A Ratificação da CDPD e sua Repercussão no Ordenamento Jurídico Pátrio
Por Fernando Antonio Silva de Brito Firmeza | 03/02/2016 | DireitoA Ratificação da CDPD e sua Repercussão no Ordenamento Jurídico Pátrio
Inicialmente cabe deixar assente que o Estado brasileiro só veio a aderir aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos após 1985, momento em que se iniciou o processo de democratização do país, que até então vivia sob a tutela de regimes autoritários (a chamada ditadura militar), culminando com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Portanto, o ponto de partida para a análise da inserção do Estado brasileiro no sistema de proteção dos direitos humanos deve ser a Constituição Federal de 1988, que já em seu art. 1º declara expressamente que a República Federativa do Brasil constitui-se num Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos, dentre outros, a dignidade da pessoa humana.[1]
Ressalte-se que dita declaração já deixa evidente a preocupação do Estado brasileiro na proteção dos direitos humanos, eis que eleva a dignidade da pessoa humana a fundamento do referido Estado soberano. Tal importância dos direitos humanos pode ser ainda verificada na posição topográfica privilegiada e destacada conferida aos direitos fundamentais no texto da citada Carta Magna, visto que tais direitos foram posicionados logo nos artigos iniciais da CRFB (arts. 5º a 17), lhes sendo dedicado todo o Título II. Registre-se que são mais de 100 (cem) dispositivos constitucionais que versam sobre os direitos fundamentais. Além disso, esses direitos foram erigidos à categoria de cláusulas pétreas, não podendo ser abolidos da Constituição nem mesmo por processo de reforma constitucional (art. 60, § 4º, IV). Some-se a isso a previsão de inúmeros instrumentos jurídico-processuais de proteção contra o abuso de poder trazidos pela referida Constituição, dentre os quais se podem citar o habeas corpus, o habeas data, o mandado de segurança etc.[2]
Na concepção de Diogo Pignataro de Oliveira[3], a maior inovação trazida pela Constituição Federal de 1988 foi à construção de um sistema constitucional aberto de proteção aos direitos humanos, nos termos do art. 5º, § 2º, parte final, eis que dito dispositivo não exclui do rol dos direitos e garantias fundamentais aqueles decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, ao contrário, os inclui no sistema de proteção nacional.
Pode-se ainda destacar como inovação trazida por tal Constituição o Princípio da Prevalência dos Direitos Humanos, o qual deve reger as ações e omissões do Estado brasileiro nas relações internacionais. Portanto, verifica-se que a soberania estatal brasileira passa a ser mitigada por mencionado princípio constitucional, marcando o ingresso do país no denominado neoconstitucionalismo, que rompe com a concepção tradicional e absoluta de soberania.
Apesar de cada pesquisador conferir ênfase a uma das inovações insculpidas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pode-se afirmar que todas elas possuem sua parcela de importância na inserção do Estado brasileiro no sistema internacional de proteção dos direitos humanos a partir de 1988, mediante a assinatura e ratificação dos vários tratados internacionais.
Conforme preleciona a Constituição Federal de 1988, art. 84, VIII, é de competência privativa do Presidente da República celebrar tratados, convenções e atos internacionais, todavia, para que estes sejam incorporados ao ordenamento jurídico interno, necessário se faz a existência do referendo pelo Congresso Nacional, eis que de acordo com o art. 49, I, da CF/88, “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional;”.
Logo, verifica-se que, regra geral, a incorporação de um tratado internacional ao ordenamento jurídico brasileiro ocorre mediante a realização de um ato complexo, ou seja, faz necessário tanto a manifestação do Presidente da República como a do Congresso Nacional para que o ato de ratificação produza efeitos jurídicos.
Então, pode-se inferir dos dispositivos constitucionais tratados acima, bem como da prática procedimental adotada pelo Brasil, que para que um tratado internacional seja incorporado ao ordenamento jurídico interno brasileiro, faz-se necessário que (a) esse tenha sido assinado pelo Presidente da República, que o encaminhará ao Congresso para apreciação; que (b) o Congresso Nacional aprove tal tratado; e que (c) o Presidente da República ratifique o tratado, quando aprovado pelo Congresso.
Destaque-se que, após a ratificação, faz-se necessário o depósito do instrumento em um órgão que assuma sua custódia. Se se consistir numa tratado de âmbito regional, interamericano, por exemplo, seu depósito deverá ser realizado na Organização dos Estados Americanos (OEA), já se for um tratado das Nações Unidas, seu depósito se dará na própria ONU.
Cumprido o trâmite legal para a produção de efeitos jurídicos, interno e externo, faz-se necessário saber com que hierarquia tais normas são incorporadas no ordenamento jurídico brasileiro.
No que tange à tese da hierarquia constitucional, cabe aqui destacar a posição de Flávia Piovesan, que partindo de uma análise de dispositivos constitucionais, mais precisamente do art. 5º, §§ 1º e 2º, defende a hierarquia constitucional das normas internacionais de direitos humanos no ordenamento brasileiro, eis que a Constituição Federal em seu art. 5º, § 2º, instituiu um sistema aberto de proteção dos direitos humanos (fundamentais), alargando o rol de direitos fundamentais protegidos constitucionalmente, de forma a incluir em seu elenco também os direitos humanos previstos nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Logo, haveria uma ampliação do bloco de constitucionalidade da CRFB, onde a Constituição Formal não coincidiria com a Constituição Material.[4]
Importa ressaltar que tal ampliação da Constituição material brasileira está em plena harmonia com os fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III), bem como com o princípio da prevalência dos direitos humanos que rege as relações internacionais do Estado brasileiro (art. 4º, II).
Destaque-se, também, que, realizando uma interpretação sistemática e teleológica da CRFB, pautada no Princípio da Dignidade Humana – parâmetro axiológico interpretativo da Constituição –, observam-se os embasamentos utilizados por Piovesan na defesa da existência de um bloco material de constitucionalidade, formado por normas internas e externas, ratificadas pelo Brasil.[5]
Diante disso, na concepção de Diogo Pignataro de Oliveira, o sistema jurídico brasileiro de incorporação de tratados internacionais seria “misto”, pois, quanto aos tratados internacionais comuns, eles ingressam no ordenamento pátrio com status de norma ordinária, nos termos do art. 102, III, b, da CF; já no que tange aos tratados de direitos humanos, esses ingressam com hierarquia de norma materialmente constitucional, nos termos do art. 5º, § 2º da CF.
Na ânsia de pacificar a controvérsia quanto à hierarquia de tais normas, o Poder Legislativo promulgou a Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, acrescentando o § 3º ao art. 5º, in verbis: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”.
Em que pese às divergências acima citadas, não se pode desconsiderar a vigência do debatido § 3º do art. 5º da CRFB, pois foi com base em sua permissibilidade que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi ratificada pelo Estado brasileiro, o qual seguindo as normas constitucionais aplicadas ao caso, após sua assinatura, remeteu-a para análise do Congresso Nacional, que, por sua vez, impingindo a esta os trâmites para a aprovação de emenda constitucional, previsto no art. 60 da CRFB, aprovou sua ratificação através do Decreto Legislativo nº 186, conferindo-lhe, portanto, status de norma formal e materialmente constitucional, para todos os efeitos jurídicos. Neste contexto, verifica-se que a CDPD é parte integrante do sistema jurídico pátrio com hierarquia de norma constitucional.
Registre-se, ainda, que não foi apenas a debatida convenção que fora ratificada através do procedimento permitido pelo art. 5º, § 3º, mas também seu Protocolo Facultativo, por isso, ambos os documentos internacionais foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro com hierarquia constitucional.
A hierarquia alcançada por essa convenção internacional traz consigo diversas implicações jurídicas, pois como norma constitucional formal que é, passa a conformar todo o sistema jurídico brasileiro, servindo como parâmetro de constitucionalidade das normas infraconstitucionais posteriores a CRFB, bem como parâmetro de recepção das normas infraconstitucionais anteriores a essa Constituição. Além disso, mencionada convenção, por ter alcançado o patamar de norma constitucional formal, e por versar sobre direitos fundamentais, propicia um alargamento do rol dos direitos fundamentais previstos na CRFB, assim como passa a desfrutar do manto protetivo insculpido no art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal de 1988, constituindo-se em verdadeira cláusula pétrea.
Outra consequência desse status formal pode ser observada no instituto da denúncia, uma vez que se constituindo em cláusula pétrea para o Estado brasileiro, suas disposições não podem ser abolidas, logo, não podem ser objeto de denúncia. Ressalte-se que além destas consequências, é possível elencar mais duas: 1) fortalecimento do papel desempenhado pelos tratados internacionais sobre direitos humanos, abrindo-se a possibilidade de outros tratados desta natureza ser formalmente incorporados ao ordenamento constitucional pátrio; 2) inserção dos direitos específicos das pessoas com deficiência como rol de direitos fundamentais formalmente reconhecimentos, haja vista ser o primeiro tratado internacional de direitos humanos que não suscita qualquer controvérsia quanto ao seu caráter de norma constitucional.
[1]SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo 7ª edição, São Paulo: Malheiros, 2013.
[2]Idem.
[3]OLIVEIRA, Diogo Pignataro de. Os tratados de direitos humanos na contemporaneidade e sua aplicabilidade dentro da nova concepção constitucional brasileira. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. Doutrinas Essenciais: Direitos Humanos. Vol. VI – Proteção Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[4]PIOVESAN, Flávia, Temas de Direitos Humanos, 8ª edição. São Paulo, Saraiva, 2014.
[5]Idem