A primeira tropa de choque do sul brasileiro: os lanceiros negros
Por Alexandre Valdemar da Rosa | 24/06/2011 | HistóriaAlexandre Valdemar da Rosa
Graduado e Especialista em História ? UNESC
Especialista em educação Inclusiva ? UCB-RJ
No século XIX a região sul do Brasil presenciou o surgimento de uma milícia que durante muito tempo ficou conhecida entre os historiadores brasileiros como a tropa de elite do período escravista. Não estou falando do BOPE, nem da ROTA, muito menos da ROTAM, mas sim dos lanceiros negros.
Antes de falarmos do emprego deste grupamento no contexto revolucionário rio-grandense do século XIX, faz-se necessário, primeiramente, analisarmos a origem e a formação militar a que estes indivíduos foram submetidos ao longo da história. Para Cláudio Moreira Bento (1976, p.46) do "porto do Rio de Janeiro, Mercado do Valongo, procede mais de 90% de todos os negros introduzidos no Rio Grande do Sul". Localizado na corte, o referido estabelecimento no período da escravidão era considerado, segundo Challoub (1990) o maior entreposto comercial de escravos do Brasil. Lá, um escravagista poderia encontrar cativos de qualquer etnia africana, ou seja, negros Minas, Haúsas, Bantus, Fulas, Mandigas, Geges, Nagôs, Iorubas, entre outros. Esses escravizados eram vistos, apalpados, examinados e consequentemente avaliados para depois serem negociados como verdadeiras mercadorias. Boa parte deles descendia de povos cujo passado na África sempre esteve atrelado a lutas tribais, envolvendo, sobretudo, a questão territorial.
Sobre este assunto, Munanga e Gomes (2006, p.51.) comentam que entre os vários reinos iorubas existentes no continente africano, OIO, nos séculos XVII e XVIIII tornou-se "o mais poderoso dos reinos iorubas, graças à organização militar apoiada numa unidade de arqueiros apeados e numa importante força de cavalaria armada com lanças e espadas". Em outro reino o monarca OSEI TUTU, chefe dos Achanti, preocupado com as constantes invasões dos povos inimigos, promoveu profundas modificações nas técnicas de combate dos seus 80.000 combatentes, ao incorporar em seu exército um "corpo de informantes, vanguarda, centro, ala direita, ala esquerda e guarda real" (MUNANGA; GOMES, 2006. p.57).
Já os Zulus, uma das etnias mais temidas do continente negro, atribuíam a truculência e a habilidades dos seus guerreiros capoeiristas como seu maior trunfo. Como primeira grande ação em seu reinado, Chaca, substituiu as antigas armas longas (lanças compridas) por espadas, assim, ele obrigava os inimigos a realizarem o combate corpo-a-corpo.
Inseridos nos pampas gaúchos nas mais diferentes profissões, dentre elas: tropeiro, agricultor, laçador, domador, guasqueiro, corredor de carreiras, charqueador e cangueiro, os africanos e seus descendentes rapidamente modificaram a precária estrutura econômica rio-grandense, da agricultura à segurança pública. Graças aos negros e aos conhecimentos obtidos no setor de fundição, podendo por meio disso, produzir ferramentas (lanças, facas, espadas, facões, ferraduras...) para a economia local, os estancieiros deixavam de importar utensílios, antes vindos de outras regiões do império. Fabricavam-se, artesanalmente assim as primeiras armas dos lanceiros negros farroupilhas.
Recrutados em meio aos negros campeiros e domadores da atual região sul do estado gaúcho, os lanceiros quando na sua fundação eram organizados em duas divisões: "uma de cavalaria, e a outra de infantaria, criados respectivamente em 12 de setembro de 1836 e em 31 de agosto de 1838" (Revista Descobrindo a História, 2008, p.27). Além das lanças longas, a divisão também fazia uso das boleadeiras como armamento, sobretudo, para capturar os militares imperialistas que por ventura estivessem distantes de suas montarias. A infantaria, no combate corpo-a-corpo utilizava um poncho enrolado ao braço esquerdo, isso amenizava os danos provocados por um eventual ataque de adaga ou facão.
Subordinados a vários ex-oficiais desertores do militarismo imperial brasileiro, entre eles, os idealizadores dos lanceiros negros, Coronel Joaquim Pedro Soares e Teixeira Nunes, o grupamento formado pela parcela mais discriminada da população gaúcha, ocupou importante destaque na nomenclatura da Revolução Farroupilha. Isto porque, foram muitas as batalhas em que os milicianos negros agiram em defesa dos mesmos objetivos ensejados pelos revolucionários. Ou seja, garantir um futuro melhor e mais justo para todos os provincianos. Mas, como isso seria possível se o império agia com discriminação em relação aos sulistas, pois fazia o "charque uruguaio pagar 4% de imposto no Rio enquanto o charque gaúcho pagava 25%?" (BUENO, 2003, p.192).
Cansados do enorme descaso, os farroupilhas, sobre o olhar atento de Bento Gonçalves e apoiados pelos lanceiros negros invadem e tomam Porto Alegre em 1836. Eclodia assim a Guerra dos Farrapos.
Embora este fato fosse considerado um grande feito pelos revolucionários, a alegria durou pouco tempo, por que em julho do mesmo ano, os imperialistas retomaram o poder. Pode-se imaginar que o abalo emocional e financeiro entre os farrapos foi grande, por isso, em 1837, Garibaldi recebeu a incumbência de construir embarcações para promover saques contra os navios imperiais no sentido de restaurar as finanças. Dessa forma, foram construídos dois lanchões, o Rio Pardo e o Independência.
Por terem sido expulsos das cidades portuárias de Rio Grande e São José do Norte, os farroupilhas encontravam-se sem comunicação com o mar. Definitivamente, a solução encontrada foi tomar o porto da Catarinense Laguna. Eduardo Bueno (2003, p.191) ao referir-se sobre este assunto comenta que os farrapos numa tentativa desesperada de tentar conquistá-la, "entraram com dois lanchões (18 e 12 toneladas) pelo Rio Capivari (um dos formadores da Lagoa dos Patos), avançando até o local mais próximo do oceano". Logo, em julho de 1839, Garibaldi no comando do barco Seival juntamente com um pequeno efetivo, pelo mar, tomaram Laguna. Já por terra, Teixeira Nunes, vindo de Lages e Canabarro de Viamão, ambos escoltados pelos brigadianos negros ajudaram a reforçar a missão.
Mesmo sendo proclamada no dia 29 de julho, a República Juliana durou pouco mais de cem dias, pois os imperialistas retornariam ao poder em novembro do mesmo ano. Em síntese, a queda republicana frente aos súditos da monarquia, havia iniciado prematuramente o fim da revolução, tendo em vista a sequencia de fracassos sofridos pelos gaúchos, entre eles, o de Lages e o massacre de Porongos.
De acordo com historiadores, David Canabarro teria ordenado desarmar os cerca de 600 lanceiros na noite de 14 de novembro de 1844. Tal determinação não chamaria a atenção, se ela não tivesse sido transmitida na mesma noite do ataque imperialista. São muitas as fontes afirmando o "pacto de extermínio dos negros com Caxias para que não houvesse impedimento na assinatura do tratado de paz com os revoltosos" (Revista Descobrindo a História, p.28). A realização do provável acordo "arquitetado por Caxias" tinha embasamento alicerçado em duas vertentes naturais. Ao exterminar o maior número de escravos possível, certamente diminuiriam também as exigências dos revoltosos no que tange o acordo de paz. Por outro lado, "manter a liberdade do grande contingente negro com experiência militar era um grande risco para sociedade" (Revista Descobrindo a História, p.29).
Desarmados e sem apresentar nenhuma reação, a tropa de choque mais temida do sul brasileiro foi dizimada no cair da madrugada. Infelizmente, o passado relacionado aos lanceiros negros sempre esteve ligado aos bastidores da historiografia oficial, e somente em 1870 é que surgiu o primeiro livro sobre o assunto.
Referências
BENTO, Claudio Moreira. O negro e descendentes na sociedade do Rio Grande do Sul (1635-1975). Porto Alegre, RS: Grafosul, 1976.
BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. A incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2003.
CHALLOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
MODA na História/Família Real no Brasil/Rev.Farroupilha. Revista Descobrindo a História. Mythos, São Paulo, v.6, 2008.
MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006.