A PRESCRITIBILIDADE DAS AÇÕES DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO
Por Igor Santos Muraro | 25/08/2016 | DireitoResumo
O artigo 37, §5º, da Constituição da República, ao contemplar a ressalva acerca da existência ou não de prazo de prescrição para que as Fazendas Públicas ajuízem as respectivas ações de ressarcimento, decorrentes dos danos causados, sempre acabou por dividir tanto a doutrina quanto a jurisprudência com relação à existência ou não deste prazo para o exercício do direito de ação. O presente trabalho pretende demonstrar que qualquer interpretação do dispositivo em comento que leve à conclusão pela imprescritibilidade das ações de ressarcimento, seria incompatível com o sistema jurídico como um todo, conforme a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do tema.
Introdução
O artigo 37, §5º, da Constituição da República sempre dividiu tanto a doutrina quanto a jurisprudência, principalmente, no que tange à ressalva contemplada nesse dispositivo no que se refere à suposta imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário a serem propostas pelas respectivas Fazendas Públicas.
Tanto isso é verdade, que o próprio Supremo Tribunal Federal, ao reapreciar o sobredito tema, reformou o entendimento que havia sido anteriormente firmado acerca da imprescritibilidade dessa pretensão estatal.
Em vista disso, pretendemos, por meio do presente trabalho, demonstrar qual a devida interpretação de que deve ser adota pelo hermeneuta, diante da ressalva contida no referido dispositivo constitucional, principalmente à luz do princípio da segurança jurídica.
- Princípio da segurança jurídica
Antes de nos debruçarmos mais especificamente sobre o tema referente à existência ou não de prazo prescricional para propositura de ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito, é imprescindível nos ocuparmos, ainda que sem esgotar o tema, sobre o princípio da segurança jurídica, que constitui verdadeira essência do próprio Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito (MELLO, 2014, p. 126).
Com efeito, a estabalidade das relações jurídicas é um valor fundamental de todo e qualquer Estado que tenha a pretensão de merecer o título de Estado de Direito, de tal sorte que, pelo menos desde a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 o direito à segurança passou a constar nos principais documentos internacionais e em expressivo número nas Constituições modernas (SARLTE, 2002, p. 53-54). Tanto isso é verdade, que “As teorias democráticas acerca da origem e justificação do Estado, de base contratualista, assentam-se sobre uma cláusula comutativa: recebe-se em segurança aquilo que se concede em liberdade” (BARROSO, 2003, p. 52-53).
Ora, não hesitamos que o Direito se propõe a ocasionar determina estabilidade nas relações sociais, buscando atribuir um mínimo de certeza na regência da vida social. E isso para termos uma previsibilidade das condutas humanas, e aqui também se incluem as condutas estatais. É dizer, temos que a ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente voltado à orientar as pessoas, as quais, sabendoo que devem ou podem fazer, diante das ulteriores consequências imputáveis aos seus atos.
E essa previsibilidade que o ordenamento jurídico enseja acaba por condicionar a ação humana, fazendo com que, conforme magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello, inúmeras relações se constituem tendo em vista a certeza que os resultados, não apenas imediatos, mas também mediatos delas decorrentes, evitando que as partes sofram qualquer abalo repentino que vá de encontro à estabilidade das situações constituídas. Eis o que, didaticamente, assinala sobredito autor (MELLO, 2014, p. 127):
O Direito poroõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o chamado princípio da “segurança jurídica”, o qual, bem por isto, se não é o mais importante dentre todos os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais importantes entre eles. Os intitutos da prescrição, da decadência, da preclusão (na esfera processual), do usucapião, da irretroatividade da lei, do direito adquirido, são expressões concretas que bem revelam esta profunda aspiração à estabilidade, à segurança, conatural do Direito. Tanto mais porque inúmeras dentre as relações compostas pelos sujeitos de direito constituem-se em vista do porvir e não apenas da imediatidade das situações, cumpre, como inafastável requisito de um ordenado convívio social, livre de abalos repentinos ou surpresas desconcertantes, que haja uma certa estabilidade nas situações destarte constituídas
Logo, podemos vislumbrar o princípio da segurança jurídica sob uma dupla perspectiva. Quais sejam: certeza e estabilidade. Esta açambarca os institutos jurídicos voltados à conservação dos direitos subjetivos e das expectativas de direito que os indivíduos depositam no Estado, enquanto a primeira se volta ao seguro conhecimento das normas jurídicas, indispensável à previsibilidade necessária para que o homem possa projetar a sua vida, conforme magistério de Rafael Valim sobre o tema (VALIM, 2010, p. 46).
É comum dividir-se o princípio da segurança jurídica em dois aspectos, não obstante, também com frequência, não se leve, consequentemente, tal distinção. Segundo nos parece, a classificação qie expõe com maior clareza e abrangência este princípio leva em conta os dois núcleos conceituais por ele agasalhados, quais sejam: a certeza e a estabilidade
Não duvidamos, portanto, acerca da importância da seguraná jurídica, outorgando previsibilidade às condutas humanas. E, ao estarmos diante de relações que envolvem a Administração Pública como uma das partes, verificamos que esse princípio se torna ainda mais caro nessas relações. Tanto isso é verdade, que a despeito dele não poder ser radicado de qualquer dispositivo constitucional específico, está explicitamente contemplado na legislação infraconstitucional que regula a atividade administrativa, mais especificamente no art. 2º da Lei federal 9.784/1999[1], que disciplina o processo administrativo no âmbito federal.
Sucede que o direito tem apenas a pretensão de regular e condicionar as condutas e relações humanas, não possuindo, todavia, a capacidade de efetivamente implementá-las ou impedir que elas não sejam cumpridas no mundo dos fatos. É dizer, pairando no mundo do dever-ser, o direto não desce ao pragmatismo das relações humanas para concretamente inibir que condutas sejam praticadas ao arrepio do prescrito pelo ordenamento.
Diante disso, na hipótese de descumprimento de uma norma, a ordem jurídica estabelece um conjunto de consequências. E isso de modo que, mesmo diante da prática de atos incompatíveis com o normativamente prescrito, ainda assim, saberemos de antemão qual a decorrência desse descumprimento, garantindo que os sujeitos da relação tenham segurança quanto aos desdobramentos dessa situação.
E dentre as figuras que a ordem jurídica contempla, para resolver o problema da segurança jurídica como forma de garantia da estabilidade mencionada anteriormente, temos a caducabilidade.
Ainda que reconheçamos que o tema exija uma análise mais aprofundada, para fins deste trabalho basta-nos a conceituação de Eduardo Arruda Alvim (2012, p. 358-359), no sentido de que decadência é a perda do direito propriamente dito, em razão do decurso do tempo, ao passo que prescrição significa a extinção da pretensão, ainda que tal não leva à perda do direito por ela tutelado. É dizer, quando há a perda do próprio direito em si, direito substantivo, temos a figura da decadência e, por outro lado, na hipótese de preclusão da possibilidade de exercício, da ação, que protege o mencionado direito, estamos diante da prescrição.
Diante disso, temos a prescrição como um componente do princípio da segurança jurídica, eis que uma das formas de se assegurar a segurança e estabilidade das relações sociais se opera, justamente, por meio da fixação de lapso temporal para o exercício de determinada pretensão. Daí ser o direito um sistema hermético, pois, ao resguardar o presente contra fatos ocorridos no passado, o direito permite a estabilização das relações jurídicas pelo decurso do tempo, recompondo-se.
A despeito de a prescrição ser regra em nosso ordenamento, somente em duas hipóteses a Constituição da República entendeu que a perpetuação de um conflito era mais benéfico à ordem jurídica que a sua interrupção pela prescrição.
Deveras, conforme assinala o art. 5º, XLII e XLIV, respectivamente, “a prática do racismo constitui crime inafiançavel, imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” e “constituí crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
Sucede que, a despeito de ordenamento jurídico apenas contemplar a imprescritibilidade de forma expressa nessas duas situações, ao se deparar com o previsto no art. 37, §5º, da Constituição da República, a doutrina e o próprio Supremo Tribunal Federal divergem quanto à devida interpretação desse dispositivo, quanto à prescritibilidade ou não das ações de ressarcimento ao erário.
- Da ação de ressarcimento ao erário prevista no art. 37, §5º, Constituição da República
Conforme assinala o art. 37, §5º, da Constituição da República, “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízo ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”.
Por ocasião do julgamento do Mandado de segurança 26.210 o Supremo Tribunal Federal enfrentou pela primeira vez o tema da imprescritibilidade contemplada nesse dispositivo constitucional, mais precisamente, o termo ressalvadas no que se refere às ações de ressarcimento ao erário.
É dizer, demandou-se que aquela Corte esclarecesse se sobredita ressalva prevê a imprescritibilidade para propositura das ações de ressarcimento, ou, diferentemente disso, se o prazo prescricional para tanto será distinto daquela fixado para a apuração do ilícito.
Deveras, o Supremo Tribunal Federal apreciou essa questão diante do seguinte conflito: o Tribunal de Contas da União condenou uma bolsista do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) à devolução de uma bolsa que havia recebido para estudar formigas na Universidade de Cambridge, com a obrigação de retornar ao país, após a conclusão do seu doutorado, mas assim não o fez.
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