo o sistema prisional e a garantia da permanência da criança junto à mãe nos primeiros anos de vida não carecem de legislação que possa garantir pois, como já foi demonstrado, tanto a CF como também legislações ordinárias, tais como a LEP e até mesmo o ECA positivaram em seu seio o direito à amamentação, assim como sendo um dever do Estado e da própria sociedade a busca por materializá-lo.
Assim, pode-se fazer críticas ao não estabelecimento objetivo para se regulamentar o período mínimo de permanência do filho com a mãe, embora este critério já tenha sido recomendado até mesmo pelas Nações Unidas, e até mesmo implementado por outros países da América Latina.
Por fim, pode-se citar duras críticas ao Estado brasileiro, na medida em que previu tal direito, e, no entanto, não regulamentou esse período mínimo de permanência da criança em ambiente prisional, possibilitando, dessa forma, a não efetivação de uma garantia e de um princípio constitucionalmente resguardado, constituindo assim, uma afronta à dignidade da criança.
REFERÊNCIAS
AMIN, Andréa. Curso de Direito da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretária de Política de Saúde. Organização Pan Americana da Saúde. Guia alimentar para crianças menores de dois anos. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. Disponível em: http//:www.opas.org.br/sistema/arquivos/guiaalimentar.pdf. Acessado em: 02 de novembro de 2010.
Centro de reeducação prova que existe saída para a Crise do sistema prisional. Centro de Reeducação para Mulheres Apenadas (CRISMA). 16 de novembro de 2007. Disponível em: http//:jornalpequeno.com.br/2007/11/15/Pagina67817.htm
GONÇALVES, Maria Dinair Acosta. Proteção integral: paradigma multidisciplinar do direito pós-moderno. Porto Alegre: Alcance, 2002
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil comentado. Famílias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 45.
SANTA RITA, Rosangela Peixoto. Criança em ambiente carcerário: uma análise da experiência brasileira. p. 211. Disponível em: http://www.ufg.br/editora/pdf/voxjuris_2/artigo7.pdf. Acessado: 01 de novembro de 2010.
[1] Alunos do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco. 2010.2.
[2] AMIN, Andréa. Curso de Direito da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 31.
[3] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil comentado. Famílias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 45.
[4] GONÇALVES, Maria Dinair Acosta. Proteção integral: paradigma multidisciplinar do direito pós-moderno. Porto Alegre: Alcance, 2002, p.31
[5] SANTA RITA, Rosangela Peixoto. Criança em ambiente carcerário: uma análise da experiência brasileira. p. 211. Disponível em: http://www.ufg.br/editora/pdf/voxjuris_2/artigo7.pdf. Acessado: 01 de novembro de 2010. p. 211.
[6] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretária de Política de Saúde. Organização Pan Americana da Saúde. Guia alimentar para crianças menores de dois anos. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. Disponível em: http//:www.opas.org.br/sistema/arquivos/guiaalimentar.pdf. Acessado em: 02 de novembro de 2010.
[7] SANTA RITA. Op. cit., p. 213.
[8] SANTA RITA. Op. cit., p. 213-214.
[9] José Linhas Jr. Centro de reeducação prova que existe saída para a Crise do sistema prisional. Centro de Reeducação para Mulheres Apenadas (CRISMA). 16 de novembro de 2007. Disponível em: http//:jornalpequeno.com.br/2007/11/15/Pagina67817.htm