A PSICANÁLISE - PERCEPÇÃO A PARTIR DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS BRASILEIROS

Por Suely Calabri | 18/01/2018 | Psicologia

A PSICANÁLISE

PERCEPÇÃO A PARTIR DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS BRASILEIROS

 

Dra. Suely Calabri

Foucault esteve algumas vezes no Brasil e há o registro de um debate com o psicanalista Hélio Pellegrino, onde se podem ver, claramente, as diferenças entre o seu pensamento e o da psicanálise. No livro A verdade e as formas jurídicas, publicação das conferências e debates na PUC-RJ, em 1974 e em Dits et écrits I (2001a, t.139, p.1406), após Foucault discorrer sobre a história de Édipo, nas tragédias de Sófocles, e sobre o L'AntiOEdipe65, de Deleuze e Guattari, está registrado o breve diálogo entre os dois. Se para a psicanálise, o complexo de Édipo é um universal no desenvolvimento da criança, em L'AntiOEdipe, o psicanalista e psiquiatra Guattari e o filósofo Deleuze vão definir um papel bem diverso, conforme as palavras de Foucault:

Deleuze e Guattari tentaram mostrar que o triângulo edipiano, pai-mãe-filho, não revela uma verdade atemporal, nem uma verdade profundamente histórica de nosso desejo. Eles tentaram mostrar que esse famoso triângulo edipiano constitui, para os analistas que o manipulam no interior da cura, uma certa maneira de conter o desejo, de garantir que o desejo não venha se investir, se difundir no mundo que nos circunda, no mundo histórico; que o desejo permaneça no interior da família e se desenrole como um pequeno drama quase burguês entre o pai, a mãe e o filho. (FOUCAULT, 1996, p.29).

O Édipo, na psicanálise, seria, na visão de Deleuze e Guattari, com a qual Foucault concorda, um instrumento de constrangimento (la contrainte)68, utilizado pelo psicanalista para conter o desejo do analisando e definir um inconsciente, cuja estrutura familiar, determinada como natural do ser humano, é a vigente na sociedade em que a psicanálise foi criada e não um universal da espécie humana. Na sequência, faz uma análise das peças de Sófocles, em que mostra Édipo como um personagem e relaciona o pensamento de Sófocles, por meio da dramaturgia, com o pensamento de Platão, alguns anos mais tarde.

No debate entre Foucault e Pellegrino, em que o último defende, como psicanalista, Édipo como "uma estrutura fundamental da existência humana" (1996, p.131)69, Foucault, dizendo-se com uma visão pluralista, coloca que o psicológico é intrínseco ao social, em um tempo e espaço próprios; ainda, afirma e reafirma que Édipo não existe e que a psicanálise exerce um poder de constrangimento sobre o analisando.

Anteriormente, dissera que: "o que há de essencial no livro de Deleuze é colocar em questão a relação de poder que se estabelece, na cura psicanalítica, entre o psicanalista e o paciente, relação de poder bastante semelhante à relação de poder existente na psiquiatria clássica" (1996, p.127).70 Em suma, as semelhanças seriam desde o estabelecimento de universais, mesmo que diversos em uma e outra área, ao método, segundo Foucault, confessional e de constrangimento, que ambas exerceriam sobre o sujeito na clínica.

O método de Foucault, no entanto, parte da prática cotidiana e de sua verdade.

O método dessa hermenêutica é o seguinte: em lugar de partir dos universais como tabela de inteligibilidade das «práticas concretas», que são pensadas e compreendidas, mesmo se praticadas em silêncio, parte-se dessas práticas e do discurso singular e estranho que elas supõem, «para passar de alguma forma os universais à tabela de suas condutas»; descobre-se, então, a verdade verdadeira do passado e «a inexistência de universais». (VEYNE, 2008, p.30).71

Além disso, Foucault viveu um momento especial. "Para qualquer um que tivesse vinte anos no dia seguinte à Segunda Guerra Mundial […] A experiência da guerra nos demonstrou a necessidade e urgência de uma sociedade radicalmente diferente daquela em que vivemos." (2001a, t.281, p.868).72 E, entre muitas contestações, várias ocorreram em relação à psiquiatria e ao manicômio.

A contestação da psiquiatria é entendida de modo comum, mas existem diferenças sensíveis entre as ideias reformistas de certos psiquiatras, entre as mais revolucionárias e/ou marxistas, dentre outras, o movimento psichiatria democratica, na Itália, a clínica de La Borde (Jean Oury), na França, a luta do SPK, na Alemanha (coletivo socialista de pacientes da Universidade de Heidelberg) e a ideologia anti-asilar etc. Os autores incorporados a este movimento podem igualmente ter evoluído significativamente na forma de teorizar seu pensamento antipsiquiátrico. (ANDERSEN, 2008, p.158).73

Esses movimentos criticaram também a psicanálise. Mas voltando à crítica de Foucault, desde o penúltimo capítulo de História da loucura na idade clássica (1999a), passando por As palavras e as coisas (2002a) até a sua morte, em 1984, mesmo que sejam colocações contundentes, Foucault não estabeleceu uma posição teórica mais elaborada em relação à psicanálise, como coloca Lagrange, no artigo "Versões da psicanálise nos textos de Foucault"74 (2008-2009).

Dedicou-se muitos anos ao estudo do saber-poder da psiquiatria, porém não fez o mesmo sobre a psicanálise. Destacarei, em seguida, brevemente, algumas das ideias que manifestou sobre o tema em diferentes obras e ocasiões, entre os anos 1960 e 1980.

Lagrange lembra que na História da Loucura, Foucault ressalta que Freud teria o mérito de restaurar a relação concreta entre terapeuta e paciente, por meio da qual se permitiria reviver a experiência da loucura através da linguagem. Em momento anterior, na Introdução a Binswanger75 (2001a), de 1954, Foucault mostra como a linguagem é um elemento dialético, que constitui um conjunto de significações da existência.

Em História da loucura, Foucault coloca a psicanálise na passagem do olhar sobre a loucura, pela observação e classificação, para a linguagem. Em suas breves referências ao método da psicanálise transmite a ideia de uma relação de poder-saber tão eficaz sobre os corpos como a da psiquiatria, referindo-se, por exemplo, à centralização na família e ao sentido da confissão da loucura. Em As palavras e as coisas, de 1966, analisa a psicanálise em sua potencialidade de religar ser e linguagem, o que fora mascarado pela psicologia desenvolvida no século XIX.

Ao falar da situação da psiquiatria, em uma mesa redonda em 1964, Foucault diz que "a psicanálise é, de fato, o grande levantamento dos interditos, definido pelo próprio Freud" (2006c, p.216).

Deve-se, portanto, tomar a obra de Freud por aquilo que ela é: ela não descobre que a loucura está presa em uma rede de significações comuns com a linguagem cotidiana, autorizando assim a falar dela com a banalidade cotidiana do vocabulário psicológico. Ela desloca a experiência europeia da loucura para situá-la nessa região perigosa, sempre transgressiva (portanto, interditada, também, mas de um modo particular), que é a das linguagens implicando-se nelas próprias, quer dizer, enunciando em seu enunciado a língua na qual elas o enunciam. Freud não descobriu a identidade perdida de um sentido; ele cingiu a figura irruptiva de um significante que não é absolutamente como os outros. O que deveria ter bastado para proteger sua obra de todas as interpretações psicologizantes de que nosso meio  século a recobriu, em nome (irrisório) das «ciências humanas» e de sua unidade assexuada. (FOUCAULT, 2006c, p.216).

Na sequência acima, parece-me que ele ironiza – e é intrínseco à ironia, como forma de comunicação, uma dupla linguagem, que confunde o outro –, quando diz que:

Será preciso, um dia, fazer essa justiça a Freud: ele não fez falar uma loucura que, há séculos era, exatamente, uma linguagem (linguagem excluída, inanidade tagarela, fala corrente indefinidamente fora do silêncio ponderado de razão); ao contrário, ele esvaziou dela o Logos desarrazoado; ele a dessecou; fez remontar as palavras até sua fonte – até essa região branca da auto implicação onde nada é dito. (FOUCAULT, 2006c, p.217).76

Dizer que nada é dito, parece-me fazer sentido, pois Foucault não aceita a existência do inconsciente freudiano. Como um materialista que é, o inconsciente é somente a reserva da memória, aquilo que no momento presente está fora da cognição. Como diz Paul Veyne, em Foucault, sa pensée, sa personne (2008), o inconsciente não existe, seja o de Freud ou qualquer outro, ele está somente em nossa cabeça, em lugar de se ler «inconsciente», leia-se «implícito» (VEYNE, 2008, p.32).

Aceitando ou não a existência do inconsciente, a psicanálise institui uma nova linguagem transgressiva, "Freud institui nas ciências humanas uma nova bipolaridade da consciência e do inconsciente, que sucede às bipolaridades da norma e da regra, realizando a bipolaridade significação/sistema." (LE BLANC, 2005, p.80)77.

Em outra abordagem sobre a psicanálise, ao final do capítulo sobre o nascimento do asilo, em História da Loucura, Foucault diz que [Freud] criou a situação psicanalítica, onde, por um curto-circuito genial, a alienação torna-se desalienante porque, no médico, ela se torna sujeito.

…O médico, enquanto figura desalienante, continua a ser a chave da psicanálise. Talvez seja porque ela não suprimiu essa estrutura última, e por ter conduzido a ela todas as outras, que a psicanálise não pode e não poderá ouvir as vozes do desatino, nem decifrar em si mesmos os signos do insensato. A psicanálise pode desfazer algumas das formas da loucura; mesmo assim, ela permanece estranha ao trabalho soberano do desatino. Ela não pode nem libertar nem transcrever e, com razão ainda maior, nem explicar o que há de essencial nesse trabalho. (FOUCAULT, 1999a, p.503).78

A meu ver, o olhar de Foucault para a psicanálise, nessas citações, é elaborado a partir de seu objeto de análise, a construção da loucura como expressão humana e de sua crítica às formas de contenção da psiquiatria. Estaria a psicanálise estabelecendo um método paralelo à psiquiatria para "desfazer algumas das formas de loucura"? Parece-me que não, que a psicanálise não é um substituto à psiquiatria, o sentido da análise segue outras vias. Vejo-a mais como uma intervenção no sofrimento do sujeito e não um «desconstrutor» de loucura para impor regras de conduta permitidas na sociedade. Se a psiquiatria busca conter a loucura, a psicanálise busca conscientizar as neuroses, ligadas à linguagem e sua interpretação e não à desrazão, como no caso da construção da loucura. De qualquer maneira, é claro, não se pode esquecer que a psicanálise nasceu no espaço de expressão da loucura, mas ela seguiu um caminho diverso do universo da loucura.

Foucault fala que a loucura é uma linguagem excluída e que o que é considerado loucura em uma sociedade, em uma época, pode não ser em outra, pois os interditos da linguagem passam por alterações. Se a loucura passa a ser tratada como doença mental, especialmente a partir do século XIX, pode deixar de ser doença em algum momento próximo.

A exclusão da loucura está inscrita na linguagem interdita em seu meio, seja ao código da língua (linguagem dos insensatos, imbecis e dementes), à blasfêmia, à censura ou ao esoterismo. Ela se insere em cada época e sociedade de maneiras diferentes e, sendo assim, a qualquer momento pode ser desfeito o pertencimento de loucura e doença mental à mesma unidade antropológica. Se a loucura como doença mental é uma construção social, pode deixar de sê-lo em algum momento próximo, esta unidade pode desaparecer com o homem,

postulado passageiro, como vimos em As palavras e as coisas.

Lagrange afirma que a psicanálise seria uma racionalidade habilitada para ouvir a alteridade, baseado em que Foucault considera Freud aquele que mais "aproximou o conhecimento do homem de seu modelo filológico e linguístico" (FOUCAULT, 2002a, p.499), ao tentar romper com a divisão positivo/negativo, normal/patológico, compreensível/incomunicável, significante/não-significante.

Foucault, entre tantas alusões críticas à psicanálise, deixou seu registro nos livros: História da Loucura na idade clássica79 (1999a), de 1961, O nascimento da clínica, (2006a), de 1963, As palavras e as coisas (2002a), de 1966, História da sexualidade, a vontade de saber (1980), de 1976. E nos cursos: Os anormais (2002b), curso de 1974- 1975, e A hermenêutica do sujeito (2010), curso de 1981-1982, mas especialmente nos cursos O poder psiquiátrico (2006b), curso de 1973- 1974, e Em defesa da sociedade (1999b), curso de 1975-1976. Além disso, há inúmeras outras citações em textos avulsos, entrevistas e palestras, publicados em Dits et écrits (2001a; 2001b).

Muitas das análises sobre a psicanálise se valem de utensílios que não alcançam o binômio consciente-inconsciente, o sujeito em sua vivência inconsciente. A meu ver, Foucault faz parte desses analistas.

Ele criou, com maestria, uma racionalidade que serve para analisar as ciências modernas, em especial as que advêm da biologia, como a psiquiatria e as relações de poder e suas instituições. Mas como ele mesmo reconhece que a psicanálise não é ciência e sim uma contra ciência (Foucault, 2002a), a sua caixa de ferramentas talvez não seja a mais apropriada para a análise de um método analítico terapêutico construído no binômio consciente-inconsciente.

Portanto, para melhor compreender como se insere ou não o binômio consciente-inconsciente na «épistémè» normal-patológico, abordarei outros autores. Porém, antes abordo aspectos da medicalização e da psiquiatria biológica, em um contexto atual. Para dar a dimensão da medicalização em processo no Brasil, analiso um vídeo do projeto em execução da psiquiatria do desenvolvimento e um artigo da Revista de Psiquiatria Clínica ligado ao mesmo projeto.

A ANÁLISE PELA PALAVRA

Na curva descendente da «insurreição dos saberes sujeitados» - em Em defesa da sociedade (1999b), conforme abordado anteriormente neste trabalho (cap.2) -, após os anos 1970, com o investimento e novas descobertas tecnológicas, como as ocorridas em genética e no imageamento do corpo, foi reforçada uma verdade hegemônica, onde aqueles saberes novamente foram abafados ou pior, foram feitas releituras reacionárias para encaixá-los à voz aceita pela maioria (seja em número e/ou em poder).

E a psicanálise, que naquele momento histórico foi alijada não só por Foucault, mas também pelos movimentos sociais, tanto pela sua rigidez institucional como pelo que no início do século causara impacto: a sexualidade. Mas para os movimentos dos anos 1960-70, que foram de liberação sexual, de experimentações de sensações e descobertas no corpo, a psicanálise que ousara inserir a energia sexual na formação do eu passa a ser «careta». Ela própria que dera sua parcela de contribuição para esse momento de liberação dos corpos, já não servia mais às reivindicações de «paz e amor». Era tempo de leitura de O assassinato de Cristo, A psicologia de massa do fascismo e Escuta, Zé Ninguém, de Wilhelm Reich, de A morte da família, de David Cooper, entre outros, que questionavam a moral cristã, os valores da família e da sociedade, como lutavam pelo direito ao aborto e às opções sexuais. O amor livre não foi retórica, da experiência mudaram-se os valores. Os movimentos contra as guerras e os poderes, a arte psicodélica, as vivências de

alteração da consciência pelo uso de drogas e práticas de meditação marcaram um tempo de experimentações de modos de viver. Realmente, a psicanálise não cabia nisso tudo.

Mas hoje, no momento de recrudescimento das liberdades cantadas em prosa e verso há pouco mais de 30 anos, os saberes que lá se «dessujeitaram», foram absorvidos pelo sistema, não sem mudanças, é verdade. Por exemplo, a sexualidade mudou, caiu o tabu da virgindade e muitas das reivindicações dos oprimidos tornaram-se leis e políticas públicas. O aborto, no Brasil, continua criminalizado, mas as relações afetivas têm todas as cores e gêneros e deixaram de ser patologias.

Mas a história não é linear e se a psicanálise não serviu aos movimentos libertários daqueles anos, por sua posição conservadora institucional ou por ser criticada como mantenedora da instituição da família, hoje ela poderia, estrategicamente, ocupar um lugar diferente, como uma maneira de entender que a verdade não é única e que a relação terapêutica é muito mais importante do que o diagnóstico. Além do rótulo, a medicação psicotrópica mascara a dor e embota a busca de liberdade e a alteridade, não contribui para conhecer a si mesmo.

É importante lembrar que a psicanálise é contemporânea da psiquiatria de Kraepelin e aquela foi uma abertura de pensamento na entrada do século XX e pode novamente ser um movimento na contramão da psiquiatria, esta que no fin de XXe siècle, altamente tecnológico, apresentou-se como neo-kraepeliniana.

La psiquiatría actual se reconoce como heredera directa de esa tradición cuando acepta al Diagnostic and statistical manual of mental disorders DSM-IV-TR (Apa, 2000), que se define como neo-kraepeliniano, como referencia fundamental para las clasificaciones diagnósticas.

Esa actualidad del discurso de Kraepelin nos conduce a interrogarnos por la estructura teóricometodológica por él inaugurada a fin del siglo XIX. (CAPONI, 2010b, p.475).

A política tem como uma de suas características a flexibilidade. E o momento é grave e é necessária uma relativização da verdade científica no campo psi. Para isso, vejo como uma possibilidade o esforço para dirigir um novo olhar à psicanálise, não em um movimento retroativo ou saudosista, mas como uma abertura do pensamento no campo psi para além da prova científica, por meio da prova pela fala, como analisa o psicanalista Roland Gori (1998).

Dentro deste mercado de ações que é a epistemologia moderna, o caráter metafórico e poético de uma teoria, como se insere a psicanálise, recebeu um veredito pejorativo. Este exemplo em particular é, na minha opinião, o que levou analistas a repudiar o poder mutatório da construção, que Freud afirma como indispensável em seus textos mais tardios. (GORI, 1999, p.286).92

O projeto neoliberal arquitetado entre os donos do poder (Consenso de Washington, 1990) – como é bem colocado no livro O relatório Lugano (2002) – o poder legal de estado e da indústria, instaura a sua verdade nos meios de comunicação de massa e de educação. Mas tudo não é negativo, uma janela se abriu com a revolução tecnológica da comunicação, promovida pela indústria, é claro, mas que escapa de suas garras, a criatura passa de dominada a formadora de opinião. Falo das possibilidades criadas pela internet, por meio das redes sociais e suas inesgotáveis tecnologias de interação entre indivíduos sem a intermediação da própria indústria da comunicação.

Por esse meio popular, pois é pela comunicação e relacionamento entre pessoas, se deu a quebra da indústria de CDs de música e há um movimento contra o controle sobre a arte e a cultura na rede virtual.

Além disso, dessa virtualidade nas relações estão se construindo também fatos históricos, como as revoluções, as manifestações contra governos ditatoriais e contra a própria ordem capitalista, como os movimentos sociais que marcaram o ano de 2011 e continuam por todo o mundo, como a «primavera árabe» e os «indignados». Não poderia ser relativizado a partir das possibilidades abertas pelas redes virtuais, o quadro hegemônico da psiquiatria biológica? A defesa, aqui, não é da psicanálise como a solução ao sofrimento psíquico, muito menos pela remissão de sintomas, mas entender que, como diz Gori, é preciso manter o que há de mais humano, a possibilidade de sofrer e ter consciência de sua própria dor e condições para efetuar mudanças. Claro, poderia então se pensar na filosofia, com o último Foucault, mas aqui tratamos da intervenção clínica e, se por um lado, ela merece a crítica, seja psiquiatria ou psicanálise, por outro ela existe e precisa ser relativizada. Penso que a psicanálise é potencialmente capaz de produzir um espaço clínico de alteridade, pois a relação terapêutica não é uma imposição de verdade.

Diverge muito do instrumental da psiquiatria, onde o médico é um observador externo. O psicanalista é integrante da terapêutica, a dinâmica da relação é muito diferente. Poderia ser dito que a interpretação psicanalítica tem o mesmo poder do diagnóstico de patologia, mas teríamos de admitir que o paciente da clínica psiquiátrica é o mesmo do setting psicanalítico, o que não é exato, pois a postura exigida em uma e outra técnica influi na postura da pessoa que é atendida. Enfim, a dinâmica de comunicação proposta pelo clínico interfere nas possibilidades do outro, no caso o paciente, aquele que procura ajuda para o seu sofrimento psíquico. A complexidade se amplia quando a psicanálise propõe o binômio consciente e inconsciente.

Substituindo a distinção entre normal e patológico pela distinção entre consciente e inconsciente, Freud produziu uma revolução na configuração epistêmica das ciências humanas, virando as costas à figura do homem ao invés de pensar nisso como uma nova figuração mental do homem. A radicalização da análise freudiana que se esforça em pensar as patologias da vida psíquica sem referência a uma normalidade mental admitida a priori, e que o vocábulo personalidade seria supostamente para resumir, é completamente ignorada por Foucault. Esse é talvez o ponto mais surpreendente. É que toda a medicalização da pessoa humana, já presente na História da loucura e em O nascimento da clínica, amplificada na análise sobre o poder disciplinar e mais ainda sobre o biopoder, é estranhamente ausente de um dos maiores opus de Foucault, As palavras e as coisas. A psicanálise não é nem mesmo

convocada sob esse aspecto. No entanto, a clínica da vida psíquica que Freud formula, rigorosamente, não somente situa a psicanálise em uma estreita relação de proximidade e antagonismo com a medicina, mas, ainda mais, questiona o olhar médico sobre o normal e patológico, e assim fazendo, explicita a história das ciências humanas como uma história que corre o risco de ser sempre anteriormente médica.

Comte e Freud marcam assim as duas bordas de uma história médica das ciências humanas incrustadas no interior da ficção da normalidade.

Não é certo que tenhamos saído da ambivalência das ciências humanas. Seja ao fazer e sempre refazer a normalidade ao mesmo tempo em que ela é derrubada pelas patologias. Seja ao instituir uma normalidade da vida psíquica, seja ao destituir a normalidade na própria análise da vida psíquica. (LE BLANC, 2005, p.26-7).93

A psicanálise, dessa maneira, pode ser considerada uma ruptura epistêmica à psiquiatria e à psicologia do comportamento, não as substituindo, mas constituindo outra linha de pensamento e de intervenção sobre pessoas em sofrimento psíquico. No século XX, Freud e seus discípulos se empenharam em institucionalizar e formar psicanalistas, médicos e não médicos, fora da psiquiatria, fora dos hospitais. Constitui-se, assim, um novo discurso e uma nova estratégia de intervenção clínica.

A psicanálise é uma racionalidade de intervenção clínica, que revolucionou o pensamento sobre sexo, infância e comportamento.

Freud criou um setting terapêutico singular, que se constrói na relação terapeuta-paciente e não na observação do paciente, como na psiquiatria, que visa a diagnose, prescrição e cura de patologias. O fundamento do tratamento é a interpretação da relação terapeuta-paciente e dos desejos inconscientes, de modo a que a pessoa construa suas possibilidades de mudança na maneira de encarar o seu mundo emocional e as suas relações e meio em que vive. A partir da psicanálise vão surgir inúmeras linhas de pensamento e psicoterapias, influenciando inclusive a psiquiatria.

O inconsciente é tão abstrato quanto a normalidade, à qual Le Blanc atribui a qualidade de ficção, do mesmo modo que Michel de Certeau a atribui à psicanálise.

Ele [Freud] modifica o «gênero» historiográfico ao introduzir a necessidade, para o analista, de marcar seu lugar (afetivo, imaginário, simbólico).

Ao transformar essa explicação na condição de possibilidade de uma lucidez, ele substitui, assim, o discurso «objetivo» (aquele que visa dizer o real) por um discurso que assume a figura de «ficção» (se, por «ficção», entende-se o texto que declara sua relação com o lugar singular de sua produção). (CERTEAU, 2011, p.74-75)

Isso não quer dizer, que normalidade e inconsciente sejam abstrações de um mesmo teor. A normalidade é parte de um discurso, que se diz objetivo, mas que é abstrato, pois não existe o homem mediano nem tampouco o homem ideal, ambos componentes da normalidade. O primeiro é o resultado de dados estatísticos, como os da epidemiologia, e o segundo, o homem ideal, é fruto de uma ficção sobre moralidade e não-patológico, caminho que promete o não alcançável, a felicidade.

NORMAL-PATOLÓGICO│CONSCIENTE/INCONSCIENTE NA EXPERIÊNCIA DA CLÍNICA

A palavra clínica se refere tanto ao exercício da medicina como ao conjunto dos sinais, sintomas e evolução de uma doença observáveis diretamente, enfim, clínica se refere ao exercício da medicina e por extensão às profissões da área de saúde, segundo o Dicionário Houaiss.

A definição de terapeuta também está relacionada à função de cuidar e curar doentes, usada mais comumente para psicanalistas e psicoterapeutas. Mas consideremos com Foucault e Deleuze a clínica psi englobando a prática de médicos, psicólogos e psicanalistas.

A clínica não remete absolutamente às práticas médica e neurológica; remete às práticas psiquiátrica e psicanalítica, pois são essas as referências clínicas que encontramos na obra de Deleuze. No campo da filosofia contemporânea, parece-me que apenas Foucault se interessou intensamente por psiquiatria e psicanálise, tendo realizado uma das obras maiores sobre a arqueologia da clínica médica (BIRMAN, 2000, p.463).

 A NORMATIVIDADE SOCIAL E O SOFRIMENTO PSÍQUICO

Falar na clínica psi abre um debate entre o desejo da norma e o sofrimento do ser humano. Le Blanc (2007) parte da convicção de que existem diversas normalidades e que a norma admite desvios. Por meio do discurso da psicanálise, ele explica a formação do sujeito submisso a uma normatividade social. A criança se torna um sujeito na dinâmica entre inconsciente, eu e super eu. Essa dialética traz em si um desejo contra a norma. Desse modo, a normalidade teria sua origem em uma violência inicial na formação do eu e o homem normal seria um normopata, um homem doente da norma.

Pergunta-se, então, o autor, onde está esse ser humano normal: não existe. A normalidade é simplesmente um padrão que não é ninguém e exige de cada um e de todos a busca do modelo que se configura entre uma norma majoritária e uma norma minoritária, sendo que esta se expressa nas experiências de desprezo social destinadas a alguns grupos e indivíduos excluídos das condições básicas de vida de um cidadão.

As operações de formação do si mesmo se dariam por meio do assujeitamento, que compreende a subjetivação, e da individuação, o que nos coloca diante de um paradoxo, pois como se pode ao mesmo tempo um sujeito ser subjetivado e processar uma individuação. Essa complexidade do ser da norma se expressa e se explica no espaço de articulação entre um sujeito real e um sujeito exemplar.

Se existe um homem típico, ele está inserido em uma sociedade de instituições disciplinares, como nos apresentou Foucault, que lhe ensina a se esforçar em cumprir as normas, seja no trabalho, nas escolhas de lazer, na constituição familiar, nos modos de entender as relações humanas e os próprios direitos e os dos outros. Novas questões e paradoxos se apresentam, pois se as normas, pelo processo de disciplinarização promovem subjetividades e assujeitamento, promovem elas também, a autonomia, que parece ser uma ilusão própria de uma sociedade da comunicação, própria do homem normal. A autonomia e a

disciplina não são opostas, mas duas vertentes normativas na construção do homem típico. O ser humano não típico se expressa por normas minoritárias, inserido em situações sociais ou psíquicas, escolhidas ou impostas; não se adapta à normalidade, não se encaixa a uma norma majoritária, vive em uma fronteira entre ser social e ser não-social (LE BLANC, 2007, p.49-52).

Segundo Le Blanc, Canguilhem rompe o modo de olhar as relações do vital e do social, ao indicar que obedecem a duas perspectivas incomensuráveis.

Em toda sociedade se constroi uma cultura e sua normatividade, que em termos individuais e coletivos possibilita uma liberdade subjetiva, em uma  vital. A «resistência» é a ressignificação da liberdade subjetiva, da própria experiência da subjetividade, da possibilidade de individuação e de formação de novas normatividades. Há uma ligação decisiva entre a afirmação da subjetividade e a ação de «resistência» (LE BLANC, 2002, p.252).

Em um segundo enfoque de Canguilhem, a normalização diferentemente da normatividade, é assinalada pela sua arbitrariedade social, sua ausência de conexão com a vida. A normalidade social não pode ser confundida com a normalidade vital. As normas sociais funcionam como regras de medida que repartem os comportamentos, qualificando-os em normais e patológicos. Desse modo, a normalização social são decisões externas ao objeto normalizado, supondo uma intenção normativa. individual e coletivo. Pela perspectiva vital, a vida é sujeito necessário de suas normas, segundo a perspectiva social, a sociedade é sujeito contingente de suas normas.

Canguilhem se afasta do pensamento de Foucault, que enfatiza a eficácia das normas sociais para respostas normativas produzidas pelos seres humanos. As normas sociais, como solicitam a adesão dos indivíduos às regras que enunciam, constituem um dispositivo, um diagrama pelo qual os indivíduos, medidas avaliadas, são assujeitados. (LE BLANC, 2002, p.255).

As normas, em Foucault, constituem a racionalidade da sociedade, de acordo com os valores econômicos e por meio das técnicas disciplinares. Entre as metas se pode destacar a produtividade no trabalho e a aceitação das próprias normas majoritárias, que oprimem o sujeito.

Para Canguilhem, a atitude do ser humano diante da vida é uma experiência dinâmica que interliga biológico, social e existencial em um tempo histórico. Essa complexidade é reduzida pelo binômio normal/patológico.

A clínica do sofrimento do homem normal se desenvolve nos interstícios entre normal e patológico, que passa pelo "risco de procurar basear a significação fundamental do normal por meio de uma análise filosófica da vida compreendida como atividade de oposição à inércia e à indiferença" (CANGUILHEM, 2006, p.198).

Mas a clínica médica não é unicamente um construtor de normalidade, ela sustenta uma referência do estado normativo, que apresenta uma ambiguidade de sentido ao termo normal, que ora se refere a uma média estatística ora, a um ideal de perfeição. A clínica psiquiátrica promove uma teorização no campo psi e não o contrário.

Não nascem no laboratório as especificidades da clínica psicológica, pelo contrário, a psiquiatria se inicia dentro do social, tomando uma posição política ao medicalizar o anormal. Por exemplo, a medicalização da masturbação no século XIX está ligada à moralização da sexualidade naquela sociedade europeia e a sua codificação etiológica cria patologias e seus doentes. A culpa ou a crença de que a masturbação causa doenças contribuiu para o processo de adoecimento psicológico e físico (FOUCAULT, 2002b, p.304-5). A construção classificatória de psicopatologias é formadora de subjetividades na

construção de doentes, que cumprem a etiologia construída no binômio normal-patológico. Nesse sentido, Hacking (2000) desenvolveu o conceito de doenças transitórias e as etapas de construção de psicopatologias, que afetam as subjetividades em um tempo e espaço específicos.

Existe hoje certo consenso sobre as dificuldades implícitas na multiplicação e proliferação de novos diagnósticos psiquiátricos (CONRAD, 2007; HORWITZ, 2002; LANE, 2007). Essas classificações, relacionadas prioritariamente a comportamentos socialmente indesejados, permitem que quase todos os nossos sofrimentos e condutas sejam redefinidos em termos médicos.

As fronteiras entre o normal e o patológico parecem ter-se tornado cada vez mais ambíguas, móveis e instáveis. A medicalização de condutas classificadas como anormais se estendeu a praticamente todos os domínios de nossa existência. Novos diagnósticos e novos transtornos surgem a cada dia, levando-nos a agrupar num mesmo espaço classificatório fenômenos tão diversos e heterogêneos como a esquizofrenia, a depressão, os transtornos de ansiedade e sono, as fobias e os mais variados e inimagináveis tipos de comportamento considerados indesejáveis. (CAPONI, S. 2009b).

Assim, não é de uma história dos fatos da loucura e do progresso científico que se trata, pois a ciência não deixa de ser uma construção sócio histórica e no campo psi a experimentação clínica tem suas especificidades. A clínica da psicopatologia desqualifica a palavra, no modelo das ciências contemporâneas, o que quer dizer que desqualifica o sujeito da clínica.

Quando duas pessoas consideradas sadias por consenso geral se encontram, um reconhece o outro como a pessoa que o outro julga ser.

Mas quando de uma pessoa foi tirada a credibilidade familiar ou social de que é sadia, ela paga por não partilhar da verdade comunal. O profissional julga segundo categorias próprias diante das quais aquele que está desesperado inevitavelmente fracassa. É difícil transportar-se ao mundo de uma pessoa cujas experiências podem ser totalmente carentes de qualquer certeza existencial. Pode ter medo de perder a identidade, sofrer um sentimento de vazio, pode estar petrificada pelo medo da perda de si mesmo. Diante de um interrogatório e de uma postura de desconfiança é fácil que uma pessoa em tal estado de fragilidade sinta-se ameaçada (LAING, 1975, p.27-66).

Minha impressão, com base na prática e experiência psiquiátrica, é que a única coisa importante, que realmente faz diferença, para as pessoas que estão num estado de angústia, é encontrar outro ser humano que realmente esteja lá, com uma presença real para elas. E isto é muito raro. (LAING, 1976, p.282).

Em outra perspectiva da constituição da psicopatologia e do método clínico, a psicanálise se constrói pela escuta do ato de enunciação, ou seja, configura o ato da fala em um binômio consciente/inconsciente e é por meio da interpretação da relação terapeuta-paciente que se analisam os meios psicológicos utilizados pelo paciente.

O sofrimento, em nome do qual o paciente vem se consultar, só é analiticamente tratável no momento de sua inserção e determinismo no mal estar da situação analítica. Isto pelo próprio jogo da regra fundamental que é a interpretação primeira. Ao convidar o analisando a falar, o analista desloca para a origem do sofrimento, do qual se queixa o paciente, para o lugar do discurso antecipado das sessões de psicanálise. Desde aí, a natureza e a estrutura da situação analítica serão os recursos da nossa ação e da sua teorização. (GORI, 1998, p.40).

Não há espaço na epistemologia moderna para o caráter metafórico e poético de uma teoria, isso é visto de maneira pejorativa, como no caso da psicanálise, pela destituição da prova pela palavra (GORI, 1999, p.285-318).

O sofrimento psíquico é condição da vida e dessa angústia da norma, em uma instabilidade dinâmica permanente. O homem normal sofre de uma angústia que não reconhece em si mesmo, por ser um sujeito que se reconhece pela exterioridade da norma, pelo próprio desejo da norma. Se a adaptação é uma condição para o assujeitamento, é também uma condição para a criatividade, pois a vida psíquica está relacionada ao pertencimento a um grupo. O sofrimento é intrínseco à vida e ao ser isso reconhecido está dado um passo para a possibilidade de se resgatar ou até preservar a criatividade e a possibilidade de o sujeito romper sua condição de assujeitado.

É por isso que uma clínica do sofrimento psíquico não pode consistir, simplesmente, em aliviar o indivíduo em si, dando-lhe os meios de se readaptar às normas em vigor em uma sociedade.

Ela não é uma técnica de readaptação, mas, sobretudo, um protocolo de ajuda, emergindo do interior de um sofrimento, destinado a sustentar novamente uma criatividade da vida psíquica e, também, suscitar, não as condições de uma vida normal, mas de uma vida que mesmo que guiada dentro das normas, consiga criar, a partir de sua relação com as normas enfim assumidas e assim tornar-se criativo, de agora em diante algo desejado. (LE BLANC, 2007, p.134)123

As clínicas da psiquiatria e da psicanálise mostram suas diferenças nos discursos e a análise de alguns excertos será no sentido de deixar à mostra os modos de compreender o ofício, propriamente dito, de clinicar.

Sem me preocupar com o período dos artigos utilizados, a análise que segue se detém sobre os modos de fazer a clínica ou mesmo de entender como ela deve ser feita.

O SUJEITO NA CLÍNICA NO CONTEXTO DA REVISTA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE

 A sessão psicanalítica

A formação de psicanalista referida nos artigos da Rev. bras. psicanál. é aquela realizada pelos Institutos de Psicanálise, ligados às sociedades associadas à Febrapsi, por sua vez filiada à Associação Internacional de Psicanálise (IPA). As associações e sociedades são responsáveis pela formação, mesmo que existam regras gerais a serem cumpridas por todas. As formações realizadas nos institutos definem a inscrição de candidatos conforme o estatuto da sociedade a qual pertence. Assim, algumas só aceitam médicos, mesmo que o ofício de psicanalista não seja da ordem de conhecimento da medicina. A profissão de psicanalista não é regulamentada e a instituição, de modo geral, concorda com isso, prefere essa condição, por muitos motivos, que não cabem agora (ver cap.7).

Na Rev. bras. psicanál. são numerosos os artigos descritivos da sessão analítica e de análise do processo relacional estabelecido na sessão.

A situação analítica é uma situação social artificial, onde se estabelece o relacionamento entre paciente e analista, e em cujo palco o primeiro dramatiza e revive seus conflitos emocionais objetivados no analista, enquanto este se ocupa em traduzir as vivências em termos de pensamento e conhecimento. (BICUDO, 1969, p.503).

A sessão psicanalítica é a unidade de tratamento e uma experiência única (CÉSIO, 1975, p.183-4). É um encontro de duas pessoas em que cada uma tem um papel definido, que se estabelece por meio de um contrato terapêutico, em que o terapeuta estipula o tempo de duração de sessão, periodicidade, honorários do psicanalista e responsabilidades de cada um.

O paciente é a razão do estabelecimento do contrato e a psicanálise é iniciada, se cumprido o método estabelecido por Freud, por meio da associação livre, que tem maior eficiência com o uso do divã, que "tem por objetivo limitar os estímulos sensoriais, limitação que tende a criar as melhores condições para a análise de transferência por proporcionar uma situação de relaxamento do controle racional" (CÉSIO, 1975, p.185).

A posição a tomar junto ao paciente é de simplesmente ficar ouvindo sem dirigir a mente ou ocupá-la com especulações e sem se preocupar se está retendo algo, mesmo se o que vem do paciente dá impressão de obscuro, ininteligível e mesmo desconexo, beirando o caótico. (WERNECK, 1979, p.146).

O psicanalista precisa saber ouvir, é uma escuta apreendida nessa complexa formação e ao longo da própria prática. Deve desenvolver uma capacidade específica para compreender a experiência transferencial e criar a interpretação. E isso pode ser apreendido em uma formação longa e sui generis em relação às outras formações para o exercício da clínica. A formação é composta de análise pessoal, cursos teóricos e prática, com supervisão de caso. Para alguns dos autores, os cursos só deveriam ser iniciados após o candidato já ter certo conhecimento de si próprio, conforme se espera seja alcançado no desenrolar da análise. Essa posição pretende preservar o aprofundamento na análise pessoal e evitar resistências que possam se desenvolver pela "intelectualização estimulada pelos cursos e as interferências provocadas pelos contatos no Instituto e Sociedade como outros candidatos e com analistas em geral, inclusive o seu próprio" (WERNECK, 1979, p.157).

A arma decisiva da técnica psicanalítica é a interpretação… Boa parte do que se passa no processo analítico escapa à percepção do analista.

O paciente se cura não tanto por aquilo que o analista supõe estar fazendo em sua intervenção técnica consciente, mas antes de tudo, por aquilo que o analista inconscientemente faz. (MARCONDES132, 1982, p.110).

E a técnica da palavra se dá em uma dinâmica própria, como coloca o psicanalista: "Podemos analisar uma sessão isolando aspectos constitutivos da mesma: o enquadre, a associação livre, a atenção flutuante, a transferência-contratransferência e a interpretação" (CÉSIO, 1975, p.184). A atenção flutuante é a contraparte da associação livre, a escuta psicanalítica das representações de ideias latentes advindas da associação livre do paciente.

[A] interpretação de fato concreto insiste em fazer o paciente perceber que só ele pode encaminhar a solução. Para consegui-lo, o linguajar alusivo do analista funciona como estímulo à manifestação do peculiar ao paciente.

[A] importância da identificação projetiva para a compreensão e o conhecer. O mito e o símbolo aparecem como veículo de escolha para a comunicação e a transmissão da mensagem através do tempo. (CORRÊA, 1979, p.321).

Durval Marcondes desenvolve seu raciocínio baseado em sua experiência e em diversos autores psicanalistas, curiosamente, quase metade mulheres. De maneira breve, o pioneiro psicanalista brasileiro nos diz que na interpretação, o confronto não se dá entre fantasia e realidade, passado e presente, o confronto é entre a fantasia que reproduz a situação original (objeto infantil) e outra fantasia correspondente a uma fase mais madura do desenvolvimento do paciente e que ele não pôde atingir na ocasião oportuna. É por meio da "atitude interpretativa" que o analista torna possível ao paciente o encontro sucessivo dos objetos infantis e a possibilidade de dominar esse passado.

Na transferência repete-se a cada instante o drama infantil do conflito entre a dependência e a independência. A análise implica, para o paciente, uma opção entre duas relações objetais concomitantes no presente, mas distintas no passado. A interpretação é um convite à mudança.

Ela atinge seu objetivo na medida em que o analista consegue transmitir contra transferencialmente a segurança necessária ao movimento propulsivo. (MARCONDES, 1982, p.113).

Além de conceituar a atitude interpretativa, ao final toma posição pela "improvisação intuitiva" (p.115) do analista e os riscos, como "uma diluição extrema das fronteiras da técnica psicanalítica", porém ressalta que "a excessiva rigidez das normas técnicas tem prejudicado imensamente os resultados práticos da psicanálise". E acrescenta que ao analista é preciso "saber libertar-se da tirania das regras aprendidas durante seu preparo acadêmico" (p.116).

Durval Marcondes mostra em toda a sua carreira ser um homem de coragem e determinado na intenção de desenvolver a psicanálise no Brasil. Nesse artigo, isso transparece em suas posições, de certa maneira audaciosas em seu tempo e lugar, que deixam espaço aos detratores ao tomar uma posição pela liberdade do paciente condicionada pela liberdade do analista, que é o condutor do processo, porém não escolhe o caminho, esse é obra do autor da análise, o paciente. Essa posição é audaciosa pela novidade e pela liberdade para o estabelecimento da relação psicanalítica. Trata-se de um homem aberto ao novo, como foi desde a graduação em medicina, quando ouviu pela primeira vez o nome de Freud e sua psicanálise. Isso foi em 1919 nas aulas de Franco da Rocha, médico psiquiatra que ficou conhecido pela direção do Hospital do Juqueri, na cidade que hoje leva seu nome. Nunes Filho preocupa-se com "a dissolução da técnica em nome de uma relação integral com o paciente" (1977, p.417), de um lado, e de outro um grupo que defende a rigidez da técnica. Coloca que a psicanálise atravessa uma crise de fundamentos e está se fragmentando em vários grupos que se hostilizam. O autor vai organizando sua

posição em relação à técnica e aos problemas dos psicanalistas no país e resgata o percurso de Freud na construção da clínica, quando deixa as técnicas de submissão, que eram a hipnose e a sugestão. Cito:

Freud foi se aproximando, progressivamente, da regra básica da livre associação. O paciente não devia ser dominado por palavra ou atos imperativos. Em vez disso, o médico assumia uma posição de coparticipação, de atenção flutuante, que lhe permitisse ouvir, não uma exposição ordenada, senão um relato solto dos aspectos inconscientes e irracionais do paciente, cujo sentido era necessário descobrir. (NUNES FILHO, 1977, p.419).133

A liberdade do paciente deve ser resguardada e dessa forma é possível o aparecimento da verdade. "Em psicanálise, o papel do analista é facilitar o aparecimento da verdade. Buscar a verdade é deixar o paciente ser de modo mais livre" (p.421). Para o autor, "todo o trabalho de Freud é uma antecipação da tese de Heidegger134, que diz ser a liberdade a própria essência do ser" (p.421).

A experiência da dupla é determinante do que conhecemos por desenvolvimento na transferência – a capacidade que o analisando vai tendo de expressar, na experiência, aspectos que estavam «deixados», mas que na presença do analista vão sendo novamente incluídos, dando-se a oportunidade de acompanhamento; o desenvolvimento na experiência emocional de aspectos transferenciais totais na presença do analista propiciam a integração de aspectos cindidos; são transformações do analisando e do analista, proporcionando um jogo dialético na experiência em trânsito, permitindo formulações dos movimentos. (GOLDSTAJN, 2003, p.398).

Estabelecido que a relação na clínica é a própria condição da análise, vamos olhar alguns artigos sobre o método psicanalítico. É preciso diferenciar método de técnica. No artigo da Rev. bras. psicanál. (2000, p.111-130), Baptista desenvolve um raciocínio indutivo até chegar a uma síntese, como segue:

O objeto da psicanálise é a transferência considerada segundo dimensões puramente sincrônicas vividas pelo homem em condição de análise, transferência e condição de análise geradas pela aplicação do método interpretativo e seu corolário; o método psicanalítico é o método interpretativo quando aplicado sincronicamente à transferência do homem em condição de análise.

O objeto da psicanálise estará, sempre, em condições de receber a aplicação de qualquer técnica psicanalítica. (BAPTISTA, 2000, p.125).

Ressaltando o artigo do colega, na Rev. bras. psicanál. (2003, p.355-363), Luiz Marcírio Machado acrescenta algo muitas vezes repetido nos artigos, que método e pesquisa em psicanálise, desde Freud, caminham juntos.

Enquanto ciência que estuda o aparelho psíquico, a psicanálise define o seu objeto como sendo o inconsciente. Em outras palavras, é uma disciplina que estuda as formas de armazenamento da memória inconsciente e seus deslocamentos pelas cadeias de significantes intra-sistêmicos. Não por acaso a este fenômeno representacional, Freud também chamou de transferência. (MACHADO, 2003, p.362).

A psicanálise é uma terapia pela palavra com o foco no binômio consciente-inconsciente, que cria um espaço-tempo próprio e um método de interpretação do eu e do outro, em contínua relação como condição de ser nada mais que humano.

Subjetividade, objetividade e neutralidade

A Rev. bras. psicanál. (1997) dedica um número ao tema subjetividade/objetividade, do qual apresento alguns excertos, de maneira não a marcar as posições deste ou daquele psicanalista, mas com a intenção de dar uma ideia geral do que foi escrito.

A psicanálise, em sua originalidade, é constituída graças a um corte epistemológico que faz dela uma ciência pós-paradigmática, inteiramente diferente de todas as outras. Trata-se do mais profundo de todos os cortes, uma vez que atinge simultaneamente o sujeito e o objeto do conhecimento. Graças ao processo analítico que a caracteriza, a psicanálise introduz uma cesura (Caesura) no próprio sujeito, que se apresenta, de um lado, como sujeito do consciente e, de outro, como sujeito do inconsciente. (REZENDE135, 1997, p.305).

Inicialmente, esse trecho me soou pretensioso, mas ao longo do artigo fui percebendo a fluidez na colocação das ideias. Destaco no excerto acima, a questão da ruptura epistêmica da psicanálise ao binômio normal-patológico na mudança de foco para o binômio consciente-inconsciente, como se pode verificar abaixo.

Nas ciências formais, a verdade como coerência é a causa última do conhecimento científico; nas ciências empírico-formais, a causa da ciência é a verdade como correspondência ao real; nas ciências humanas, é a verdade como consenso simbólico. Na psicanálise, a causa da ciência é a verdade como alétheia, no seu sentido primitivo de desvelamento e não-esquecimento.

Desvelamento do inconsciente recalcado, não esquecimento do inconsciente dinâmico, em sua realidade última. (REZENDE, 1997, p.308).

Freitas136 constrói um artigo bem fundamentado, em busca de justificar a psicanálise como uma ciência, mas destaco aqui como coloca a questão temática da subjetividade e objetividade na psicanálise.

São subjetivos, em psicanálise, o mundo interno do analisando, bem como o do analista, e ambos são vivenciados na relação intersubjetiva do analisando com o analista, no setting. A subjetividade do analista – mundo interno, caráter, experiência, referencial teórico, conceitos, contratransferência – interage com a subjetividade do analisando, na relação transferencial, sendo esta interação o que vai produzir o primeiro fato objetivo em psicanálise – que a fundou e tornou possível, a compreensão objetiva pelo psicanalista daquilo que se passa na transferência e será comunicado ao analisando. Esta compreensão objetiva é a matéria-prima da interpretação. (FREITAS, 1997, p.440).

Entendo que o que considera a compreensão objetiva do analista, poderia ser uma objetivação do analista sobre a palavra do analisando, em um terreno perigoso como é o da análise psicanalítica. Ou talvez o autor, como outros na Rev. bras. psicanál. invista seu discurso em uma tentativa de explicar ou justificar a prática da psicanálise por meio da epistemologia da ciência moderna, que se considera objetiva.

Em especial gostaria de despertar interesse pela questão da liberdade como possibilidade ou não da condição humana, questão que, a meu ver, coloca-se necessariamente na situação analítica. (REGO FILHO137, 1997, p.339)

O autor afirma que há uma distância entre "os modelos teóricos, abstratos, com que os cientistas pensam a realidade/natureza" e o que ele chama de "o comportamento prático desta mesma natureza" (1997, p.340). Ele quer, assim, defender que "em psicanálise, o método de investigação é simultaneamente um método de ação terapêutica" (p.340). Segue em sua argumentação e apresenta as diferenças com a medicina.

Mas se é verdade que o analista não tem o mesmo objetivo curativo do médico, isso não significa que o analista não tem qualquer objetivo. Sua meta terapêutica é justamente analisar…

Vamos nos ocupar inicialmente do paciente. Este procura o psicanalista com pelo menos dois objetivos em vista: o primeiro é alguma coisa que podemos genericamente descrever como um

desejo de melhora, algo que se aproxima do desejo de cura próprio dos que procuram um médico clínico; o segundo, o desejo de se analisar.

…Por outro lado, ao longo do processo de análise supomos que ele é movido por desejos que desconhece e que determinam, em grande medida, seus processos psíquicos e suas ações. (REGO FILHO, 1997, p.340-341).

Após embasar teoricamente o método psicanalítico, pergunta: "Qual o objetivo da experiência analítica?". A resposta deve ser dada pela teoria, cita Análise terminável e interminável, de Freud, quando fala em «reforma do eu», compreendendo, assim, que o homem é alguém que se desenvolve numa certa direção (p.350).

Mas aprendemos (ou decidimos) que não é o caso de buscarmos esta reforma atuando diretamente sobre o eu, adaptando-o, e sim trabalhando, de alguma maneira, em suas relações dinâmicas, inconscientes, como o id – e neste deve ser incluída esta formação peculiar, o super eu.

Durante o já extenso desenvolvimento da prática clínica da psicanálise, foram se sofisticando as formas de acesso a essas relações inconscientes… (REGO FILHO, 1997, p.350)

autores ao abordar a intersubjetividade na prática clínica. Ela é exatamente o ponto da relação emocional entre terapeuta e paciente. O primeiro psicanalista destaca no desenvolvimento da função de escuta do analista, as relações históricas (Freud), as relações intrapsíquicas (Klein) e a narrativa interpessoal (Bion). A escuta, o modo de escuta é apreendido na formação psicanalítica, na análise pessoal, só pode ser apreendida na vivência paciente-analista, pode ser considerada uma modalidade de comunicação (ZASLAVSKY, 1997, p.312). O segundo psicanalista, ao falar que o conceito de intersubjetividade é recente, cita os conceitos precursores: a contratransferência (Freud, 1910, 1º enfoque) e "a questão do papel real do analista, como agente e não apenas como alvo de projeções ou objeto do mundo interno do paciente" (FRANÇA, 1997, p.384-5), e a empatia, em Klein e Bion. Ambos vão discorrer sobre os elementos que proporcionaram à psicanálise desenvolver o conceito de intersubjetividade.

Se no início das investigações em Psicanálise, os autores viam o paciente e seu mundo emocional como objeto isolado de investigação, atualmente se pensa que não existe paciente sem analista, com as emoções deste fazendo parte integrante do processo. (FRANÇA, 1997, p.390).

Ainda dentro do tema subjetividade/objetividade, Ruth Froimtchuk aborda a questão da neutralidade na situação analítica, em uma dimensão ética e, assim, propõe se distanciar de uma neutralidade da ideologia "cientificista", de "fé inabalável na pureza e transparência do analista" ou na "crença onipotente no poder da ciência de levar o homem à posse da verdade e, daí, à felicidade" (1997, p.324).

Para a autora, a intenção inicial de Freud foi constituir a psicanálise como uma ciência natural, o que se justifica em sua época.

Freud reconheceu, mais tarde, que qualquer que fosse a técnica utilizada, o vínculo afetivo com o terapeuta estaria presente […] Ou seja, uma situação terapêutica bastante complexa e cheia de riscos! Como conciliar esta descoberta com o espírito científico positivista de sua época, segundo o qual qualquer teoria que se pretendesse científica, teria de se livrar dos obstáculos que impedissem a leitura neutra dos dados pelos quais a natureza ditava a sua verdade? (FROIMTCHUK, 1997, p.325)

A psicanálise se constitui na prática por meio da interpretação da relação transferencial, que se estabelece entre analista e analisado, de onde se criou uma duplicidade de modelo.

Nesse sentido, havia uma duplicidade de modelos: por um lado, o modelo das ciências naturais, de base empírica e verificacional: a exigência de rememoração no processo analítico era tomada como um critério fundamental de verificação de suas hipóteses metapsicológicas e clínicas; a neurose seria uma enfermidade da memória e, portanto, levantando a amnésia infantil e permitindo ao sujeito recuperar sua história real, o ego se afastaria dos seus mecanismos de defesa inadequados e ganharia algum grau de liberdade (concepção historicista, baseada no determinismo psíquico). Ao mesmo tempo, outros enunciados do discurso freudiano anunciavam a construção de um saber da interpretação (dimensão hermenêutica da psicanálise), que a situava no campo das ciências da cultura: cada objeto é construído a partir do sujeito e o objeto histórico não escapa a esse relativismo; o objeto ou o fato histórico, como qualquer outro, é construído, o que põe por terra o realismo ingênuo e a possibilidade de o analista ser neutro. (FROIMTCHUK, 1997, p.324).

Se, inicialmente, na psicanálise, o que era dito pelo paciente foi considerado como um fato, uma realidade vivida por ele, como registra Zaslavsky (p.310), a psicanálise hoje vê os fatos como passíveis de reconstrução. Ruth Froimtchuk conclui que Freud percebeu, ao longo de seu trabalho, que "era preciso exigir de cada analista a arte, o tato, o farejar, pressentir e interpretar, práticas dignas dos xamãs e magos, e não de profissionais da área técnico-científica". E levanta a seguinte questão: "Como recriar a analogia com as técnicas científicas e garantir a credibilidade do seu método?" (p.326). Para ela, a genialidade de Freud foi transformar os obstáculos em fundamentos da técnica, pois o que perturba a análise é justamente o que deve ser levado em conta, como a resistência e a transferência. A contratransferência "é parte constitutiva da estrutura do campo analítico" (p.333). Porém, o terreno continuou perigoso e a instituição se fechou e definiu regras de modo a controlar o trabalho dos psicanalistas. "O essencial era o respeito ao protocolo analítico da regra da abstinência e neutralidade." (FROIMTCHUK, p.329).

Conclui que não é mais possível tratar a neutralidade do analista como uma ausência de subjetividade. A neutralidade, nesse sentido, de impessoalidade, é uma utopia cientificista. A conduta do analista é do campo da ética. "A função do analista é reconhecer a potência das forças irracionais presentes nesse encontro e a existência de uma assimetria que favorece a relação de poder de um sobre o outro" (p.332). De maneira concisa, resume o objetivo da psicanálise e o ofício do analista.

O papel da psicanálise é levar o sujeito a buscar soluções próprias para a sua diferença e para a sua singularidade, em contraposição aos fenômenos socioculturais que caminham no sentido de homogeneização das individualidades. Ou seja: o objetivo da psicanálise é fazer com que os analisandos tornem-se não conforme a norma, mas eles mesmos.

[…] Regras técnicas e conhecimentos teóricos psicanalíticos não são suficientes para promover um processo analítico sensível e criativo. A interpretação é algo muito mais complexo, pois o analista não pode dizer o que faria mais sentido, porque não existe um único sentido; o sentido só se faz à medida que o outro perceba, no mesmo instante, com um mínimo de deformação possível.

Esse trabalho atento, cuidadoso e exaustivo, não se reduz a uma mera aferição intelectual e objetiva de dados; ele é obtido a partir de um meio saturado de afetos, em constantes movimentos, exacerbados e contidos, em que seria impossível (e até negativo, prejudicial), que o analista se mantivesse frio e impassível. […] O analista é talvez um guia, mas é o analisando quem deve terminar sabendo aonde ele quer ir. (FROIMTCHUK, 1997, p.332).

A psicanalista compreende que toda ciência humana é processual e não cabe sustentar uma ideia de verdade científica, a ciência humana "participa das condições históricas e sociais, ela não é isenta de valorações e ideologias" (p.329). A psicanalista compreende que não existe "objeto real", e que ele "só se torna científico quando pensado por uma teoria. Assim sendo, o fato não é neutro, porque de algum modo envolve o observador" (p.330).

Na Rev. bras. psicanál. (2011, vol.45, n.1), o artigo "Freud: normalização e crítica", chama a atenção pela familiaridade do tema com o presente estudo.

Resumo: Com base nos textos "Neurose e psicose" (Freud, 1924) e "A perda da realidade na neurose e na psicose" (Freud, 1924), retomamos o posicionamento de Freud ante as semelhanças e diferenças entre neuroses e psicoses, a fim de circunscrever a concepção de "desvio" a um momento específico da obra desse autor.

Questionamos, então, o discurso atual que reputa Freud como adepto do ideal normativo. Para tanto, redesenhamos as principais linhas de força traçadas no texto "Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna" (Freud, 1908) com o objetivo de demonstrar a crítica contundente de Freud à moral social e às concepções adaptacionistas; concepções essas que tomam a sociedade como dado visível e completo. Por fim, destaca-se o valor do pensamento freudiano para a crítica à normalização social. (MACHADO, 2011).

Reproduzo o resumo aqui, para destacar o interesse do psicanalista Sérgio Bacchi Machado sobre a questão da normalização social e religar ao início do capítulo. A meu ver, os artigos dos psicanalistas possibilitaram não só entender um pouco mais do ofício do psicanalista como de diferenças epistêmicas em relação à psiquiatria. E os psiquiatras mostram suas preocupações com o alvo da patologia, em busca da normalidade, que se expressa no homem típico.

O próximo capítulo aborda uma preocupação que perpassa todo o texto, que são as disputas de poder-saber entre as áreas no campo psi e as vantagens, se é que pode nomear dessa maneira, que leva a psiquiatria pela condição majoritária de sua instituição, sempre ligada ao establishement.

 

A PSICANÁLISE E A ANÁLISE LEIGA

Há pouco mais de cem anos, a psicanálise implementou um setting terapêutico ao mesmo tempo em que começou a desenvolver um saber sobre neuroses, diferenciado do saber psiquiátrico, essencialmente hospitalar. O lócus da loucura vai permanecer no hospital, sem grandes mudanças em sua terapêutica de observação e contenção da psicopatologia e da pessoa que sofre, com técnicas bastante invasivas, até ser questionado após a II Guerra Mundial.

O lócus da neurose se instala no consultório psicanalítico e se desenvolvem inúmeras linhas de pensamento e práxis em psicoterapia, de modo geral, com base na psicanálise, mesmo que sejam dissidentes.

A literatura mostra que a psicanálise não segue o modelo clínico da medicina, nosológico (em que o foco é a doença e o doente é aquele que carrega uma doença que precisa ser tratada), nem a prática da internação psiquiátrica. Breuer, Freud, Jung e possivelmente outros desenvolveram no final do século XIX trabalhos semelhantes de terapia pela palavra, em que propunham à pessoa que falasse o que viesse à cabeça, quebrando a lógica do inquérito e da racionalização. Dessa técnica, surgiu um material novo, tanto para o terapeuta como para o paciente, que entrou em contato com conteúdos desconhecidos de si próprio. A psicanálise desenvolveria uma clínica psicológica que proporcionou a criação de outras linhas de pensamento em psicoterapia.

O objetivo da psicanálise, portanto, não é definir um diagnóstico, descobrir uma doença e tratá-la, mas estabelecer uma relação terapêutica, em que a pessoa ao longo das sessões possa conhecer parcialmente o desconhecido inconsciente e elaborar uma via de compreensão de seu processo de vida. A psicanálise é também uma racionalidade clínica, que compreende que o sujeito é uma resultante de um confronto entre o inconsciente e as expectativas de seu meio, inserido em uma cultura, espaço de conflito propício ao desenvolvimento de neuroses.

Os avanços do debate sobre o tema assinalam que a psiquiatria, inicialmente, rejeitou a psicanálise, mas ao perceber que esta encontrava seu espaço no tratamento das neuroses, passou a se utilizar da premissa de que a medicina é o regulador do universo das doenças e tentou incorporar a psicanálise à medicina. Nesse contexto, Sigmund Freud escreveu "A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial" (1996a). Com clareza e simplicidade, que o levam a servir como uma introdução ao ensino da psicanálise, o artigo é escrito em forma de diálogo entre o psicanalista, o «Autor», e um interlocutor, a quem chama de «Pessoa Imparcial». O objetivo é esclarecer as dúvidas sobre o método da psicanálise e sua finalidade. O «Autor» responde de forma minuciosa às perguntas da «Pessoa Imparcial» e explica que ser médico não contribui para a apreensão do conhecimento teórico e de formação de um psicanalista. Na verdade, considera que ser médico pode até dificultar a formação de um analista, posto que ele seja formado para exercer sua profissão sobre pressupostos epistêmicos que em muito diferem da psicanálise.

Freud pondera que se os médicos defendiam que somente eles podiam intervir nos problemas das pessoas, certamente pessoas com perturbações emocionais buscavam os médicos. Freud explica à «Pessoa Imparcial»

Que os médicos também formulam as categorias nas quais se acham divididos esses males. Eles os diagnosticam, cada um de acordo com seu próprio ponto de vista, sob nomes diferentes: neurastenia, psicastenia, fobias, neuroses obsessiva, histeria.

Examinam os órgãos que produzem os sintomas, o coração, o estômago, os intestinos, a genitália, e concluem que estão sãos. Recomendam interrupções no modo de vida habitual do

paciente, exercícios de fortalecimento, tônicos, e por esses meios ocasionam melhoras habituais – ou absolutamente nenhum resultado.

Eventualmente, os pacientes vêm a saber que há pessoas interessadas de modo bem especial no tratamento de tais males e iniciam com elas uma análise. (FREUD, 1996a).

No ano seguinte, ou seja, em 1927, Freud escreveu o Pós-Escrito, em que diz: “Minha tese principal foi no sentido de que a questão importante não é se um analista possui um diploma médico, mas se ele recebeu a formação especial necessária à prática da psicanálise” (FREUD, 1996b). O Pós-Escrito foi elaborado em resposta a uma acusação de charlatanismo contra um psicanalista não-médico, da Sociedade de Psicanálise de Viena, que por falta de consistência foi anulada.

Freud esclarece que a psicanálise é uma parte da psicologia, não da psicologia médica, mas da psicologia, simplesmente. Percebe a psicanálise como o alicerce da psicologia. Explicita a “animosidade com que a profissão médica tratou a análise desde o começo” (1996b). A preocupação de Freud, além da formação adequada a um analista, tem lugar também no que a medicina faria com a psicanálise: “se desejam tomar posse de seu objeto com a finalidade de destruí-lo ou de preservá-lo” (1996b).

Somente a posteriori, com a publicação do artigo Os Fragmentos do Pós-escrito (FREUD, 2003), que não foi publicado na época, por conselho de seus discípulos, é que podemos ver com que veemência Freud se posiciona em relação à rápida disseminação da psicanálise nos Estados Unidos da América. Faz duras críticas ao nível intelectual das escolas estadunidenses, que considerava muito abaixo do europeu, além de ter como objetivo maior o lucro (FREUD, 2003, p.11-17). Com o passar dos anos, as preocupações de Freud foram confirmadas, pois se desenvolveu nos Estados Unidos da América uma linha de psicoterapia de orientação analítica, que se utiliza de recursos da psicanálise, entre outros, para terapias de curta duração (EIZIRIK144; AGUIAR; SCHESTATSKY, 1989 e 2005).

Freud iniciou o processo de institucionalização da psicanálise e rapidamente a Associação Psicanalítica Internacional (IPA) se expandiu por muitos países, viabilizando a formação de analistas, regulando a prática e criando um mercado de trabalho (ROUDINESCO, 1995; PONTE, 1999). A psicanálise desde cedo teve e continua tendo divergências internas, que não são pequenas nem poucas; nas cisões formaram-se outros grupos, sendo que a IPA retirou o nome de Lacan de seu quadro de psicanalistas, em 1963, formando-se assim escolas lacanianas não associadas à IPA. (ROUDINESCO, 1995, p.222-274).

A compreensão das instituições psicanalíticas é de que não é possível formar um analista na universidade, já que o analista se constrói em seu processo de análise, imbricado com a apreensão da teoria e outros conhecimentos sobre o homem e a sociedade (Freud, 2003). De modo geral, as sociedades e escolas psicanalíticas não querem a regulamentação da profissão de psicanalista e aceitam não-médicos em suas formações de analistas. Nesse sentido, podemos ver a posição de vários psicanalistas, representando diversas escolas psicanalíticas (lacanianas e freudianas)146, contra um projeto de lei para regulamentação da formação do psicanalista, contra o qual se uniram a psicanálise e a psicologia, conseguindo seu arquivamento, e contra o projeto de lei do ato médico, como segue, na Revista da Escola Letra Freudiana (2003, p.209-231):

A psicanálise não é uma profissão, mas um ofício, uma práxis, um campo peculiar que, operando com conceitos fundamentais pétreos, não saberia afirmar sobre si mesmo quando ele é psicanalítico ou não. O ato psicanalítico só se faz sentir a posteriori, no manejo da transferência. Ele não só se auto-regula como não admite a regulamentação pelo Estado (2003, p.209).

A psicanálise é uma terapia da palavra que se expressa em um setting terapêutico, pela associação livre e se faz discurso na transferência analítica; a psicanálise propõe uma verdade teórica, por meio de uma práxis clínica (FOUCAULT, 2002a, p.517-536). Freud defende que a psicanálise é uma parte da psicologia, mas não de uma medicina da psicopatologia classificatória de doenças; a psicanálise se propõe a tratar as neuroses por meio de técnicas clínicas de acesso ao inconsciente.

Compreende-se, portanto, que é chamado de leigo aquele que não tem o conhecimento médico, o que leva a pensar que psicanálise e psicologia não são saberes, mas intervenções feitas por curiosos, como uma espécie de voluntarismo, sem embasamento teórico-técnico. Na prática, a psicologia é uma profissão regulamentada com formação universitária, capaz de construir saberes e práticas, legítimos no campo científico. A psicanálise, por sua vez, construiu sua instituição fora da academia universitária e é regulada nacional e internacionalmente por seus pares, mesmo que com divergências e dissidências, oferece formação teórica e análise pessoal, minuciosa e longa, como Freud defendia e muito têm contribuído para a compreensão dos conflitos humanos. Inspiradas na compreensão de Bourdieu sobre o campo científico como âmbito de disputas incessantes, compreendemos que se os profissionais desse campo são chamados de leigos, isso resultaria das suas divergências em relação à «épistémè» dominante da medicina (BOURDIEU, 1983). Isto é, esse rótulo expressaria as tensões entre o campo psi e a medicina.

As comunidades científicas, sejam quais forem, defendem a manutenção de um status quo. Se, por um lado, a medicina majoritária afirma o corpo biomédico como o único seguro para intervenção com pessoas em sofrimento psíquico, por outro, a psicanálise, para preservar e desenvolver-se sobre os pressupostos epistêmicos da própria psicanálise, mantém-se fora da academia e da ordem legislativa. Porém, como a psicologia, investe na pesquisa científica. Freud acreditava que uma absorção da psicanálise pela medicina seria o fim desta, assinalando que teorias e práticas epistemologicamente diferentes não se misturam.

O campo psi é diverso nos interesses das comunidades científicas e seus personagens se veem muitas vezes como na peça de teatro de Goldoni150, Arlequim, servidor de dois amos151 (1976). Nem na com media dell'arte nem no campo psi é possível servir a posições que se antepõem. Não se misturam transferência psicanalítica e nosologia, prescrição de condutas e conhecimento de si mesmo, por serem paradoxais e não permeáveis umas às outras.

 

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