A PROBLEMATICA DO TESTAMENTO VITAL EM FACE DO ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO E SUAS RESTRIÇOES A AUTONOMIA PRIVADA DA VONTADE
Por maryanna coelho pessoa | 06/02/2015 | DireitoA PROBLEMATICA DO TESTAMENTO VITAL EM FACE DO ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO E SUAS RESTRIÇOES A AUTONOMIA PRIVADA DA VONTADE[1]
Maryanna Coelho Pessoa e Lucas Tavares Lurine [2]
Anna Valeria Cabral Marques[3]
Sumário: Introdução; 1 A autonomia da vontade privada e o ordenamento jurídico brasileiro: conceito, contextualização e limites; 2 O testamento Vital; 2.1 A autonomia privada da vontade e o testamento vital; 2.2 O testamento vital, a dignidade da pessoa humana e o “direito á morte”; 3 A viabilidade do testamento vital frente ao ordenamento jurídico brasileiro; 4 Conclusão
RESUMO
O presente artigo trata da problemática do testamento vital, esclarecendo o que este vem a ser e sua dinâmica de maneira geral, bem como os aspectos relevantes que esta envolve, abordando os direitos fundamentais e princípios fundamentais, além de analisar a autonomia privada da vontade, e suas atuais concepções, devendo contextualizar o testamento vital com o cenário jurídico brasileiro e analisar sua viabilidade conforme a ordem jurídica e constitucional estabelecida.
PALAVRAS-CHAVES: Autonomia privada da vontade, Testamento Vital, Dignidade da pessoa humana, direito a morte, direito de escolha, ordenamento jurídico brasileiro.
INTRODUÇÃO
O tema do testamento vital é um tema que tem gerado polêmica e discussões no cenário jurídico brasileiro nos tempos recentes, isto ocorre, pois, para conceber um testamento vital é necessário que se analise uma serie de aspectos complexos que geram debates, não só no âmbito brasileiro como no âmbito internacional, primeiramente, há a questão da autonomia privada da vontade, a questão do direito fundamental à vida e sua disponibilidade (ou não), a questão da dignidade da pessoa humana como principio fundamental dentro do cenário constitucional brasileiro, e demais direitos e garantias fundamentais individuais constantes do Art. 5º da Constituição Federal.
Poder lançar mão de um testamento vital é ter autonomia para decidir, ou seja, expressar sua vontade, quanto a se submeter ou não a procedimentos que considere degradantes, desumanos, ou desagradáveis, para prolongar a vida quando a mesma encontra-se em estado terminal, ou seja, passa pela possibilidade de escolher deixar que a morte chegue ao invés de lutar contra ela até o fim, o que pode gerar sofrimento excessivo, que pode parecer, a um individuo, desnecessário diante da eminência da morte, de um quadro irreversível, degenerativo, e que não poderá ser evitado, mas apenas retardado, “comprando” ao paciente um tempo a mais de vida, mas que, por não gozar de alguma qualidade, mereceria uma analise ou uma escolha pessoal, individual, e autônoma do paciente, que poderá preferir ir a óbito ao passar por tais sofrimentos e procedimentos.
Nesse sentido, a relevância do tema aqui debatido e pesquisado, por si só, justifica e motiva a elaboração deste artigo, pois, além de ser tema de caráter polêmico, já que envolve aspectos como os supracitados, torna-se mais relevante diante do fato de que, ao mesmo tempo em que o ordenamento jurídico dá em alguns de seus dispositivos brecha, ou algum respaldo para viabilizar a implementação do testamento vital de maneira legal, em outros o parece vedar, de maneira que os esclarecimentos os quais este paper visa buscar e expor, compreendem um assunto de grande importância jurídica e social.
Assim, busca-se entender, de forma holística, toda a dinâmica que envolve a questão do testamento vital, e todas as suas complicações, de maneira a esmiuçar todo o contexto jurídico, social e político que orbita sobre este tema, além de, logicamente, e com grande enfoque, esclarecer conceitos e aspectos, ou concepções, como o que venha a ser autonomia da vontade privada e testamento vital. Além de analisar , em face dos princípios do direito privado, do direito constitucional, e da ordem jurídica estabelecida, a viabilidade do testamento vital, e, havendo alguma, suas limitações e as formas como o mesmo poderia ser feito, para se encaixar no ordenamento jurídico brasileiro, isto, baseando-se na melhor doutrina e jurisprudências relacionadas, expondo as conclusões alcançadas de maneira fundamentada.
1 A AUTONOMIA DA VONTADE PRIVADA E O ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO: CONCEITO, CONTEXTUALIZAÇÃO E LIMITES
A autonomia da vontade privada, nos moldes atuais, não só no Brasil, mas, de maneira geral, nos Estados democráticos de direito, é considerada princípio fundamental do direito privado, pois é a partir desta autonomia que um cidadão pode exercer sua liberdade individual, ela é “o direito fundamental que garante ao particular o exercício de sua vontade” (COUTO, online), sendo, assim, um “princípio de direito privado pelo qual o sujeito tem a faculdade de praticar um ato jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma, e os efeitos” (AMARAL Apud COUTO, online).
No entanto, a depender de país para país, essa autonomia privada da vontade, embora direito fundamental e princípio fundamental do direito privado, tem maior ou menor amplitude de exercício, de acordo com o ordenamento jurídico do local, de maneira que teremos uma maior ou menor autonomia para praticar atos jurídicos privados, tais como testamentos, contratos, disposição de direitos, etc. Assim, pode-se ou não dispor de determinados direitos, ou mesmo exercer alguns direitos de diferentes formas, a depender da ordem jurídica estabelecida e do ordenamento jurídico vigente, bem como de acordo com a interpretação que é dada ao mesmo.
No Brasil, âmbito no qual devemos nos focar para servir aos objetivos deste artigo, percebe-se que “a tutela constitucional da autonomia privada pode ser diretamente deduzida do princípio da dignidade da pessoa Humana” (COUTO, online), sendo que a liberdade da pessoa, segundo Lindajara Couto, “é o requisito indispensável para as decisões responsáveis e para a própria possibilidade de decidir”(online), assim, notável que no Brasil o exercício da autonomia da vontade privada é diretamente ligado à dignidade da pessoa humana, de maneira que a liberdade e a autonomia para exercer direitos, realizar atos jurídicos, ou mesmo dispor de direitos, devem ser garantidos, ou do contrario, estaria sendo contrariado este princípio e direito fundamental, dignidade da pessoa humana.
No entanto, a dinâmica desta autonomia privada da vontade não é assim tão simples, uma vez que há uma serie de fatores a serem ponderados, à medida que existem direitos disponíveis e indisponíveis, e também parcialmente disponíveis, sendo assim, temos, por diversas vezes, que ponderar até quando ou em que medida se pode exercer essa liberdade, esta autonomia, em face de direitos não disponíveis ou apenas disponíveis em certa medida, assim, dispor de direitos mediante exercício de vontade privada acaba por ser tema muito polêmico no Brasil, já que passa por ponderação e confronto entre direitos fundamentais. Assim como acontece com a disposição e exercício de direitos, quando da realização de atos jurídicos também há limites a está autonomia, por exemplo, não posso firmar contrato, portanto expressão de minha vontade, em relação a algo ilegal ou que tenha por objeto algo ilícito, esta manifestação de vontade, simplesmente, não é reconhecida pelo estado ou não é aceita pelo ordenamento jurídico.
Dessa maneira percebe-se a complexidade do tema da autonomia privada da vontade, tendo-se em vista todos os limites e empecilhos que surgem ao exercício deste direito, já que nos é concedida tal liberdade, mas também nos é cerceada na medida da disponibilidade de direitos, da tutela estatal dos mesmos e da segurança jurídica, complicando-se mais ainda quando há o choque de direitos fundamentais, como no caso aqui debatido, do testamento vital, que envolve a declaração de vontade de um doente em estado terminal, e, portando, passa por uma ponderação entre a indisponibilidade do direito à vida e a dignidade da pessoa humana, chegando-se até a discussão do direito a ter uma morte digna, ou do direito à morte, aspectos cruciais ao presente paper e que serão abordados nos capítulos posteriores.
2 O TESTAMENTO VITAL
Atualmente todos os direitos humanos derivam do respeito à dignidade da pessoa humana que protege o ser humano de tratamentos degradantes fazendo com que a vida “deixe de ser apenas o primeiro e mais fundamental direito tutelado pelo ordenamento jurídico, para se tornar condição essencial de possibilidade de outros direitos” (DIAS, 2011, p. 378).
O testamento vital, permite que um pessoa doente determine que tipo de tratamento deseja, ou não, receber para ter a sua vida prolongada diante de alguma doença grave ou incurável onde ela se encontre impossibilitada de manifestar a sua vontade. Trata-se de um direito que deve ser dado ao ser humano de dispor do próprio corpo e de exercer o seu direito a morte, ou seja, escolher o melhor momento para morrer. Desta forma, leciona Adriano Marteleto Godinho,
“O testamento vital (também chamado “testamento biológico”, “testamento de vida” ou “testamento do paciente”) consiste num documento, devidamente assinado, em que o interessado juridicamente capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser obedecido nos casos futuros em que se encontre em situação que o impossibilite de manifestar sua vontade, como, por exemplo, o coma.” (GODINHO, online)
Para que seja valido, o testamento vital precisa ser elaborado por meio de escritura pública ou particular e o paciente precisa esta plenamente capaz, civilmente, para que esse testamento seja válido, devendo este, conter uma declaração médica confirmando a sua capacidade. Além disso, este documento “deve ser mantido aberto, para o conhecimento da família, dos médicos ou de um amigo. Também o paciente pode nomear um procurador para que tome as providências necessárias ao cumprimento de suas determinações.” (DIAS, 2011, p. 379). Vale ressaltar, que o testamento vital se distingue do testamento pelo fato de que o primeiro tem eficácia antes da morte do testador enquanto o segundo só se torna valido após a sua morte. Além disso, o primeiro trata da vontade do testador em escolher quais tratamentos ele deseja receber a parti do momento em que não puder mais manifestar a sua vontade e estiver diante de uma doença incurável enquanto o segundo dispõem sobre a finalidade que deve ser dado ao patrimônio deixado pelo testador.
O testamento vital não esta previsto em lei, como o testamento, logo os particulares tem ampla liberdade na sua elaboração, não podendo exceder essa liberdade e acabar por contrariar o ordenamento jurídico. Pelo fato de ser muito confundido com a eutanásia, para que o paciente tenha sucesso na sua escolha, e a preservação do seu direito, é necessária a intervenção judicial. Insta salientar, que a eutanásia se difere do testamento vital, pois no primeiro não há a expressão da vontade em querer uma morte digna, ou seja, no primeiro o paciente não escolhe quando é o momento certo de morrer, ao contrario, esse momento é escolhido por outra pessoa (médicos ou familiares) quando se constatar que o doente já se encontra terminal. Conceitua-se a Eutanásia como “Consiste na morte sem sofrimento físico. Por muitos, conforme Asúa (2003, p. 30), a eutanásia é vista como ato de bondade e humanismo, pois com compaixão se proporciona ao doente incurável a morte tranquila, tirando-o de uma vida de sofrimentos e desesperos.” (Asúa Apud Feroldi, online). Aqui, como pode ser visto o paciente não escolhe se quer ou não morrer, se terceiros, médicos, ou familiares, acharem que se deve desligar os aparelhos, isto é feito e o paciente não tem como se manifestar, diferentemente do testamento vital. Por conta disso é que a eutanásia é bastante contestada.
Uma das finalidades do testamento vital é justamente impedir essa discussão entre médicos e familiares do paciente a respeito do momento em que se deve deixar o paciente morrer, como um meio de evitar o seu sofrimento e, é claro, de cumprir o desejo do paciente terminal. Dessa maneira Adriano Marteleto Godinho explica que,
“O testamento vital, enfim, permite que seja o próprio individuo a decidir sobre a sua vida e saúde, em não seus familiares, aos quais, em tese, recairia o encargo de consentir quanto aos tratamentos médicos, sempre que o próprio interessado não tiver o necessário discernimento para fazê-lo. A admissibilidade do testamento vital e o reconhecimento da sua validade e eficácia apresentam a conveniência de eliminar eventuais conflitos entre os parentes e mesmo entre o consentimento destes e a verdadeira intenção do paciente. Com efeito, o aspecto de maior relevo consiste em evitar ambiguidades, pois o próprio paciente terá explicitamente antecipado seu consentimento ou dissentimento quanto a determinadas práticas médicas; mais do que isso, o instrumento é redigido num momento em que o individuo não apenas goza da plenitude de suas faculdades mentais, mais também não se vê na iminência de ter de aceitar ou rejeitar de plano determinados cuidados médicos, o que lhe permitirá refletir com mais cautela sobre sua vida e sua saúde.” (GODINHO, online)
Insta salientar que a Resolução 1.995, do Conselho Federal de Medicina (CFM), aprovada em Agosto de 2012, permitiu que médicos cumprissem a vontade do paciente em querer receber ou não tratamentos que prolongue sua vida quando esses se mostrarem insuficientes para a reversibilidade do seu quadro clinico, ou seja, quando o paciente estiver em estado terminal e tiver previamente expressado a sua vontade de ter o seu tratamento interrompido, quando nada mais puder ser feito, através do testamento vital o médico poderá cumprir sua vontade. Trata-se da autonomia da vontade do paciente que deverá ser cumprida por toda a equipe médica. Além disso, essa resolução permitiu que o paciente registrasse sua vontade em relação ao tratamento no próprio prontuário, dispensando dessa forma o testamento vital, porém deve ser cumprindo os requisitos estabelecidos pela resolução.
Por fim, pode-se ver que o testamento vital nos dias atuais esta ganhando espaço na sociedade mesmo não estando previsto no ordenamento jurídico de forma direta, e existindo inúmeras discussões a respeito de se a sua aceitação ser valida ou não, por ferir o ordenamento jurídico. Indiretamente a Constituição Federal resguarda o direito do paciente em decidir sobre o que é melhor para a sua vida (direito de escolha) e a Resolução 1.995 do CFM também garante ao paciente que sua vontade, escolha, seja garantida desde que manifestada cumprindo as formalidades elencadas anteriormente. Deve-se ter em mente que a autonomia privada da vontade, neste caso, deve voltar-se para “o reconhecimento da liberdade individual que deve compreender também o respeito a escolha da maneira de morrer e controlar a assistência médica que o paciente deseja receber no futuro” (DIAS, 2011, p. 379).
2.1 A AUTONOMIA PRIVADA DA VONTADE E O TEXTAMENTO VITAL
Sustenta-se, neste sub-capítulo, a relação direta entre a autonomia da vontade privada e o testamento vital, já que não é possível concebê-los separadamente, pois não há como expressar qualquer vontade individual, sem lançar mão de uma autonomia privada, a qual, naturalmente, deve ser reconhecida pelo Estado, para que esta declaração qualquer de vontade seja válida. Assim, não fugindo desta regra, o testamento, não há como eu manifestar vontade individual por meio deste, e nem como o mesmo ter validade legal, se não houver autonomia para tanto.
Tendo-se entendido o caráter de dependência do testamento vital em relação à autonomia privada da vontade, resta importante ressaltar que esta modalidade testamental demandaria grande autonomia, já que envolve o direito fundamental à vida, o qual, a priori, é indisponível, e pelo fato de que, embora o Brasil tenha uma constituição pautada na dignidade da pessoa humana, e que dá ênfase considerável a direitos individuais e a garantia destes, o instituto do testamento vital ainda é novidade no âmbito jurídico brasileiro, sendo um tema polêmico que demanda uma serie de considerações e ponderações.
2.2 O TEXTAMENTO VITAL, A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O “DIREITO Á MORTE”
No Estado brasileiro a constituição federal vigente institui uma serie de direitos fundamentais. No artigo quinto desta carta magna, elegem-se os direitos fundamentais individuais, dentre os quais, destaca-se, aqui, o direito a liberdade e o direito à vida, os quais devem ser entendidos e analisados tendo-se em vista o principio fundamental da dignidade da pessoa humana, uma vez que,
“A Constituição da República Federativa do Brasil [...] Aclamada como a constituição cidadã, alçou ao status de princípio fundamental do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, em seu artigo 1º, inciso III. Neste modelo, o indivíduo torna-se o centro da Constituição, que agora se volta à proteção das liberdades individuais e, por consequência, das diversas concepções individuais de vida digna.” (PENALVA, online)
Assim, e tendo-se em vista que o mesmo artigo 5º, em seu inciso terceiro, institui que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, se constitui a problemática do direito à morte, ou à morte digna, a qual passa diretamente pela possibilidade de reconhecimento ou validação do instituto do testamento vital, isto ocorre, pois, a medicina moderna desenvolveu-se ao ponto de haver inúmeras formas de prolongar a vida do individuo que se encontra em estado terminal, internado em hospital, ou mesmo, uma serie de procedimentos os quais servem para tentar curar determinados enfermos, ou simplesmente prolongar o tempo de vida, de quem por estes está acometido. No entanto, não necessariamente este prolongamento da vida é dotado de dignidade, e mesmo, os procedimentos necessários, por vezes, são, ou podem ser considerados, degradantes ou desumanos, assim, surgindo, a ideia de um indivíduo, ainda dotado de suas capacidades mentais, poder, por meio de um testamento vital, expressar sua vontade, fazendo-o mediante exercício da autonomia da vontade privada.
Dessa maneira uma pessoa poderia declarar previamente sua vontade, de modo a escolher passar ou não por determinados procedimentos, ou seja, preferir que o deixem ir a óbito, para que tenha uma morte sem maiores ou prolongados sofrimentos, ao invés de ser submetido a procedimentos que considere degradantes ou desumanos, ou mesmo a uma vida mantida apenas por aparelhos, sem a menor perspectiva de cura.
Nesse sentido, a ideia do direito a morte deriva-se, em alguma parcela, do próprio direito fundamental à vida, pois o analisando sob o paradigma da dignidade da pessoa humana, percebe-se o dever estatal de garantir o direito, não só a vida, mas a uma vida digna. Logo, se considerarmos um fim de vida prolongado artificialmente, sem potencial de gozo de qualquer bônus de viver, bem como sofrido, marcado por uma serie de procedimentos degradantes, como não sendo digno, chega-se ao direito à morte, que seria, seu exercício, justamente este optar por um fim de vida ou por uma morte mais “tranquila”, optar pela ortotanásia, ao invés de tentar prolonga-la, sem qualquer qualidade de vida a ser gozada, pelos meios existentes na medicina, ou seja, a distanásia. No caso, constituindo-se, o testamento vital, como instrumento para exercer este direito à morte digna, ou seja, forma de exercer esta faculdade.
“Por distanásia compreende-se a tentativa de retardar a morte o máximo possível, empregando, para isso, todos os meios médicos disponíveis, ordinários e extraordinários ao alcance, proporcionais ou não, mesmo que isso signifique causar dores e padecimentos a uma pessoa cuja morte é iminente e inevitável. Em outras palavras, é um prolongamento artificial da vida do paciente, sem chance de cura ou de recuperação da saúde segundo o estado da arte da ciência da saúde, mediante conduta na qual “não se prolonga a vida propriamente dita, mas o processo de morrer”8. A obstinação terapêutica e o tratamento fútil estão associados à distanásia. Alguns autores tratam-nos, inclusive, como sinônimos. A primeira consiste no comportamento médico de combater a morte de todas as formas, como se fosse possível curá-la, em “uma luta desenfreada e (ir) racional”, sem que se tenha em conta os padecimentos e os custos humanos gerados. O segundo refere-se ao emprego de técnicas e métodos extraordinários e desproporcionais de tratamento, incapazes de ensejar a melhora ou a cura, mas hábeis a prolongar a vida, ainda que agravando sofrimentos, de forma tal que os benefícios previsíveis são muito inferiores aos danos causados.
Em sentido oposto da distanásia e distinto da eutanásia, tem-se a ortotanásia. Trata-se da morte em seu tempo adequado, não combatida com os métodos extraordinários e desproporcionais utilizados na distanásia, nem apressada por ação intencional externa, como na eutanásia. É uma aceitação da morte, pois permite que ela siga seu curso. É prática “sensível ao processo de humanização da morte, ao alívio das dores e não incorre em prolongamentos abusivos com aplicação de meios desproporcionados que imporiam sofrimentos adicionais”. Indissociável da ortotanásia é o cuidado paliativo, voltado à utilização de toda a tecnologia possível para aplacar o sofrimento físico e psíquico do enfermo. Evitando métodos extraordinários e excepcionais, procura-se aliviar o padecimento do doente terminal pelo uso de recursos apropriados para tratar os sintomas, como a dor e a depressão13. O cuidado paliativo pode envolver o que se denomina duplo efeito: em determinados casos, o uso de algumas substâncias para controlar a dor e a angústia pode aproximar o momento da morte. A diminuição do tempo de vida é um efeito previsível sem ser desejado, pois o objetivo primário é oferecer o máximo conforto possível ao paciente, sem intenção de ocasionar o evento morte.” (BARROSO, Luís; MARTEL, Letícia , online)
No entanto, ressalta-se que o direito a vida é indisponível em grande medida, motivo pelo qual não existe amparo legal para praticas como o suicídio, de maneira que há muito a ser considerado e ponderado, para conceder a faculdade de elaborar um testamento vital, e para reconhecê-lo, já que o mesmo versaria sobre a ortotanásia, pondo fim, voluntariamente, ao gozo do direito à vida, ou seja, implica dispor de um direito indisponível, e é justamente por isso que se faz necessária, para que se possa conceber a existência do direito à morte, e a possibilidade do testamento vital, uma analise deste direito fundamental à vida por meio do principio da dignidade da pessoa humana, buscando um termino da vida digno.
Por fim, insta salientar, que para conceber a ideia do testamento vital e do direito à morte digna, bem como a ideia da autonomia privada, de forma a desenvolver a concepção de vida digna e de morte digna, ou da vontade combinada à dignidade da pessoa humana e ao direito à vida, utiliza-se uma concepção da dignidade enquanto autonomia, dentro desta relação de autonomia privada da vontade e liberdade, e não de dignidade enquanto heterônomia, pois, segundo BARROSO e MARTEL, a Constituição Federal Brasileira parece mais inclinada à concepção de dignidade enquanto autonomia, e ainda em acordo com o pensamento destes doutrinadores, não parece possível ou viável o testamento vital no ordenamento brasileiro se analisarmos o contexto pela concepção da heteronomia.
“A dignidade como autonomia traduz as demandas pela manutenção e ampliação da liberdade humana, desde que respeitados os direitos de terceiros e presentes as condições materiais e psicofísicas para o exercício da capacidade de autodeterminação. A dignidade como heteronomia tem o seu foco na proteção de determinados valores sociais e no próprio bem do indivíduo, aferido por critérios externos a ele. No primeiro caso, prevalecem o consentimento, as escolhas pessoais e o pluralismo. No segundo, o paternalismo e institutos afins, ao lado dos valores morais compartilhados pela sociedade. A liberdade e as escolhas individuais são limitadas mesmo quando não interfiram com direitos de terceiros” (BARROSO, Luís; MARTEL, Letícia, online).
Nesse sentido, sustenta-se que em uma concepção de dignidade enquanto heteronomia, no âmbito do direito à morte digna e do testamento vital, indigno seria deixar de lutar até o fim, ou seja, há uma interpretação favorável à distanásia e desfavorável à ortotanásia, isto, novamente, segundo os ensinamentos de BARROSO e de MARTEL. Reforçando-se, portanto, que se deve sempre adotar a dignidade como autonomia para legitimar a vontade privada, expressada na forma de testamento vital, em relação à morte, ou ao direito à morte.
“No ambiente da morte com intervenção, a ideia de dignidade como autonomia deve prevalecer, por diferentes razões. A primeira delas é de cunho normativo e foi explorada no tópico anterior: o sistema constitucional dá maior importância à liberdade individual do que às metas coletivas84. Ademais, do ponto de vista filosófico, é melhor a fórmula que reconhece o indivíduo como um ser moral, capaz de fazer escolhas e de assumir responsabilidades por elas. Note-se, a propósito, que ao se valorizar a autonomia, não se está definindo o resultado: o paciente – ou seu responsável, em certos casos – poderá optar entre várias possibilidades, que incluem o prolongamento máximo da vida, seu não prolongamento artificial e, em situações-limite, sua abreviação. Também em relação aos profissionais de saúde, a dignidade como autonomia é o melhor critério: assegura-lhes o direito de não realizar procedimentos que não considerem adequados, permite que atendam à vontade do paciente de não lhe causar sofrimento inútil, sem excluir a possibilidade de objeção de consciência por parte do médico, caso não esteja de acordo com as escolhas manifestadas.”
3 A VIABILIDADE DO TESTAMENTO VITAL FRENTE AO ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO
Em 2006 o CFM, conselho federal de medicina, editou documento que versava sobre o tema o qual o testamento vital envolve, na medida em que legitimava os médicos a deixar de efetuar tratamentos que buscassem prolongar a vida de pacientes terminais, ou seja, legitimando a ortotanásia, no entanto, pouco depois, este documento foi alvo de ação civil pública que acabou por ceifar sua validade.
“Em 28 de novembro de 2006, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução 1.805, cujo preâmbulo permite ao médico limitar ou suspender, na fase terminal de enfermidades graves, tratamentos que prolonguem a vida do doente – e dispõe sobre a manutenção dos cuidados indispensáveis para aliviar o sofrimento. Apesar de norma que vincula apenas a comunidade Médica, a aprovação desta resolução foi parar nos tribunais, especificamente na 14ª Vara Federal do Distrito Federal, tendo em vista suas repercussões sociais. O Ministério Público Federal ajuizou, em 9 de maio de 2008, ação civil pública contra o CFM (autos de processo n.o 2007.34.00.014809-3) questionando a resolução – afirmando, em síntese, que o mesmo não tem poder regulamentador para estabelecer como parâmetro ético uma conduta tipificada como crime” (PENALVA, online).
No entanto a ação civil pública em questão baseou-se, seus argumentos, em uma concepção de dignidade enquanto heteronomia, que já vimos não ser adequada e nem tão pouco preferida pela Constituição federal, além disso, buscou amparo no código penal, o qual tipifica o auxilio à suicídio, argumento que não deveria proceder, uma vez que o que o código penal tipifica, enseja contexto e circunstancias completamente diferentes, de maneira que esta alegação mostra-se de cunha exacerbadamente legalista, não condizente, portanto, com a ordem jurídica estabelecida, que, embora não descarte o legalismo, é orientada por princípios fundamentais que devem guiar e orientar o direito de maneira geral.
Para sustentar a viabilidade do testamento vital, a fora os argumentos da interpretação do direito à vida em face da dignidade da pessoa humana, da dignidade enquanto autonomia, do “direito à morte digna” e outros, todos explicados nos capítulos anteriores, utiliza-se, aqui, o fato de que, após o dito documento do CFM datado de 2006, a resolução 1.805, veio a tona a Resolução 1.995, de agosto de 2012, esta trata mais especificadamente da ortotanásia e traz conteúdo ainda mais alinhado com a ideia de testamento vital, já que legitima ao paciente maior de idade, e capaz, que, juntamente ao seu medico, combinem, ou decidam, sobre até que ponto o seu tratamento deve ser levado, podendo, portanto, optar por não passar por uma distanásia quando de uma situação de caráter terminal.
“Pacientes e médicos contarão, a partir desta sexta-feira (31), com regras que estabelecerão os critérios sobre o uso de tratamentos considerados invasivos ou dolorosos em casos clínicos nos quais não exista qualquer possibilidade de recuperação. Sob o nome formal de diretiva antecipada de vontade, mas já conhecido como testamento vital, trata-se do registro do desejo expresso do paciente em documento, o que permitirá que a equipe que o atende tenha o suporte legal e ético para cumprir essa orientação.
A regra consta da Resolução 1.995, aprovada pelo plenário do Conselho Federal de Medicina (CFM), que será publicada no Diário Oficial da União no dia 31 de agosto. Assim, o paciente que optar pelo registro de sua diretiva antecipada de vontade poderá definir, com a ajuda de seu médico, os procedimentos considerados pertinentes e aqueles aos quais não quer ser submetido em caso de terminalidade da vida, por doença crônico-degenerativa”. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, online).
Assim, uma vez existindo a possibilidade da diretiva antecipada, e, sendo esta, valida e reconhecida, mostra-se viável a implementação do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro, de forma definitiva e bem estruturada, ou seja, o cenário do direito brasileiro se mostra favorável à ao testamento vital, e, embora seja
“preciso ter em conta que o direito à vida é de fato especial. Qualquer flexibilização de sua força jurídica ou moral é delicada e deve envolver cautelas múltiplas. Qualquer desprezo pela vida humana, mesmo nas circunstâncias mais adversas, é suspeita. Um dos consensos mínimos que compõem a dignidade humana nas sociedades ocidentais é a preservação da vida como um valor em si, que se atinge, naturalmente, por sua promoção e proteção rigorosa” (BARROSO, Luis; MARTEL, Leticia , online).
É possível, mediante tutela rigorosa e bem definida por parte do Estado, com requisitos e circunstancias bem delimitadas, que haja a pratica do testamento vital sem comprometimento da segurança jurídica em relação à tutela do direito à vida.
Por fim, resta ressaltar, que a atual resolução do CFM, de número 1.995, que trata da figura da diretiva antecipada, como já mencionado, e que parece abrir as portas do cenário brasileiro à figura do testamento vital, ou mesmo, já o contempla em alguma medida, é de bom tom, ao analisarmos o cenário internacional, tendo-se em vista que em outros países democráticos de direito, verifica-se maior abertura ou autonomia privada neste âmbito, permitindo que o cidadão disponha mais amplamente de direitos como integridade corporal e vida, fato que enseja mais um ponto positivo à defesa da viabilidade deste polêmico instituto, o testamento vital.
“Deve-se registrar que a orientação do Conselho Federal de Medicina está em consonância com as da Associação Médica Mundial (AMM), as da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) 29. E, também, com o tratamento jurídico adotado em países como Estados Unidos da América, Canadá, Espanha, México, Reino Unido, França, Itália, Suíça, Suécia, Bélgica, Holanda e Uruguai” (BARROSO, Luis; MATEL, Leticia, online)
4 CONCLUSÃO
O presente artigo buscou trabalhar a problemática do testamento vital dando enfoque aos direitos fundamentais envolvidos, à autonomia privada da vontade, e ao princípio da dignidade da pessoa humana, para, não só analisar a dinâmica do testamento vital e o que ela envolve, mas também aferir, por assim dizer, sua viabilidade dentro do contexto brasileiro. Levou-se em conta as resoluções do Conselho Federal de Medicina que já existem e que já versam sobre o assunto, abordando também os argumentos favoráveis e contrários a cada uma delas, já que uma foi alvo de ação civil pública que levou à sua revogação, bem como, analisando os impactos que a implementação de um instituto jurídico com tal teor poderia ter, ou já tem, sobre a sociedade em geral, considerando, inclusive, todas as ponderações a serem feitas e as cautelas a serem tomadas durante este processo.
Nesse sentido, e a titulo de parecer e considerações finais, considerou-se o testamento vital de muito bom tom, tendo-se em vista as tendências contemporâneas do direito, não só no âmbito do Brasil, mas também no cenário mundial, entendendo, com as devidas ressalvas e precauções, sua compatibilidade com ordenamento jurídico brasileiro, na medida da ordem constitucional estabelecida, da dignidade da pessoa humana, e mais ainda, da dignidade preponderantemente enquanto autonomia.
REFERÊNCIAS
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