A Participação do Ministério Público no Inquérito Policial: O Princípio da Obrigatoriedade e o Arquivamento Implícito

Por Felipe Boy Vieira | 07/01/2015 | Direito

A PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO INQUÉRITO POLICIAL: O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE E O ARQUIVAMENTO IMPLÍCITO

Felipe Boy Vieira*

 

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar o instituto do inquérito policial, demonstrar restar superada a discussão relativa à legitimidade do Ministério Público para presidir investigações criminais, explicar o instituto do arquivamento implícito do inquérito policial, definir o princípio da obrigatoriedade e, por fim, traçar um paralelo entre as doutrinas e entendimentos jurisprudenciais favoráveis e contrários à admissibilidade do arquivamento implícito do inquérito policial.

Palavras-chave: Inquérito Policial. Investigação Criminal. Legitimidade. Ministério Público. Arquivamento Implícito. Princípio da Obrigatoriedade.

INTRODUÇÃO

O inquérito policial é espécie de procedimento administrativo consistente em um conjunto de diligências realizadas pela polícia investigativa, com vistas a apurar a prática de uma infração penal e de sua autoria e, assim, fornecer os elementos de informação necessários para que o titular da ação penal possa demandar o Poder Judiciário. 

Tal definição tradicional de inquérito policial indica, como se pode concluir pela própria leitura do texto, que a legitimidade para a condução de procedimentos investigativos relativos à prática de infrações penais seria da autoridade policial, exclusivamente.

Ocorre, todavia, que, após muitas discussões travadas pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, o Supremo Tribunal Federal praticamente consolidou entendimento no sentido de que os membros do Ministério Público também possuem atribuição para conduzir investigações criminais.

O referido posicionamento é fruto de debates acalorados, que abordou assuntos complexos e não se limitou a uma discussão linear acerca de opiniões doutrinárias e entendimentos jurisprudenciais.

Nesse sentido, abandonou-se o sentido estrito de inquérito policial, que passou a ser entendido como todo e qualquer procedimento que sirva como fornecedor de informações substanciais para a instauração de uma ação penal.

Superada, portanto, essa discussão, outro ponto polêmico relativo à participação do Ministério Público no inquérito policial ainda permanece. Trata-se do debate em que se discute a admissibilidade ou não do arquivamento implícito do inquérito policial.

O arquivamento implícito é fenômeno através do qual o titular da ação penal pública, ou seja, o Ministério Público, deixa de incluir na denúncia algum fato investigado ou algum dos indiciados, sem justificação ou expressa manifestação deste ato.

Parte da doutrina e da jurisprudência admite o referido procedimento, equiparando, portanto, o ato de não denunciar ao ofício de arquivar. Por outro lado, há aqueles que refutam a admissibilidade do arquivamento implícito do inquérito policial quando se tratar de ação penal pública, tendo como principal argumento o princípio da obrigatoriedade.

Definidas as linhas gerais da polêmica lançada, tratar-se-á, na seqüência, de definir o inquérito policial e afirmar o poder de investigação do Ministério Público. Ato contínuo, analisar-se-á o arquivamento implícito e o princípio da obrigatoriedade para, em seguida, apresentar-se os entendimentos acerca do debate proposto.

Por fim, baseando-se nos dados coletados, apontar-se-á para uma conclusão, no sentido de se definir acerca da possibilidade ou não de admissão do arquivamento implícito do inquérito policial.

DESENVOLVIMENTO

1. DO INQUÉRITO POLICIAL E DO PODER DE INVESTIGAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci, “o inquérito policial é um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e da sua autoria”[1].

Trata-se de instrução provisória, presidida pela autoridade policial, de cunho preparatório e informativo, em que se colhem, conforme visto, elementos por vezes difíceis de serem obtidos na instrução judiciária, dada a fugacidade de alguns deles. Cite-se, como exemplo, o auto de prisão em flagrante, os exames periciais, etc.

O seu objetivo precípuo é a formação da convicção dos seus destinatários, que são justamente os titulares do direito de agir na ação penal: o Ministério Público, de um lado, nos crimes que se apuram mediante ação penal pública, e o ofendido ou seu representante legal, por outro, nos crimes que se apuram mediante ação penal de iniciativa privada.

Uma das principais características do inquérito policial é o seu caráter nitidamente inquisitivo, em que não há contraditório e o réu é considerado simples objeto de um procedimento administrativo, salvo em situações excepcionais em que a lei o ampara (formalidades do auto de prisão em flagrante, direito de permanecer calado, etc.).

O inquérito policial pode ser instaurado de ofício ou, ainda, mediante requisição formulada pelo juiz ou pelo promotor de justiça, requerimento do ofendido ou de seu representante legal, pelo auto de prisão em flagrante ou por notícia oferecida por qualquer cidadão.

Finalizado o inquérito e entendendo estarem presentes as provas da existência do crime e os indícios suficientes de autoria, a autoridade policial indiciará os prováveis autores da infração, em relatório minucioso a ser encaminhado ao juiz competente, conforme se verifica da leitura do artigo 10, § 1° do CPP, que dispõe: “a autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará os autos ao juiz competente”.

O juiz, ao receber os autos do inquérito policial, terá duas possibilidades: se o crime for de ação penal pública, os referidos autos serão encaminhados ao Ministério Público; caso o crime seja de ação penal de iniciativa privada, dever-se-á observar o que determina o artigo 19 do CPP.

Em se tratando de ação penal pública, encaminhados os autos ao Ministério Público, o Promotor de Justiça poderá, dentre outros atos, requerer o arquivamento, quando ficar provada a ausência de tipicidade da conduta, incidir excludente de ilicitude ou de culpabilidade, ocorrer causa extintiva da punibilidade, ou quando verificar a ausência de elementos informativos aptos a ensejar a propositura da respectiva ação penal.

Ocorre, porém, que não só nessas hipóteses pode-se falar em arquivamento. A doutrina e a jurisprudência pátrias ainda mencionam o arquivamento indireto e o arquivamento implícito, sendo que este último instituto é produto da construção doutrinária, e será melhor analisado na seqüência.

Quanto ao poder de investigação do Ministério Público, o Supremo Tribunal Federal vem decidindo favoravelmente a essa possibilidade, desde que aportou naquela casa o Inquérito 1968/DF, conforme se verifica no HC 87.610, HC 90.099 e HC 94.173, todos relatados pelo Ministro Celso de Mello.

Um dos principais argumentos embasadores desse posicionamento está relacionado com o artigo 4°, parágrafo único, do Código de Processo Penal, que não confere exclusividade à polícia judiciária para o exercício da função investigatória. De acordo com o dispositivo citado, outras autoridades administrativas podem proceder a investigações, desde que haja lei nesse sentido.

Importante salientar que o argumento utilizado pela corrente contrária à investigação criminal presidida pelo Ministério Público, de que o artigo 144, §1°, IV, da Carta Maior, confere exclusividade à polícia federal para o exercício das funções de polícia judiciária da União, não merece prosperar.

Isso porque, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, o constituinte pretendeu, com o mencionado dispositivo, dar exclusividade à polícia federal no que diz respeito ao exercício das suas funções perante as demais polícias. Dessa maneira, o comando normativo não impede que outros órgãos investiguem delitos; o que não se permite é que uma polícia realize investigações que sejam de responsabilidade da polícia federal.

Baseando-se principalmente nesses argumentos, o Supremo Tribunal Federal vem entendendo que a investigação criminal presidida pelo Ministério Público é legítima e constitucional, e que ela possui caráter concorrente e subsidiário. Isso quer dizer que o Parquet não é o único legitimado a realizar procedimentos investigatórios, mas, tampouco, está ele impedido de fazer suas próprias investigações.

Ademais, no caso de o investigado ser policial, um eventual procedimento investigatório efetuado pela própria polícia poderia ser questionável, o que, de certa forma, acaba por reforçar a legitimidade do Ministério Público para apurar de maneira isenta os fatos noticiados. Em hipóteses como essa, muitas vezes só o Parquet poderia cumprir bem o papel investigativo e assegurar, assim, a observância do mandamento constitucional que garante o oferecimento de segurança à população brasileira.

Sendo assim, não restam dúvidas de que o Ministério Público possui legitimidade para presidir investigações criminais, sendo fundamental nesses casos, contudo, que as garantias constitucionais dos cidadãos sejam resguardadas.

2. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DO ARQUIVAMENTO IMPLÍCITO

Inicialmente, convém esclarecer que a autoridade policial não poderá decidir sobre o arquivamento do inquérito policial, tendo em vista o que dispõe o artigo 17 do Código de Processo Penal: “a autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito”.

Considerando-se o disposto no artigo 28 do Código de Processo Penal, constata-se que a atribuição para decidir sobre o arquivamento é do juiz, ao analisar requerimento do Promotor de Justiça nesse sentido.

Percebe-se, assim, que o arquivamento é um ato jurídico complexo, pois é produto de dois órgãos estatais distintos: o Ministério Público, presentado pelo Promotor de Justiça, e o Estado-Juiz, representado pelo magistrado. Dessa maneira, o arquivamento é ato através do qual o Ministério Público requer ao Estado-Juiz que sejam arquivados os autos da investigação preliminar.

O arquivamento implícito é instituto criado pela doutrina e jurisprudência, não possuindo previsão legal, portanto. Ele ocorre em uma situação atípica, quando o membro do Ministério Público deixa de incluir na denúncia algum co-réu ou outro fato delituoso, sem, contudo, que tenha pedido o arquivamento do procedimento quanto aos mesmos.

Em outras palavras, é o fenômeno através do qual o titular da ação penal pública, ou seja, o Ministério Público, deixa de incluir na denúncia algum fato investigado ou algum dos indiciados, sem justificação ou expressa manifestação deste procedimento.

De acordo com Julio Fabbrini Mirabete, o arquivamento implícito ocorre quando “o Promotor de Justiça deixa de incluir na denúncia algum fato típico ou omite na referida peça o nome do co-autor indiciado, sem expressa declaração das razões pelas quais assim procede”[2].

Percebe-se, pelo que foi dito, que o arquivamento implícito possui um duplo aspecto. Objetivo, quando abrange fatos investigados não considerados na peça exordial da acusação, e subjetivo, quando a omissão se refere a um ou mais indiciados.

Para Paulo Rangel, “o arquivamento implícito ocorre sempre que há inércia do promotor de justiça e do juiz, que não exerceu a fiscalização sobre o princípio da obrigatoriedade da ação penal”[3].

O referido arquivamento não tem previsão legal, conforme visto, e decorre, para aqueles que admitem a sua existência, da omissão conjunta do membro do Ministério Público e do magistrado. Isso porque o arquivamento implícito somente irá se consumar quando o juiz, ao analisar a denúncia e seu lastro probatório, não verificar a ocorrência de lacuna na peça inaugural, na hipótese de esta existir efetivamente.

Trata-se, destarte, de ato jurídico complexo, uma vez que o arquivamento implícito, para aqueles que o defendem, somente se tornará perfeito e acabado quando se verificar a manifestação de vontade de dois órgãos distintos, situados em patamar de igualdade.

3. DO PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE

O Ministério Público é o titular exclusivo da ação penal nos casos de crimes de ação pública, o que induz à conclusão de que a única maneira viável de se aplicar a pena é através da materialização do processo criminal, exigindo-se a atuação do Estado-acusação.

Referindo-se à origem do princípio da obrigatoriedade, Afrânio Silva Jardim aduz que “no momento em que o Estado proibiu a vingança privada, assumiu o dever de prestar jurisdição, monopolizando esta atividade pública”[4].

Assim, sendo absolutamente desejável pela sociedade que os delitos não fiquem impunes, no momento em que ocorre a infração penal é necessário que o Estado promova o jus puniendi, sem que se conceda aos órgãos encarregados da persecução penal poderes discricionários para apreciar a conveniência ou oportunidade de apresentar sua pretensão punitiva ao Estado-Juiz.

Nesse sentido, Júlio Fabbrini Mirabete define o princípio da obrigatoriedade como sendo aquele que “obriga a autoridade policial a instaurar inquérito policial e o órgão do Ministério Público a promover a ação penal, quando da ocorrência da prática de crime que se apure mediante ação penal pública”[5].

Para Guilherme de Souza Nucci, “o princípio da obrigatoriedade da ação penal significa não ter o órgão acusatório, nem tampouco o encarregado da investigação, a faculdade de investigar e buscar a punição do autor da infração penal, mas o dever de fazê-lo”[6].

Explicando o princípio, Tourinho Filho afirma que “os órgãos incumbidos da persecução não podem possuir poderes discricionários para apreciar a conveniência ou oportunidade da instauração do processo ou do inquérito”[7].

Ocorrida infração penal ensejadora de ação penal pública incondicionada, deve a autoridade policial investigá-la e, na seqüência, reunidos elementos aptos a provar a existência do crime e havendo indícios suficientes de autoria, é obrigatório que o promotor de justiça ofereça a denúncia.

De fato, o legislador brasileiro não facultou ao membro do Ministério Público a possibilidade de avaliar, segundo suas convicções, se deveria ou não promover a denúncia de uma conduta criminosa.

Quanto a esse aspecto, percebe-se que, pelas interpretações sistemáticas dos artigos 5°, 6° e 24, todos do Código de Processo Penal, a outra conclusão não se pode chegar, senão na de que vigora o princípio da obrigatoriedade no ordenamento pátrio.

Nesse sentido se manifesta José Frederico Marques, ao afirmar que no Brasil, “apesar de não haver texto explícito sobre o assunto, o que se deduz da sistemática legal é que nele vigora o chamado princípio da ação penal obrigatória”[8].

Importante ressaltar, todavia, que a existência de situações nas quais se permite o arquivamento do inquérito policial, previstas pelo próprio legislador, não desnatura o princípio da obrigatoriedade.

O que não se admite é que existam situações em que a não propositura da ação penal dependa de um juízo de valor do agente do Ministério Público. Em outras palavras, ao promotor de justiça é defesa a verificação da oportunidade ou da viabilidade da instauração da ação, devendo o mesmo manter-se adstrito às condições previamente estabelecidas pela lei, vinculando-se, então, a não propositura da ação penal às enumerações legais.

Dessa forma, percebe-se que se trata de princípio que se contrapõe àquele da oportunidade, em que o órgão estatal tem a faculdade de promover ou não a ação penal. Com relação a este último princípio, percebe-se que ele não é vislumbrado, em regra, no processo penal brasileiro, vez que, salvas as devidas exceções, o ajuizamento da ação penal não depende do critério discricionário do órgão acusatório.

Ainda quanto à obrigatoriedade da ação penal pública, não se deve olvidar do disposto no artigo 27 do Código de Processo Penal, que dispõe: “qualquer pessoa do povo poderá provocar a atuação do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção”.

Por fim, pode-se dizer que, de acordo com o princípio da obrigatoriedade, o Ministério Público deve propor a ação penal sempre que estiver diante de um fato típico, ilícito e culpável. Não cabe, portanto, ao membro do Parquet, deixar de oferecer a devida ação penal, a não ser que os motivos para tanto estejam previstos em lei.

Apresentado, portanto, o princípio da obrigatoriedade, analisar-se-á, a partir de agora, as posições doutrinárias acerca da admissibilidade, ou não, do arquivamento implícito do inquérito policial.

4. DA ADMISSIBILIDADE DO ARQUIVAMENTO IMPLÍCITO DO INQUÉRITO POLICIAL

Para aqueles que o admitem, se vários os indiciados, o arquivamento em relação a um (ou a uns) decorre automaticamente do fato de não ser ele denunciado, equivalendo, portanto, o ato de não denunciar ao ofício de arquivar.

Desta feita, acredita-se que, se o juiz, ao receber a denúncia, deixa de aplicar a regra do artigo 28 do Código de Processo Penal no tocante aos indiciados excluídos da imputação, é porque entendeu que há razões para excluí-los do processo.

Nesse contexto, surgiria, quanto ao excluído, a preclusão, insuscetível de revisão sem que haja a produção de novas provas, conforme a Súmula 524 do STF, que aduz: “arquivado o inquérito policial por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem novas provas”.

Além, contudo, do aspecto subjetivo do arquivamento implícito, há ainda o aspecto objetivo, que ocorre quando, embora estivessem sendo investigados diversos fatos típicos em um único inquérito, o Ministério Público se pronuncia pelo arquivamento integral, nada obstante refira-se apenas a um desses fatos apurados, alegando não ser o caso de denúncia, e se o juiz acolher tal requerimento, omitindo, igualmente, na sua decisão, aquelas outras infrações, ter-se-á, implicitamente arquivadas, ou cessadas, todas as investigações levadas a termo, concluindo que em conseqüência do arquivamento expresso, porém lacunoso, ter-se-á um arquivamento implícito.

 O Supremo Tribunal Federal já decidiu nesse sentido, conforme a seguinte ementa: “se o titular da ação penal – o Procurador-Geral da República – considera que a ‘prova coligida não autoriza estabelecer a participação do indiciado em conduta de peculato’, e não formula a denúncia, isto equivale ao pedido de arquivamento” (RT 607/377).

O Superior Tribunal de Justiça, manifestando sobre a matéria, assim firmou decisão: “o silêncio do Ministério Público em relação a acusado cujos nomes só aparecem depois em aditamento à denúncia só possuem validade probatória, se fundada em provas inovadoras” (RT 691/360).

Quanto à hipótese de arquivamento implícito, levando-se em consideração o seu aspecto objetivo, segue julgado do TJRJ:

H.C. Denúncia (Art. 171, c/c art. 14, II, e art. 155, C.P.). Aditamento. Impossibilidade. Arquivamento implícito. A denúncia, inicialmente, faz a imputação do art. 171, c/c art. 14, II, C.P. antes do seu recebimento, é retificada pelo M.P., acrescentando a imputação do art. 155, C.P. Após a instrução, apresenta-se aditamento à denúncia, com a imputação de mais dois crimes de estelionato tentado, em continuidade delitiva. Inadmissível essa mudança da imputação, pois a instrução não revela qualquer fato novo que não estivesse noticiado no inquérito policial.Ocorre, quanto a estes fatos já preexistentes, o arquivamento implícito.A pretensão acusatória não pode ser modificada pela mudança de membro do Ministério Público, com opinio delicti distintas na análise do mesmo fato. (Procuradora de Justiça Maria Teresa Ferraz).Ordem concedida. Processo n° 0031074-29.2007.8.19.0000 (2007. 059.01442) Habeas Corpus. 1° Ementa. Des. Sergio de Souza Verani. Data do Julgamento: 27/03/2007. Quinta Câmara Criminal.

Para essa corrente doutrinária, os cidadãos não devem ficar sujeitos ao arbítrio do representante do Ministério Público, aguardando manifestação expressa acerca de sua situação, uma vez que não são acusados (porque não foram denunciados) nem indiciados (pois o inquérito policial já se esgotou).

Afirmam, destarte, que o inquérito quanto a esta(s) pessoa(s) deve ser considerado como arquivado implicitamente, uma vez que não seria justo que tais pessoas ficassem à espera de uma re-ratificação por parte do Parquet.

Espínola Filho aduz que “a denúncia ou a queixa tem de abranger todos os participantes do crime, não podendo abstrair de nenhum”[9].

Dessa maneira, a não inclusão de um dos mencionados sujeitos na denúncia apontaria para uma conclusão, extraída a contrariu sensu: a de que ele não participou da prática da infração penal, no entender do autor da denúncia, provavelmente pela ausência de elementos suficientes para tanto.

Sendo assim, os defensores dessa corrente consideram o inquérito arquivado em relação ao referido sujeito, ainda que não haja manifestação expressa do Ministério Público nesse sentido.

Colacionam, ainda, como argumento que sustenta o referido posicionamento, o elencado no artigo 18 do Código de Processo Penal, que preceitua in verbis: "depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia".

Asseveram que as novas provas referidas no dispositivo, capazes de autorizar o início da ação penal ou o aditamento à denúncia, são apenas as que produzem uma alteração no panorama probatório dentro do qual foi concebido e acolhido o pedido de arquivamento do inquérito ou do implicitamente arquivado. Dessa maneira, a nova prova há de ser substancialmente inovadora, e não apenas formalmente nova.

Concluindo, é com base nesses contornos teóricos que a doutrina e a jurisprudência minoritária, ressalte-se, vem reconhecendo a incidência do arquivamento implícito do inquérito policial.

5. DA INADMISSIBILIDADE DO ARQUIVAMENTO IMPLÍCITO DO INQUÉRITO POLICIAL

O entendimento acima enfocado encontrou a oposição de José Antônio Paganella Boschi, para quem o arquivamento implícito foi repudiado pelo Código de Processo Penal, pois nele se exige que o Ministério Público invoque suas razões para não denunciar (art. 28), o mesmo tempo em que o referido código autoriza o aditamento, a qualquer tempo, de forma espontânea (art. 569) ou provocada (arts. 408, § 5°; e 384, parágrafo único)[10].

Nesse sentido, o seguinte julgado do TJRJ:

EMENTA - HOMICÍDIO QUALIFICADO (ART. 121, § 2º, I DO CÓDIGO PENAL) E FURTO - ARQUIVAMENTO IMPLÍCITO EM RELAÇÃO AO CRIME DE FURTO - INOCORRÊNCIA - FIGURA INEXISTENTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO PROCESSUAL PENAL - O INQUÉRITO POLICIAL SÓ PODE SER ARQUIVADO A REQUERIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E POR DECISÃO JUDICIAL - INEXISTÊNCIA DE TAL REQUERIMENTO OU DECISÃO - INTELIGÊNCIA DA SÚMULA Nº 524 DO STF - SE EXISTE PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA EM RELAÇÃO A AMBAS AS PRÁTICAS CRIMINOSAS, DEVE O RÉU SER PRONUNCIADO - VIGÊNCIA DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE - DECISÃO INTERLOCUTÓRIA MISTA DE PRONÚNCIA QUE SE MANTÉM - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. Processo n° 0015635-09.2006.8.19.0001. Desembargador Antônio José Carvalho. Segunda Câmara Criminal. Data do julgamento: 12/02/2008.

Sendo assim, o oferecimento da denúncia somente em relação a alguma(s) da(s) infração(ões) apuradas pelo inquérito, ou em desfavor de algum(ns) do(s) indiciado(s) ou investigado(s) não implica pedido de arquivamento implícito em relação aos demais, mas tão somente indica não ter vislumbrado o membro do Parquet, naquela ocasião, a presença de materialidade e indícios suficientes de autoria convergentes para os não denunciados.

Com efeito, o primeiro obstáculo à aceitação do arquivamento implícito está, efetivamente, no Código de Processo Penal. O artigo 28 desse diploma legal afirma que o órgão do Ministério Público apresentará, expressamente, os motivos para não propor a ação penal, pois refere-se às razões invocadas para o pedido de arquivamento no momento em que prevê a possibilidade do dissenso do magistrado competente para avaliar o mérito daquela pretensão.

Além disso, à luz do artigo 569 do CPP, pode o Ministério Público aditar a denúncia, até a sentença, incluindo co-réus no rol dos denunciados, desde que presentes os requisitos do artigo 41 do diploma adjetivo penal.

Ocorre, porém, que não é só a lei ordinária que impede o arquivamento implícito. A própria Constituição da República o desautoriza, ao impor que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário sejam públicos, e fundamentadas todas as suas decisões (artigo 93, IX), sem distinguir quais as questões que dependeriam de motivação.

Vale dizer, inclui o deferimento do arquivamento, que, embora não seja, conforme visto, ato de natureza jurisdicional, é, sem dúvida, um pronunciamento judicial, porque emanado de autoridade judiciária.

Ademais, o texto constitucional determina que as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas (art. 93, X), o que engloba os arquivamentos das peças informativas de notícia de crime cujo processo é de sua competência originária.

Ressalte-se, ainda, que em nosso ordenamento jurídico, como é sabido, os interesses que determinam a repressão penal pertencem à sociedade, e não aos agentes públicos empenhados na sua promoção.

É através desse interesse coletivo na repressão dos crimes que se vislumbra, ainda que sem texto expresso nesse sentido, o princípio da obrigatoriedade da ação penal, por meio do qual o dominus litis, ao reunir elementos que indiquem a ocorrência de um ilícito penal, bem como outros que apontem para a sua autoria, não tem a faculdade de dispor da ação penal pública, sendo, portanto, nessas circunstâncias, obrigado a promovê-la.

Nessa ordem de ideias, o arquivamento implícito do inquérito policial colide com um princípio basilar do nosso ordenamento processual, pois o único mecanismo de controle do Ministério Público e do juiz incumbido de fiscalizá-lo, no tocante à obrigatoriedade da ação penal, é provocar o Parquet, para a defesa escrita das razões em que se arrima para não denunciar, possibilitando, destarte, ao magistrado, que exerça a expressa análise daquelas ponderações, num razoável sistema de freios e contrapesos, permitindo que o sistema, como um todo, possa funcionar satisfatoriamente.

A admissibilidade do arquivamento implícito pelo órgão do Ministério Público, com o placet do magistrado, propiciaria, ao primeiro, dispor livremente sobre interesses sociais, e ao segundo, não exercer uma fiscalização efetiva decorrente da lei (arts. 18 e 28 do CPP), impossibilitando qualquer controle por parte da população, em nome da qual devem atuar, o que, à evidência, é inaceitável.

Ademais, referendar a tese do arquivamento implícito seria transformar o agente do poder no próprio soberano, autorizando-se a agir por motivos de conveniência e oportunidade, quando decorre da nossa sistemática a obrigatoriedade da ação penal pública, que atende melhor às exigências da defesa social, que é o fundamento moderno do Direito Penal. Em verdade, o arquivamento implícito significaria não fundamentar, e seria caminho por demais perigoso a ser percorrido no Estado de Direito.

Acrescente-se outro argumento, que chama a atenção por ser, à primeira vista, paradoxal. O arquivamento implícito do inquérito policial prejudicaria quem supostamente ele beneficiaria, ou seja, o indiciado atingido reflexamente por seus efeitos.

Em que pese tal argumento ser também utilizado pelos doutrinadores que admitem o arquivamento implícito, deve-se ter em mente, na verdade, que, sem a manifestação concludente da Justiça Pública e sem uma decisão explícita do Poder Judiciário, ficaria o indiciado com sua situação indefinida, marcado de forma indelével no registro policial e judiciário como pessoa suspeita de envolvimento em ilícito penal, sem a possibilidade de provar, com as certidões de praxe, que os indícios contra ele eram inconsistentes, ou até mesmo que não praticara nenhuma infração às leis penais.

À margem da lei penal e sem um arquivamento expresso com decisão explícita a respeito, o indiciado estaria em situação mais desfavorável que a do réu absolvido ou condenado, pois o primeiro provaria, com documento público, o reconhecimento de sua inculpabilidade, enquanto o segundo tem o direito que sua condenação não conste da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas pela autoridade policial ou auxiliares da justiça, depois de cumprida ou extinta a pena imposta, exceto para instruir processo pela prática de nova infração penal ou em outros casos expressos em lei (art. 202 da LEP).

De tal sorte, o juiz deverá, diante de um pedido de arquivamento lacunoso ou de uma denúncia desacompanhada da apreciação sobre indiciados dela excluídos, determinar que o promotor de justiça exare manifestação concludente a respeito. Em havendo recusa ou defeituosa a resposta, a questão deve ser encaminhada ao Procurador-Geral de Justiça, para solução, conforme determina o artigo 28 do Código de Processo Penal.

Além disso, uma vez iniciada a ação penal, respeitados os preceitos legais, será sempre permitido o aditamento ulterior para inovar a peça acusatória ou colocar, de modo inequívoco, a intenção de não denunciar este ou aquele indivíduo, apesar da ausência de novas provas, sendo inaplicável, à hipótese, a Súmula 524 do STF.

Por fim, o STF já decidiu que “a ordem jurídica em vigor não contempla o arquivamento implícito do inquérito” (RHC 93247, Relator: Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 18/03/2008).

 

 

CONCLUSÃO

 

Viu-se, pois, que, em virtude da ausência de previsão legal acerca do arquivamento implícito do inquérito policial, instaurou-se certa polêmica nos campos doutrinário e jurisprudencial acerca de sua admissibilidade.

Expostos os argumentos das duas correntes, antagônicas entre si, percebe-se que a outro resultado não se pode chegar, senão àquele que não admite o arquivamento implícito do inquérito policial.

Em primeiro lugar, ressalte-se que a ação penal pública é regida pelo princípio da obrigatoriedade, por meio do qual, conforme visto, o dominus litis, ao reunir elementos que indiquem a ocorrência de um ilícito penal, bem como outros que apontem para a sua autoria, não tem a faculdade de dispor da ação penal pública, sendo, portanto, nessas circunstâncias, obrigado a promovê-la.

Ademais, o próprio Código de Processo Penal, ao exigir que o órgão do Ministério Público invoque suas razões para não denunciar (art. 28), ou, ainda, ao autorizar o aditamento, a qualquer tempo, de forma espontânea (art. 569) ou provocada (arts. 408, § 5°; e 384, parágrafo único), acabou por afastar a existência do arquivamento implícito.

Pode-se invocar, ainda, a ofensa que o mencionado instituto representa ao disposto no art. 93, IX e X da Constituição da República, que determina sejam fundamentadas todas as decisões, judiciais ou administrativas, do Poder Judiciário.

A tese de que o arquivamento implícito coloca o cidadão em situação indefinida e desfavorável perante a sociedade também reforça o presente entendimento, conforme demonstrado supra.

Importante mencionar, ainda, que a admissibilidade do arquivamento implícito do inquérito policial pelo Ministério Público, com o aval do magistrado, além de conferir atribuição inconstitucional ao Parquet, dotando-o do poder de dispor livremente sobre interesses sociais, afasta, do âmbito do juiz, a fiscalização anômala que ele exerce sobre o ofício do órgão ministerial, o que é inaceitável.

Concluindo, por tudo que foi exposto supra, percebe-se que o arquivamento implícito do inquérito policial ou das peças de informação não deve ser admitido, devendo a doutrina e a jurisprudência pátrias trilharem o caminho perfilhado por esse entendimento, a fim de que se evite o cometimento de injustiças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1997.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2006.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.

TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1977.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1994.



* Bacharel em Direito. Pós-Graduado em Direito Processual Penal. E-mail: felipeboy83@hotmail.com

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 126.

                               

[2] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2006. p. 82.

[3] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 186.

[4] JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 12.

[5] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2006. p. 27.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 92.

[7] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 40.

[8] MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1997. p. 310.

[9] ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Anotado. Campinas: Bookseller, vol. I, p. 421.

[10] BOSCHI, José Antônio Paganella. Persecução Penal. Rio de Janeiro: Aide, 1987. p. 209-211.

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