A PARTIDA

Por Gilson Goulart | 13/02/2010 | Literatura

A PARTIDA – João Neves

 

“Sou um homem livre- e preciso da minha liberdade. Preciso estar sozinho. Preciso meditar na minha vergonha e no meu desespero em retiro; preciso da luz do sol e das pedras do calçamento das ruas sem companheiros, sem conversação, frente a frente comigo, apenas com a música do meu coração como companhia.” Henry Miller – Trópico de Câncer.

 

A última se foi levando um apartamento de partilha e se esmerou em arrebanhar as quinquilharias que guarneciam a casa. Havia lhe pedido que deixasse tudo como sempre tinha sido...mas pouco adiantou. Como sempre fez, em seus casamentos anteriores, encheu o carro de sacos plásticos lotados de roupas, potinhos plásticos, copos vagabundos – me deixou dois – fora coisas que provavelmente vou sentir falta depois (desculpas pela rima barata).

Eu vinha tendo sucessivas crises depressivas e não andava me acertando com a sertralina. Tentava, embora ela não acreditasse, desesperadamente encontrar o centro novamente, entrar para uma academia, fazer cursos, etc. Mas comecei a ser vencido, saí do trabalho e fiz um acordo de um ano com meu patrão que iria me garantir uma certa estabilidade até ver se solucionava o problema da crise.

Tinha recaído no alcoolismo, no princípio de forma leve, a cada ida ao posto de gasolina pra comprar cigarros ou no horário de almoço. À noite sentia-me muito só já que ela ia para a cama invariavelmente às 21:30. Pois bem, o álcool foi o gancho pra ela invocar seu repertório de coisas inaceitáveis. Esperava solidariedade, ganhei indiferença.

Depois que ela se foi, caí pesado no álcool. Passei a dormir tarde e acordar tarde. Consumia compulsivamente massa miojo e café, por ser a alternativa mais rápida para saciar a fome. Deixei de arrumar a cama, andava nu em casa, o notebook permanentemente na internet lendo Sartre, Dostoievsky, autoajuda, notícias, blogs, esperando e-mails que não vinham, filmes pela metade, youtube e toda a enxurrada de porcarias que se encontra na web.

Quando anoitecia abastecia a geladeira para mais outra noite igual e quando acabava o estoque caía num sono sem sonhos esperando que durasse pelo menos umas doze horas pra não encarar o dia. O telefone tocava incessantemente, mas não queria falar com ninguém.

Olhava nossas fotos, e, em certos momentos, caía num choro silencioso e desesperançado, sentindo pena de mim... em outros, ficava com raiva, praguejava e prometia que iria superar, iria vencer, comprar roupas novas, sair pra dançar, reencontrar os amigos, tocar violão, cantar...mas, cada vez era mais difícil tomar uma decisão, por menor que fosse, até sair de casa requeria uma infindável caminhada em círculos pela casa...a paranóia vinha e sentia que os vizinhos me observavam, escutavam à porta, me olhavam de esguelha, vasculhavam meu lixo.

Evitava o espelho pra não ver o inchaço dos olhos, a barba por fazer, o hálito de cerveja e prometia que não iria beber hoje, pra dar uma folga para o corpo. Inútil. Enquanto as horas passavam, minhas resistências iam caindo, em sequencia, numa racionalização estrábica, e, então, tudo recomeçava. Perdi a noção de qual o dia em que ela partiu. No entanto, ainda estou aqui, caindo, e me agarrando nas avencas, passando mal, ora me amaldiçoando por esta condição que me persegue, aprisiona e cansa, ora chegando até a gostar e desejar uma vida nova, ir a Porto Seguro, tirar fotos, voltar a sonhar... tomara que ainda haja tempo como das outras vezes.

(...)

...como sempre, voltei ao círculo e agora estou além do limite... tentando me programar pra dormir umas duas horas antes que o último bar perto de casa feche as portas e me deixe sem cerveja neste cu de cidade da Grande Porto Alegre, em pleno carnaval. Já tomei meia dúzia e estou cheio de planos no Youtube quero ver Steppenwolff e George Harrison dizer “Been beat up and battered ’round / Been sent up, and I’ve been shot down”. Quase sem cigarros, um calor infernal, o note fervendo…e eu sem noção. Horas atrás ela estava on-line no Orkut, deixei ficar. O telefone silenciou finalmente. Estou só. Há pouco pensei, e se ela quisesse voltar, se pensasse que estava errada e quisesse voltar... aceitaria? Acho que não...como disse passei do limite...preciso ir além...arrebentar tudo, de raiva, de pena, de medo, desilusão, tristeza comigo e com ela. Esta infeliz condição humana sartreana. Sede de água, enjôo, sono...cansaço sei lá...a merda da novela começando...sofá verde...regulo o celular, 22:30h. Até lá.