A POLÍTICA NO MUNDO CLÁSSICO I

Por NERI P. CARNEIRO | 28/10/2012 | História

A POLÍTICA NO MUNDO CLÁSSICO I

Neri de Paula Carneiro

mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO

1- um novo modelo

A organização da polis e a presença dos escravos são considerados elementos definidores de uma nova prática política: a democracia. E suas raízes estão plantadas na Grécia Clássica.

Essa afirmação não quer negar a existência de práticas políticas em tempos e sociedades anteriores a dos gregos. Apenas pretende demonstrar que as experiencias anteriores e de outras sociedades foram diferentes baseadas não no argumento, como no caso grego, mas no poder do chefe militar.

No mundo oriental, dentro do contexto do chamado modo de produção asiático a prática política havia sido bem diferente, visto que efetivamente poucos participavam do exercício do poder que estava centralizado no monarca que exercia tanto o mando político como religioso. Entretanto no universo clássico, na Grécia e depois em Roma, desenvolveram-se algumas das raízes do mundo ocidental. E isso se aplica, também, à dimensão política. Por esse motivo é que alguns autores afirmam que gregos e romanos inventaram a política.

Comentando as origens da política no universo clássico, Marilena Chauí (2005), contrapõe aos modelos anteriores de poder despótico ao modelo grego de caráter democrático. Afirma a autora que: “Quando se afirma que os gregos e romanos inventaram a política, o que se diz é que desfizeram aquelas características da autoridade e do poder. Embora, nos começos, gregos e romanos tivessem conhecido a organização econômico-social de tipo despótico ou patriarcal, um conjunto de medidas foram tomadas pelos primeiros dirigentes – os legisladores – de modo a impedir a concentração dos poderes e da autoridade nas mãos de um rei, senhor da terra, da justiça e das armas, representante da divindade.” (Chauí, 2005, p. 351). Ou seja, estava sendo criado um novo modelo de relação e prática política, baseada na possibilidade de transição e delegação do poder.

O rompimento com o modelo de outras sociedades se deu não, em primeiro lugar, na prática política, mas na detenção do poder econômico. Enquanto nos modelos anteriores o rei representava o poder porque era o proprietário das terras e das riquezas, aqui a terra pertencia às famílias ricas, proprietárias de escravos. A terra não pertencia nem ao rei nem ao Estado, mas às famílias possuidoras de escravos. Assim, os proprietários de terras e de escravos possuíam, também, condições de deter o poder político. Embora disso resulte a democracia, ela nasceu oligárquica.

Esse modelo se manifestou, principalmente em Atenas, mas foi uma marca de todo o império romano. Isso porque os proprietários de terra não mais precisavam permanecer no meio rural, pois graças ao trabalho escravo podiam se concentrar nas cidades. E foi na cidade que se desenvolveu esse novo modelo político, sustentado pelo modo de produção escravista. E assim a política passou a ser atividade dos ricos.

Outra vez vamos nos valer das palavras de Marilena Chauí (2005, p. 351) quando afirma que: “Como a propriedade da terra não pertencia à aldeia nem ao rei, mas às famílias independentes, e como as guerras ampliavam o contingente de escravos, formou-se na Grécia e em Roma uma camada pobre de camponeses que migraram para as aldeias, ali se estabeleceram como artesãos e comerciantes, prosperaram, fizeram, das aldeias, cidades, passaram a disputar o direito ao poder com as grandes famílias agrárias. Uma luta de classes perpassa a história grega e romana exigindo solução.

A urbanização significou uma complexa rede de relações econômicas e sociais que colocava em confronto não só proprietários agrários, de um lado, e artesãos e comerciantes, de outro, mas também a massa de assalariados da população urbana, os não-proprietários, genericamente chamados de 'os pobres' ”.

Esse confronto exigia solução. Ela veio por meio dos legisladores. Lembremo-nos, por exemplo, de Clistenes, Sólon e Péricles, no mundo grego; e da ação dos senadores no mundo romano. Basta lembrar, no universo romano, os confrontos enfrentados pelos irmãos Graco e as conquistas alcançadas pela lei das doze tábuas. Essas duas sociedades criaram estruturas administrativas: Os gregos organizaram suas pólis em demos e os romanos se organizaram a urbs em tribus. Cada um com suas especificidades, mas com vários elementos em comum. O demus e a tribus são, portanto, elementos precursores da estrutura política que emerge do universo escravista presente no mundo greco-romano.

Outro aspectos importante para ser lembrado é o fato de que as relações políticas estão, agora, baseadas na posse da terra. O proprietário da terra possui, também, escravos e isso lhe permite continuar a produzir por meio dos escravo que trabalham em suas propriedades, de modo que suas terras produzem sem sua presença, aumentando suas riquezas e o cidadão tem tempo para se dedicar às atividades da polis. É o novo modelo de política.

A esse respeito afirma Chauí (2005, p. 351): “Quem nascesse num demos ou numa tribus, independentemente de sua situação econômica, tinha assegurado o direito de participar das decisões da cidade. No caso de Atenas, todos os naturais do demos tinham o direito de participar diretamente do poder, donde o regime ser uma democracia. Em Roma, os não-proprietários ou os pobres formavam a plebe, que tinha o direito de eleger um representante – o tribuno da plebe – para defender e garantir os interesses plebeus junto aos interesses e privilégios dos que participavam diretamente do poder, os patrícios, que constituíam o populus romanus. O regime político romano era, assim, uma oligarquia.”

Não temos como saber qual o melhor regime politico. Mesmo na antiguidade não se tinha essa resposta. Heródoto já havia feito essa indagação. Em seu tempo Aristóteles afirmaria que o melhor regime era a Oligarquia e, por sua vez na proposta de Platão quem deve governar é um rei-filósofo. Comentando os regimes políticos, de acordo com a proposta de Heródoto, Chatelet (2000) indaga sobre a classificação do historiador grego:

O bom regime é aquele no qual comanda apenas um – a monarquia – que governa para sua gloria e a de seus súditos?

Ou aquele no qual comanda uma minoria – a oligarquia – constituída de cidadãos reconhecidos como ‘superiores’ por seu nascimento, sua riqueza, sua competência religiosa ou militar?

Ou aquele onde comanda a maioria – a democracia – maioria constituída pela população dos camponeses, dos artesãos, dos comerciantes, dos marinheiros?

A contribuição singular de Atenas consiste em ter respondido praticamente, instaurando esse último regime e, sobretudo, inventando uma outra definição de democracia” (CHATELET, 2000, p. 16).

Sobre a corrupção dos regimes, diz o próprio Aristóteles em “A Política”, quando trata das revoluções: “Em geral, qualquer que seja o lado para o qual se incline a forma do governo, nele cai e se transforma, pois ambos os lados procuram engrossar suas fileiras. A República, portanto, transforma-se em democracia e a aristocracia em oligarquia; ou, pelo contrário, a aristocracia transforma-se em democracia, pela atração dos pobres (pois a minoria que se crê lesada esforça-se para colocar o governo do seu lado), e a República em oligarquia, pela atração dos ricos.”.

Dessa afirmação de Aristóteles podemos concluir que não há um regime perfeito, pois a monarquia se corrompe em tirania; a democracia pode vir a ser uma demagogia e a aristocracia se converte em oligarquia. É dessa forma que vemos, ao longo da história, democracias e ditaduras se alternando buscando se legitimar... ou buscando legitimidade na aceitação daqueles sobre os quais os regimes se instalam.

 

2- a experiência grega

A experiência política dos gregos que passou para a história é a democracia ateniense. Isso não significa que outras experiências não tivessem ocorrido na Grécia. É o caso de Esparta cuja população não conseguiu “progredir no sentido de uma ordem democrática. Seu governo, pelo contrário, degenerou rapidamente numa forma mais próxima do absolutismo oriental” (Burns, 1986, p. 157). O fato é que a concentração de poder e a quase inexistente flexibilidade na alternância dos cargos fazia de Esparta uma cidade cujo governo era uma “franca oligarquiza”, diferente da prática ateniense. Essa experiência, entretanto, rendeu a Esparta a formação de uma sociedade guerreira. Mas isso não impediu que nesse universo tenha aparecido a figura de Licurgo, com um sistema de governo no qual o rei tinha poucos poderes voltados principalmente para o comando militar e sacerdotal.

Entretanto em Atenas a realidade era outra. Inicialmente fora uma monarquia, mas a partir do século VIII aC, a concentração de riquezas fez com que aí se instalasse uma oligarquia. A reformulação do mundo rural produziu a concentração fundiária e a escravização de famílias pobres. Nesse contexto foi que, no século VI aC, Sólon foi indicado como “magistrado com amplo poderes para realizar reformas(Burns, p. 1986, p. 161). As reformas de Sólon, entretanto, no transcorrer do tempo produziram novas mudanças e descontentamento até que se chegou à ditadura. Em oposição a ela foi que, sob o governo de Péricles se instalou a democracia ateniense.

Entretanto não se pode confundir a democracia de Atenas, com a ideia de democracia que está presente em nossa sociedade. Hoje, quando falamos em democracia nos baseamos na etimologia da palavra. Daí que pensamos em participação popular e efetiva atuação das forças políticas em favor de toda a coletividade. Embora essa possa ser uma ideia questionável frente à prática política atual, a democracia ateniense foi bem distinta disso.

A democracia ateniense estava fundamentada nos cidadãos. Deve-se notar, entretanto, que “só os cidadãos gozam da plenitude dos direitos civis e políticos. Lembremo-nos que a polis clássica, mais do que um território, é uma comunidade de cidadãos”. E quem eram os cidadãos? Homens ricos, livres e naturais de Atenas visto que a cidadania está “de fato ligada à fortuna e ao nascimento”, diz Mario C. Giordani (1972, p. 170). Rico por ser essa a condição de participação nas assembleias, esse é o cidadão a possuidor de terras e escravos. Livre porque o não livre é escravo sobre quem repousa toda a produção das propriedades do cidadão. Nascido em Atenas porque o estrangeiro (meteco), embora livre e podendo ser rico não gozava de direitos plenos. O meteco era um homem livre sua “condição de estrangeiro, contudo, colocava-o à margem do estado” afirma Florenzano (1986, p. 42). Partindo disso podemos dizer que a democracia ateniense não se refere à participação popular, mas à concretização de uma sociedade estratificada em que somente o cidadão detém direitos politicos. Nas Palavras de Florenzano, (1986, p. 47) “a noção de democracia caminha de mãos dadas com a de escravidão, e a noção de cidadão, com a de escravo”. E o que é o escravo? “Uma mercadoria comprada em um mercado e pertencente a um dono” (Florenzano, 1986, p. 44)

É a mesma autora quem afirma (1986, p. 39): “embora juridicamente todos os cidadãos fossem iguais, mesmo em fins do séc. V permaneciam entre eles as diferenças de poder político derivadas, naturalmente, da não igualdade dos recursos econômicos”. Qual é, pois, a proposta política que pode nascer numa sociedade com estas características? Aquela que privilegia não as necessidades da população como um todo, mas aquela em que o cidadão esteja em destaque. É a política do cidadão para o cidadão. Ou, dizendo de outra forma, a democracia ateniense é uma democracia para os cidadãos. Essa democracia, para os padrões atuais, acaba sendo excludente, uma vez que dela não podiam participar os escravos e os estrangeiros, as mulheres e efetivamente os pobres. O estrangeiro até pode deter alguns direitos, mas os privilégios são dos cidadãos. Portanto, só eles exercem o poder político.

O que cabe ao estrangeiro? Contentar-se em ser livre e reconhecer-se como estrangeiro, para, sob a tutela de um cidadão, desenvolver suas habilidades. “Depois de algum tempo domiciliado em Atenas, o estrangeiro era obrigado a se inscrever como meteco em um demos […] e a pagar uma taxa especial ao Estado […]. Tinha ainda que conseguir um cidadão ateniense como 'tutor' (prostates) que se responsabilizasse por eles ante os tribunais” (Florenzano, 1986, 43).

Em face do que vimos acima, podemos dizer que o exercício do poder (a política) no universo grego, em épocas e regimes diferentes tinha uma mesma característica: era exercido pelos cidadãos que por sua vez eram os proprietários de terras e escravos. Era, também uma sociedade urbana – a polis é seu centro – em oposição ao universo rural. Embora nos dias atuais se diga, a partir de sua etimologia, que democracia é o governo do povo, ao nascer não era assim, pois na sociedade grega onde nasceu a democracia correspondia ao poder dos cidadãos que correspondia a uma pequena parcela da população urbana. Embora seja o berço da democracia não podemos deixar de assinalar que a sociedade grega era excludente, visto que escravos e estrangeiros estavam excluídos do exercício do poder.

 

 

ARISTÓTELES.Política.Disponívelemwww.cfh.ufsc.br/~wfil/politica.pdf,acessoem10/10/2012

BURNS,E.McNall.Históriadacivilizaçãoocidental28ed.PortoAlegre/RiodeJaneiro:Globo,1986.

CHÂTELET,François.HistóriadasIdeiasPolíticas.JorgeZaharEditor,RiodeJaneiro,2000

CHAUÍ,Marilena,ConviteàFilosofia,SãoPaulo:Ática,2005

FLORENZANO,MariaB.B.Omundoantigo:economiaesociedade.6ed.SãoPaulo:Brasileiense,1986.

GIORDANI,MárioC.HistóriadaGrécia,2ed.Petrópolis:Vozes,1972