A Prova Brasil e a formação do professor de língua portuguesa

Por ISMAR INÁCIO SANTOS FILHO | 02/06/2009 | Educação

Neste artigo, disponho-me a comentar que possivelmente a Prova Brasil não seja esta caixa tão preta quanto foi mostrada pela Nova Escola e chamo a atenção para o fato de que talvez a “análise” proposta pela revista seja apenas uma descrição. Depois, desloco meu olhar das orientações didáticas para citar os fundamentos teóricos que embasam a prova de língua portuguesa deste exame, pois, acredito que se estes se tornarem conhecidos e forem entendidos pelos professores, certamente permitirão construir saberes que garantam competências docentes no tocante ao gerenciamento dos processos de ensino e aprendizagem de leitura (foco desta prova, tratado na matéria em discussão) nos espaços das salas de aula.

O periódico Nova Escola em sua edição 222, de maio de 2009, aborda em sua reportagem de capa a Prova Brasil, "principal avaliação do rendimento das escolas públicas do país". O citado exame é tratado desde a capa desta revista como (ou contendo) uma "caixa-preta", "dispositivo que mantém suas informações em sigilo" (Michaelis, dicionário on-line). Esta metáfora sustentada coloca a revista e a reportagem como informações atuais, visto que as informações são anunciadas como a "abertura em primeira mão". Tal texto jornalístico é proposto como uma análise deste teste, ao mesmo tempo em que se propõe a orientar didaticamente os professores de língua portuguesa para o trabalho de preparação dos alunos.

Neste artigo, disponho-me a comentar que possivelmente a Prova Brasil não seja esta caixa tão preta quanto foi mostrada e chamo a atenção para o fato de que talvez a "análise" proposta pela revista seja apenas uma descrição. Depois, desloco meu olhar das orientações didáticas para citar os fundamentos teóricos que embasam a prova de língua portuguesa deste exame, pois, acredito que se estes se tornarem conhecidos e forem entendidos pelos professores, certamente permitirão construir saberes que garantam competências docentes no tocante ao gerenciamento dos processos de ensino e aprendizagem de leitura (foco desta prova, tratado na matéria em discussão) nos espaços das salas de aula.

Além da imagem da capa, a idéia da caixa-preta é estabelecida por imagens de caixas-pretas abertas, dispostas ao longo da matéria, as quais apresentam três subtópicos: gênero, linguagem e orientações, subtítulos da matéria. Afora isto, a segunda página do texto, possui apenas uma caixa aberta da qual sai um fluxograma que apresenta as competências/habilidades, relacionadas à leitura, cobradas neste exame. Sustentando a metáfora da "caixa-preta", a revista afirma que a maioria dos professores vê a Prova Brasil como sigilosa, misteriosa e mítica e que se pergunta "como" trabalhar em sala de aula as competências ali solicitadas. Além disso, indica com uma seta, apontada para o título "A Prova Brasil em detalhes", que esta é uma reportagem sugerida por leitores de quatro Estados brasileiros. Deste modo, justifica, como já mencionamos, a publicação de tal reportagem, pois com isto a configura como informação necessária, visto que "uma temática só é a pauta porque é considerada informação atual, e isso implica que o interlocutor a considera como de grande relevância" (Santos Filho, 2007). De fato, este tema é de grande importância nos dias atuais.

Aqui, chamo a atenção para essa idéia de caixa-preta. Segunda a revista, a Prova Brasil é esse dispositivo com informações secretas porque os professores em relação a esta avaliação nacional só tiveram acesso às competências e habilidades exigidas e não a como eram/são abordadas. Porém, quero lembrar que em fevereiro deste ano as escolas brasileiras receberam a "cartilha" que orienta sobre esta prova, como fora noticiado no vídeo institucional do Ministério da Educação e Cultura, veiculado na TV. Na homepage desse órgão governamental entendemos que tais "cadernos trazem informações aos gestores e professores sobre os pressupostos teóricos que embasam a avaliação, os descritores e uma série de exemplos de itens (questões) sobre língua portuguesa e matemática das séries a serem avaliadas".

O referido caderno conceitua inicialmente competência e habilidade, indica os "objetos de conhecimento" e as habilidades referentes a cada "objeto". Quando se refere a cada habilidade (apresentada através de um descritor), faz isso em cinco partes, quais sejam, i) habilidade, ii) exemplo de uma questão que solicita tal habilidade (gênero e pergunta sobre ele), iii) algumas observações sobre a questão, iv) o que os resultados das últimas provas indicam sobre o desenvolvimento da habilidade citada e v) sugestões para melhor desenvolver a habilidade em questão. Este "caderno" está disponível no site do MEC. Assim, vemos que esta "caixa" é preta, pero no mucho. Recomendo aos professores debruçarem-se sobre este material na tentativa de uma interpretação pedagógica, que levará a alguns conceitos dos estudos em linguagem que estão subjacentes aos referidos objetos de conhecimento e às habilidades elencadas.

Quanto à análise da Prova Brasil pela "revista de quem educa", se entendemos análise como apenas uma decomposição do todo em suas partes, temos sim uma análise nesta reportagem. Entretanto, se julgamos que este é um nível elementar de análise, faz-se necessário investigações e críticas para que, de fato, ela se configure deste modo. Se assim for, não temos uma análise, mas uma descrição deste exame nacional. A meu ver, uma análise pede reflexões que iriam além da própria Prova e/ou da cartilha que a apresenta e orienta os docentes para um trabalho que garanta o bom desempenho dos alunos.

Pensando mais adiante das orientações didáticas propostas pela revista de quem educa (consideras por mim como apenas sugestões de procedimentos metodológicos), mencionamos minimamente alguns conceitos vitais para uma compreensão mais sólida sobre leitura, fator que permitirá ao docente não apenas o "como" trabalhar em sala de aula as citadas habilidades, mas essencialmente os "porquês" e os pressupostos teóricos do trabalho.

Para que o docente possa fazer intervenções na construção das competências/habilidades elencadas pela Prova Brasil, faz-se necessário que ele compreenda que a linguagem enquanto o processo de simbolizar o mundo é interação. Isto é, que a simbolização do mundo sempre se dá a partir da relação de um "eu" com um "outro" (os interlocutores). Pensando assim, deve considerar que a "fala", a "conversa cotidiana", todo e qualquer texto, é um(a) enunciação/enunciado. Ou melhor, é a "fala" de um sujeito, dirigida a outro, os quais comungam de um contexto social, político, cultural, etc.

Além de tudo, interessa ao docente saber que todo e qualquer enunciação/enunciado se realiza sempre em um gênero de texto, um "tipo" específico de enunciado. Por exemplo, a receita culinária é um tipo de enunciado que possui características específicas quanto ao tema que aborda, quanto aos interlocutores, às condições de sua produção, aos meios de circulação, quanto a sua função social, etc., assim como todos os outros gêneros, tais como o rótulo e a história em quadrinhos. Deste modo, compreendemos com Bakhtin (2004) que gênero é um "tipo relativamente estável de enunciado". Ou seja, é um tipo "estável" porque possui uma ação reconhecida, mas "relativo", pois essa ação pode mudar em algum aspecto, devido às pressões sociais, como está ocorrendo atualmente com as bulas de remédio em nosso país, que sofrem mudanças relacionadas ao tamanho das letras, espaçamento, tipo de informação, etc.

Todavia, é necessário que o professor entenda que apenas temos acesso aos enunciados, as "falas" do outro (aos gêneros) a partir de um texto, entendido como um material "palpável", observável (Marcuschi, 2004) através dos sentidos. O texto, portanto, tem um lado enunciativo (é fala de alguém, para um outro, numa determinada época, com determinados propósitos, etc.) e um lado formal porque é um "tecido", um material formado por sistemas semióticos, sistemas usados para fazer significar o mundo, tais como a língua, as cores, as imagens, etc, em função de seu lado enunciativo. Esses dois "lados" de um texto permitem que qualquer pessoa possa propor-lhe sentido(s): faça sua leitura, procure a partir dos dados formais acessar os aspectos enunciativos.

Para além das informações antes expostas, é imprescindível que o professor compreenda que a enunciação (gênero/texto) se dá sempre em uma língua que é heterogênea, que está em constante mudança, assim como está em mudança a sociedade. Logo, deve prestar atenção à variedade lingüística (às variações fonético-fonológica, morfológica, sintática, semântica, lexical, estilístico-pragmática), principalmente na modalidade oral dos textos (ou aqueles textos escritos que representam enunciações orais como conversas do dia a dia) e na modalidade digital, visto que na modalidade escrita os textos seguem quase sempre a norma-padrão, "modelo artificial de língua criado justamente para tentar 'neutralizar' os efeitos da variação, para servir de padrão para os comportamentos lingüísticos considerados adequados, corretos e convenientes" (Bagno, 2007).

Ainda sobre texto, é vital tecer alguns outros comentários. Relembrando Bronckart (1999), texto é uma articulação entre as suas partes constitutivas e entre essas partes e as questões do contexto social (seu lado enunciativo). Essa articulação se dá através dos processos de conexão (as ligações entre as partes (blocos, seqüências e frases)) e dos processos de coesão (as relações de dependência entre as partes, expressões e palavras). Ainda se faz necessário saber que as partes que compõem um texto se apresentam em mais de um modo semiótico: palavras, cores, imagens, etc. Sendo assim, todo texto é multimodal (Dionísio, 2005). Outro aspecto importante, a saber, é que como a linguagem é interação, as nossas "falas", as nossas enunciações (textos) são preenchidas de "falas"/"vozes" dos outros, os nossos interlocutores. Toda fala é plurivocal. Sendo assim, é importante perceber nos textos o fenômeno da intertextualidade (Koch, 2008), que é o "dialogo" de um texto com outro, seja em estrutura, em tema, etc.

A explicação acima tem o interesse de mostrar que para que o professor garanta aos alunos a aprendizagem dos "objetos de conhecimento" e das competências solicitadas pela Prova Brasil é urgente que ele compreenda esses aspectos teóricos, propiciados pelos estudos em linguagem. Só é possível o professor levar o aluno a dominar os objetos de conhecimento: i) "procedimentos de leitura" (informações explícitas, implícitas, inferências e temas), iv)"coerência e coesão no processamento do texto" e iii)"relação entre textos", se ele refletir a respeito do conceito de enunciação, texto, articulação do texto, intertextualidade, etc. Da mesma maneira, apenas garantirá o conhecimento sobre ii)"gênero, suporte e/ou enunciador" (material gráfico, função social) e v)"recursos expressivos e efeitos de sentido" (recurso semióticos, usos e funções) se estudar acerca dos conceitos de enunciação, gênero textual e multimodalidade.E não de forma diferente, apenas fará aprender sobre vi)"variação" (diversidade lingüística) se debruçar-se sobre os estudos da Sociolingüística, no tocante à variação lingüística.

Finalmente, reitero minhas "crenças" de que a Prova Brasil não é a caixa tão preta quanto exibida pela revista, pois sobre esse exame existem outras orientações disponíveis, e a de que a análise realizada pelo periódico necessita, talvez, de mais reflexões acerca dos "objetos de conhecimento" e das competências necessárias aos alunos da Educação Básica (aqui a prova da 4ª série (5º ano)). No tocante às orientações didáticas propostas pela Nova Escola, meu entendimento é o de que para se efetivar enquanto tal, essas orientações não podem se restringir a sugestões/indicações de procedimentos metodológicos. Logo, carecem de pressupostos teóricos que permitam com mais e maior propriedade uma formação docente de qualidade. Pelo exposto, acredito que esta prova continuará como uma caixa-preta acaso os professores focalizem somente as questões metodológicas sem que estas estejam embasadas em reflexões a respeito dos conceitos dos estudos lingüísticos mencionados em parágrafos anteriores. De todo modo, vejo com bons olhos a leitura da referida reportagem se estiver associada a estudos teóricos, pois só assim o professor pode entender que "o eixo central do ensino de língua deve se instalar no texto, como realização discursiva do gênero e, assim, explicar o uso efetivo da língua" (Brasil, 2008; Matriz de Referência da Prova Brasil).