A participação das entidades de representação coletiva como pressuposto...
Por Gabriela de Campos Sena | 03/03/2017 | DireitoO presente artigo almeja apenas promover uma singela contextualização da importância da relação entre Estado, sociedade e sindicato para, posteriormente, apresentar o conceito de governança dentro dos paradigmas da razão dialógica e do princípio da complexidade. Assim, passar-se-á para uma breve contextualização da relação entre Estado, sociedade e sindicato no paradigma de Estado Democrático de Direito, que pressupõe a participação, o diálogo e a interação com as entidades de representação coletiva como pressuposto imprescindível para a construção do conceito de governança, que será abordado no final do capítulo: a governança integrada.[1]
As novas teorias administrativistas ampliam gradativamente a perspectiva do discurso sobre um novo modelo de administração pública que congregue problemas gerenciais, de orçamento e distribuição de recursos como estratégia para se efetivar o bem comum em uma sociedade marcada pela heterogeneidade e complexidade dos problemas sociais. Trata-se do início de uma reviravolta paradigmática dos pressupostos clássicos que sempre fundamentaram a governança pública (public governance). Apesar da preliminar reviravolta das concepções doutrinárias que serão explicitadas no presente capítulo, ainda se questiona: “até que ponto trata-se de um novo conceito para regular as relações de troca entre os setores público e privado, entre Estado, mercado e sociedade?”[2]
A resposta para esta pergunta pode ser encontrada na ciência política, que passou a adotar uma concepção de governança baseada na cooperação entre cidadãos, empresas e entidades sem fins lucrativos. Tal cooperação engloba tanto o trabalho conjunto de atores públicos, comunitários e privados, quanto novas formas de transferência de serviços para grupos privados e comunitários:
Sob a ótica da ciência política, a governança pública está associada a uma mudança na gestão política. Trata-se de uma tendência para se recorrer cada vez mais à autogestão nos campos social, econômico e político, e a uma nova composição de formas de gestão daí decorrentes. Paralelamente à hierarquia e ao mercado, com suas formas de gestão à base de “poder e dinheiro”, ao novo modelo somam-se a negociação, a comunicação e a confiança. Aqui a governança é entendida como uma alternativa para a gestão baseada na hierarquia. Em relação à esfera local, ela significa que as cidades fortalecem cada vez mais a cooperação com os cidadãos, as empresas e as entidades sem fins lucrativos na condução de suas ações. A cooperação engloba tanto o trabalho conjunto de atores públicos, comunitários e privados, quanto também novas formas de transferência de serviços para grupos privados e comunitários.[3]
A prestação de serviços da Administração Pública é potencializada quando o Estado adota a perspectiva de colaboração, que pode ser prestada tanto por parte da sociedade civil quanto pelo próprio terceiro setor.[4] A cooperação é o instrumento da good governance e constitui o primeiro passo para a efetividade dos direitos sociais mínimos elencados na Constituição de 1988:
Estado, mercado, redes sociais e comunidades constituem mecanismos institucionais de regulamentação, que se articulam em diferentes composições ou arranjos. Por isso, a governança prescreve uma lógica de gestão tanto para uma organização quanto para um setor e é usada como conceito-chave para vários tipos de atividades coordenadas. Na verdade, determinadas formas de governança ainda são típicas para certos campos de atuação, como, por exemplo, a hierarquia para o Estado e o mercado para a iniciativa privada. Mas estudos empíricos demonstram que, no ínterim, surgiram arranjos institucionais nos quais transparece um mix de governança. Esse mix caracteriza-se por estruturas mistas, ou híbridas, em que atuam diferentes mecanismos de gestão (controle hierárquico, concorrência, confiança e solidariedade). Seguindo essa tese, as formas coletivas de atuação na sociedade podem ser melhor compreendidas dessa forma do que pelo conceito tradicional de Estado ou pelo conceito de sistema de governo. Para essa perspectiva, é decisiva a transição do Estado gestor (hierárquico), com ingerência na sociedade, para o Estado cooperativo, que atua em conjunto com a sociedade e as organizações empresariais, por meio de parcerias estratégicas.[5]
O sindicalismo brasileiro contemporâneo ainda carece das práticas integradas mencionadas anteriormente. As práticas colaborativas, retro mencionadas, podem ser exemplificadas a partir do sistema alemão de colaboração e participação dos sindicatos na governança local. Na Alemanha, os sindicatos criam redes políticas com alianças e parcerias, sendo que suas alianças municipais possuem a meta de criar novos postos de trabalho, através de parcerias sociais que objetivam combater crises econômicas e sociopolíticas:
Em conjunto com outros atores da política, sociedade civil e sindicatos, os municípios vêm testando, nos últimos anos, novas formas de criar redes políticas, como os pactos municipais de trabalho, por exemplo. Essas formas situam-se em uma das pontas de um amplo espectro de redes sociais (networks), alianças e parcerias, nas esferas local e regional, servindo como matéria-prima para o surgimento da governança pública. Sua conjuntura atual na Alemanha é uma resposta às estruturas e organizações sociais ultrapassadas, que já não têm mais condições de enfrentar as crises econômicas e sociopolíticas e, em especial, o desemprego em massa. As alianças municipais de trabalho têm como meta criar novos postos de trabalho e assegurar as vagas nas reformulações da administração pública e dos serviços municipais. Elas unem contratualmente os tradicionais parceiros sociais (associações de empregadores, sindicatos e Estado) em parcerias estratégicas.[6]
Para construir a teoria da governança, considera-se que os sindicatos integram o terceiro setor. Apesar de todas as divergências doutrinárias, o presente capítulo toma como referência as ideias de Carlos Montaño, que faz uma crítica à atual concepção de terceiro setor e enquadram as entidades de representação de classe ou de categoria econômica como agentes que cumprem os requisitos da lei de organizações sociais (Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998), pois o terceiro setor:
[...] mescla diversos sujeitos com aparentes igualdades nas atividades, porém com interesses, espaços e significados sociais diversos, contrário e até contraditórios, pois integrariam o setor as ONG’s, Organizações sem fins lucrativos (OSFL), as organizações da sociedade civil (OSC), as instituições filantrópicas, as associações de moradores ou comunitárias, as associações profissionais ou categoriais, os clubes, as instituições culturais, as instituições religiosas, parecendo o conceito reunir tanto o Green Peace (da defesa radical do meio ambiente), como o movimento Viva Rio; as mães da Praça de Maio (de luta política pelo esclarecimento e justiça sobre os detidos /desaparecidos na ditadura da Argentina); a FIESP; o MST (de luta político-econômica pela reforma agrária); a Fundação Roberto Marinho; as creches comunitárias (conquistas dos moradores); a caridade individual; o movimento pelas “diretas já”; as atividades “sociais” de um candidato a vereador.[7]
A imunidade tributária sindical estabelecida pela Constituição de 1988 (artigo 150, inciso VI, alínea “c” também comprova que as entidades de representação coletiva integram o terceiro setor. Ademais, os sindicatos são pessoas jurídicas de direito privado com vedação do exercício de atividade econômica de formas direta e indireta, conforme preceitua o artigo 564 da CLT. As receitas dos sindicatos são utilizadas para sua própria manutenção. Ressalta-se ainda que, no capítulo 2 do presente trabalho, abordou-se a dificuldade financeira das entidades sindicais como um dos fatores da crise do sindicalismo contemporâneo.
Para a elaboração e construção da nova concepção de governança, também se considera que o próprio sistema Núcleo Intersindical de conciliação Trabalhista das Telecomunicações em Minas Gerais é uma instituição integrante do terceiro setor. Isso ocorre devido a seu enquadramento na Lei de Organizações Sociais (Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998), que exige, em seu artigo 2º, que a entidade seja pessoa jurídica de direito privado (inciso I, alínea “a”), sem fins lucrativos (inciso I, alínea “b”), com previsão estatutária de órgão de deliberação superior (inciso I, alínea “c”), e que tenha participação de representantes do Poder Público (inciso I, alínea “d”).
No Brasil, a participação dos sindicatos na governança possui previsão legal, mas é pouco difundida, conhecida e aplicada. A Lei nº 13.019, de 2014, estabelece o regime jurídico das parcerias entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação, além de diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil.
A Lei nº 13.019/2014 considera como partícipe da organização da sociedade civil toda entidade privada sem fins lucrativos que não distribua resultados e dividendos, participações ou parcelas do seu patrimônio auferidos durante o exercício de suas atividades; assim, os sindicatos enquadram-se perfeitamente na alínea “a” do inciso I do artigo 2º da mencionada lei:
Art. 2o Para os fins desta Lei, considera-se:
I - Organização da sociedade civil:
- a) entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplique integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015).[8]
Além da Lei nº 13.019/ 2014, a participação dos sindicatos na governança também está presente explicitamente no texto da CLT na alínea “d” do artigo 513 e na alínea “a” do artigo 514:
Artigo 513: São prerrogativas do sindicato:
[...]
- d) colaborar com o Estado, como órgãos técnicos e consultivos, nos estudo e solução dos problemas que se relacionam com a respectiva categoria ou profissão liberal.
Artigo 514: São deveres do sindicato:
[...]
- a) colaborar com os poderes públicos no desenvolvimento da solidariedade social.[9]
A democracia e a cidadania são elementos que compõem a governança no contexto do Estado Constitucional, logo, o pleno exercício da democracia constitui inexoravelmente a fundamentação da governança. Nesse contexto elencam-se os pressupostos básicos da good governance:
- a) identidade coletiva; b) deliberações que legitimem as ações políticas estatais; c) sistema político eficiente e responsável; d) primado da ética na gestão de recursos públicos; e) reconhecimento, por parte de uma comunidade política, de uma responsabilidade compartilhada; f) Outorga de necessárias competências aos órgãos estatais incumbidos de prevenir e combater a corrupção.[10]
A governança pressupõe a existência de uma democracia contraposta aos ideais da ciência clássica. “O exercício da democracia depende não apenas de sua garantia por meio de direitos, mas também de uma cultura política democrática que lhe dê sustentação.”[11] Nesse viés, a concepção de democracia carece de reviravoltas paradigmáticas que a transformem em instrumento apto a viabilizar a governança, como uma responsabilidade compartilhada de ações em prol da construção do projeto de sociedade que está inscrito na Constituição. Assim, “sob o paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, a jurisdição Constitucional deve referir-se primeiramente aos pressupostos comunicativos e às condições processuais, para uma gênese democrática do direito”[12].
A cultura político-democrática contemporânea que fundamenta a governança depende de uma quebra de paradigmas e do regresso à teoria originária sobre a participação dos sindicatos nos procedimentos cognitivos de formação da opinião e da vontade de agentes que integram o Poder Público, para romper com a concepção clássica de democracia meramente representacionista e construir um novo paradigma que congregue as ideias que constituem a democracia integral. Para Vasconcelos, a ideia de democracia integral invoca os princípios de governança e subsidiariedade ativa com a participação dos destinatários da ação pública nos processos de formação de opinião e da vontade que dirigem o exercício do poder público na aplicação da ordem jurídica e na resolução de conflitos e problemas sociais.[13]
Ainda segundo Vasconcelos, a assimilação do princípio de democracia integral também implica a participação dos sindicatos na gestão da organização do trabalho e na administração da justiça pelo diálogo e pela concertação social, além de pressupor a participação nos procedimentos cognitivos que concernem à realidade e à escolha da norma, do seu sentido e do modo mais adequado de sua aplicação nos contextos de realidade.[14]
A ideia de democracia integral que se aduz advém da “perspectiva da ética de responsabilidade e da teoria discursiva apeliana/habermasiana, que desafia a tarefa de aprofundar a revolução democrática com a criação de posições de sujeito, mediante a multiplicação de práticas democráticas”[15]. Nesse viés, a governança pressupõe a democratização dos procedimentos públicos relacionados às escolhas e decisões políticas, através da participação da sociedade e do terceiro setor na promoção da efetividade dos direitos fundamentais mínimos estabelecidos na constituição da República de 1988:
Concebe-se a democracia como processo que reúne cidadãos para tratar de objetivos, ideais, ações e problemas coletivos, em busca de consenso auferido pela oferta de argumentos, em que se reproduz um raciocínio público/coletivo sobre a melhor forma (melhor argumento) de alcançar, cooperativamente, os objetivos dialogicamente estabelecidos, tendo por referências a constituição e ordem jurídica. O instituto dos Núcleos Intersindicais de Conciliação Trabalhista e a teoria democrática que lhe dá suporte constituem a particularização desse ideal de democracia no âmbito da organização do trabalho.[16]
Democracia e governança são termos indissociáveis e intercomplementares, ambos pressupõem a participação, interação e integração de forças responsáveis pela construção de uma sociedade justa e solidária, conforme preceitua a constituição. A partir dessa concepção, estabelece-se a relação entre Estado e Sociedade como elemento fundante da construção do sentido e do conceito de governança, que será abordado no tópico 3.6.
A good governance pressupõe uma ampla participação das organizações[17] e instituições que compõem o Estado. Outrossim, a mencionada participação é inerente ao Estado Constitucional do século XXI: o Estado Democrático de Direito também caracterizado como Estado Internacional e Constitucional de Direito, conforme se verá adiante na contextualização das perspectivas de governança.
Entende-se que Estado Constitucional:
[..] é aquele no qual o poder e o governo encontram-se regulados pelo Direito, com respeito à pessoa humana e seus direitos; sua pedra angular é a limitação do poder e a instauração e manutenção da ordem por meio de constituições.
São garantias institucionais do Estado Constitucional a proteção das liberdades públicas (limitação negativa do poder), a tripartição dos Poderes (limitação constitucional do poder) e a centralidade de instituições representativas (em geral, concretizada no parlamento). O Estado Constitucional é produto das revoluções burguesas (a inglesa, a francesa e a americana) [...] [18]
Ao se considerar que, em um Estado Democrático de Direito, é imprescindível a participação dos sindicatos na construção do conceito e da concepção de governança,[19] é necessário adentrar na esfera no constitucionalismo contemporâneo para transpor as barreiras da democracia formal e reducionista que estão historicamente arraigadas no Direito. Nesse viés apresentar-se-ão brevemente as características de um ordenamento jurídico constitucionalizado.
É importante ressaltar que constituem características de um sistema ou de um ordenamento jurídico constitucionalizado: a) uma Constituição rígida; b) a garantia jurisdicional da Constituição, caso em que o sistema conta com alguma forma de controle de constitucionalidade; c) a força vinculante da Constituição, ou seja, ela é considerada norma jurídica:
A tradição constitucional brasileira inseriu-se nas tendências do (neo) constitucionalismo contemporâneo. Esse novo paradigma jurídico do constitucionalismo exige dos juristas, decisores e aplicadores da lei a aceitação da normatividade da constituição e o desenvolvimento de uma teoria do direito e de uma “dogmática” a partir de um novo conceito de direito. [20]
Apesar da construção histórica do Estado Constitucional não ser objeto de estudo do presente capítulo, apresentar-se-á brevemente uma singela diferenciação com o objetivo de contextualizar o tipo de Estado a que se refere o presente trabalho (Quadro 12).[21]
Quadro 12 - Tipos de Estado Constitucional
Estado Constitucional do século XIX e início do século XX |
Estado Constitucional do pós-primeira guerra mundial |
Estado Constitucional da segunda metade do século XX |
Estado Constitucional do início do século XXI |
Estado Liberal |
Estado Social |
Estado Democrático |
Estado Internacional e Constitucional de Direito |
Também denominado Estado liberal, Estado liberal de direito ou Estado representativo, tem como fundamentos ideológicos o individualismo, o liberalismo e a democracia. |
Também identificado como Estado intervencionista, Estado Providência, Estado de Bem-Estar ou Welfare State. Há reconhecimento ampliado dos direitos dos indivíduos. Os direitos econômicos e sociais são uma extensão dos direitos civis e políticos, ou seja, agrega-se a necessidade de correções e compensações dos desvios socioeconômicos. |
Possui traços sociais e intervencionistas. Caracteriza-se por: a) adoção de sistemas políticos democráticos; b) supremacia da Constituição sobre a produção jurídica, a aplicação e a interpretação da lei ordinária; c) subordinação da vontade legislativa ao conteúdo de justiça previsto na Constituição; d) irradiação do conteúdo de justiça por intermédio de princípios e valores por todo o sistema jurídico; e) aplicação do reconhecimento e proteção dos direitos humanos, com valorização do indivíduo na esfera pública e na esfera privada. |
Possui todos os traços, características, fundamentos e finalidades do Estado Democrático de Direito, porém avança para atender à complexidade imposta pela sociedade contemporânea. É um Estado que se caracteriza por ser, simultaneamente, democrático, internacional e constitucional. Não é um produto da globalização ou da regionalização, mas um tipo de Estado que compartilha valores em nível mundial. A soberania do Estado é partilhada ou compartilhada com os demais sujeitos da ordem internacional e regional, provocando o declínio da autoridade estatal, assim como a perda do monopólio do poder político e, por consequência, da autoridade e centralidade decisórias. |
A finalidade é garantir a liberdade privada, política e econômica, assim como a segurança e a propriedade. |
Amplia o escopo em relação ao Estado liberal. Sua finalidade, além da garantia da liberdade, é a ampliação da igualdade em sentido social. |
Orienta-se por valores fundados na dignidade humana e nos direitos fundamentais. Os cidadãos têm iguais direitos e obrigações instituídos pela Constituição, com base em determinados valores ético-jurídicos. |
Orienta-se por valores fundados na dignidade humana e nos direitos fundamentais em perspectiva internacional com ênfase nos direitos humanos e sociais sob a orientação dos valores das Nações Unidas, expressos na Carta de 1946. |
Fonte: Elaborado pela autora com base no capítulo 4 de RANIERI, Nina. Teoria do Estado: do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito. Barueri: Manole, 2013.
O Estado Constitucional da segunda metade do Século XX (Estado Democrático) é marcado por grandes pressões sociais com o objetivo da realização de interesses, por isso, caracteriza-se “pelo fracionamento do seu poder, em virtude do florescimento, no decorrer do século XX, de inúmeras entidades – partidos políticos, sindicatos laborais e patronais, associação profissionais, culturais e etc.”[22]. Depreende-se das mencionadas pressões sociais que:
[...] a democracia é uma forma política eminentemente histórica, devido ao questionamento que implica a necessidade do consenso social para sua legitimidade.[23]
Constitui, deste modo, a democracia, na linguagem de Lefort, uma nova forma política, um novo centro de articulação e auto-instituição da sociedade, onde a política não é vista como uma instância autônoma, mas como a mise en forme de sentido e encenação do social. A própria identidade da sociedade é política. A política é que possibilita a delimitação do espaço de sua auto-instituição. Essa forma de sociedade é democrática devido a possibilidade, sem limites da manifestação do direito de falar e ser escutado, que ela engendra. Trata-se de forma política articulada a partir do princípio de anunciação de direitos, onde o princípio maior é o direito de enunciá-los.[24]
A nova articulação social de movimentos civis de cunho reivindicatório surgiu a partir da descrença na representação política do Estado. Nesse contexto, compreende-se a inserção dos sindicatos de categorias econômicas e profissionais na perspectiva de colaboração com a Administração Pública para o cumprimento dos valores e dos fins traçados na Constituição de 1988:
De modo simplificado, podemos dizer que, no Preâmbulo, os valores prescrevem ao Estado o cometimento de ações em benefício dos destinatários das normas constitucionais; no artigo 1º, os fundamentos revelam as principais opções político-constitucionais do Estado brasileiro. Já o artigo 3º dá concretude aos valores expressos no preâmbulo, apontando fins a serem alcançados por meio de normas constitucionais.[25]
Ainda sob os auspícios dos mesmos fundamentos, inerentes ao Estado Democrático de Direito, surge, conforme demonstrado no Quadro 12, o Estado Internacional e Constitucional de Direito (Estado Constitucional do início do século XXI). É nessa perspectiva de Estado Constitucional Democrático e Internacional que se abre e amplia a participação do sindicalismo na governança, principalmente das entidades sindicais de atuação em âmbito internacional, pois com a refundação do Estado difundiram-se entes autônomos institucionais vinculados à sociedade civil, tais como ordens profissionais, associações e organizações não governamentais (ONGs).
Conforme abordagem do capítulo 2, um movimento sindical internacional unificador possui aptidão para traçar estratégias para e efetividade de direitos sociais fundamentais e humanos em nível transnacional. Assim, além da participação dos sindicatos na governança, também se tem no século XXI a participação das entidades sindicais internacionais, entre elas a Confederação Internacional das Organizações Sindicais Livres (Ciosl), a Confederação Mundial do Trabalho (CMT), a Confederação Sindical Internacional (CSI), a Organización Regional Interamericana de Trabajadores (ORIT), a Central Latinoamericana de Trabajadores (CLAT), a Federação Sindical Mundial (WFTU – Word Federation of Trade Unions), a Confederação Europeia de Sindicatos (CES), a American Federation of Labor (AFL), que se fundiu com o Congress of Industrial Organizations (CIO), para formar a AFL-CIO.
A atuação e participação do sindicalismo internacional na governança pode se dar de forma interna e externa, e de quatro maneiras eficazes: a) na implementação de políticas públicas internas; b) na implementação de políticas públicas externas e transnacionais; c) no suporte à criação de sistemas Núcleos Intersindicais de Conciliação Trabalhista (NINTERss) na ordem interna; d) no suporte e apoio na ordem internacional para promover a criação de Núcleo Intersindicais de Conciliação Trabalhista (NINTERs), nos países de maior intercâmbio e em entidades coletivas de cunho internacional. Ressalta-se que a criação de Núcleos Intersindicais na ordem externa, com a participação e o apoio das entidades sindicais internacionais, será objeto de estudo do capítulo 4 da presente dissertação, no tópico 4.3.
A participação do sindicalismo de cunho internacional apresenta conceitos inerentes ao Estado Constitucional Democrático e Internacional do século XXI, referindo-se à global governance, também conhecida como governança global.
A governança global é uma articulação, em nível mundial, para promover o aumento da participação e influência de agentes da sociedade civil, principalmente do empresariado e do terceiro setor (incluindo-se aqui o sindicalismo internacional), em processos que criam e gerenciam acordos e organizações internacionais que objetivem integrar Estados e, ao mesmo tempo, promover a descentralização estatal de procedimentos que deveriam ser discursivos e abertos para promover o desenvolvimento econômico e social fundados na dignidade humana e nos direitos fundamentais em perspectiva internacional, com ênfase nos direitos humanos e sociais sob a orientação dos valores das Nações Unidas, expressos na Carta de 1946.
Na perspectiva da governança global, “enquanto a sociedade civil transnacional é, ela mesma, um cenário contestado e conflituoso, grupos dentro desse cenário se tornaram personagens centrais na política e na governança global”[26]. Desse modo, a governança global justifica-se pela:
[...] globalização e as interconexões econômicas e humanas cada vez mais intensas entre as sociedades; a crescente gravidade das questões ecológicas; a democratização e as novas noções de legitimidade política; o aumento contínuo da quantidade de atores econômicos transnacionais e o surgimento de uma sociedade transnacional civil densa e crescentemente ativa; o declínio do uso da força militar em larga escala entre os principais estados, concomitantemente à expansão paralela de várias outras formas de violência social; e a extensão do desafio que o estado enfrenta para ser um alicerce legítimo e efetivo na ordem internacional- todos esses processos inexoravelmente levaram a crer que a ordem internacional havia sido recriada e reconceitualizada. Cada vez mais considera-se que a ordem envolve a criação de normas internacionais que afetam profundamente as estruturas e a organização domesticas dos estados, investem indivíduos e grupos de estados de direitos e deveres, além de buscarem incorporar alguma noção de bem comum global.[27]
A governança global possui uma abertura maior que a governança regulatória promovida pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),[28] por isso, para se ampliar a concepção e os horizontes da governança, propõe-se a interação entre a governança global e a governança regulatória. Nesta se “incluem as leis, pedidos formais e informais e normas subordinadas emitidas por todos os níveis de governo, e as normas emitidas por organismos não governamentais ou auto-reguladores a quem os governos delegaram poderes normativos”[29].
A governança regulatória possui aspectos econômicos, sociais e administrativos que ainda carecem de ampliação e abertura dialógica, para conhecer os anseios da sociedade e de seus respectivos Estados. Em linhas gerais, sintetiza-se cada um desses aspectos das três categorias de regulamentação (econômica, social e administrativa):
A legislação econômica interfere diretamente nas decisões do mercado, como preços, concorrência, entrada ou saída do mercado. As reformas visam aumentar a eficácia econômica pela redução de obstáculos à concorrência e à inovação, frequentemente por meio da desregulação e pelo aperfeiçoamento da estrutura regulatória de funcionamento do mercado e de sua atenta supervisão.
As regulações sociais protegem os interesses públicos, como saúde, segurança, meio ambiente e dos mecanismos de coesão social. Seus efeitos econômicos podem ter importância secundária ou até mesmo imprevista, mas eles podem ser substanciais. As reformas visam verificar se a regulação é necessária, e projetar novos instrumentos, tais como a adoção de incentivos para o mercado que sejam simples, mais flexíveis, eficazes e com preços mais baixos.
As regulações administrativas são trâmites burocráticos e formalidades administrativas por meio das quais os governos coletam informações e intervêm em decisões econômicas individuais. Elas podem ter um impacto substancial sobre o desempenho do setor privado. A reforma visa eliminar as que não são mais necessárias, organizando e simplificando e aprimorando a transparência em sua aplicação.[30]
Segundo as diretrizes traçadas no relatório da OCDE sobre o Brasil, “o atual regime regulatório visa alcançar uma série de objetivos estratégicos, incluindo sustentabilidade, justiça social, garantindo um equilíbrio entre oferta e demanda, e promovendo investimentos”[31]. Isso significa que há necessidade de atuação conjunta com a sociedade civil e o terceiro setor.
A abertura de participação para o terceiro setor é uma das características do Estado Constitucional do início do século XXI, que evoca “novas formas de sociabilidade contemporânea, com destaque para expansão do associativismo, a vitalidade da sociedade civil e a positivação de novos direitos ligados a identidades coletivas e difusas”[32]. Esses novos arranjos contemporâneos retratam a:
[...] difusão mundial da democracia, do entendimento e da paz que, favorecida pela diluição das fronteiras, pelo livre comércio, pela interdependência e pela internacionalização, permite a construção, pelos Estados, de regimes jurídicos internacionais, de modo a organizar expectativas e comportamentos na ordem internacional. É o que decorre das chamadas “cláusulas democráticas”, em relação ao reconhecimento internacional dos Estados não comprometidos com os valores ocidentais, ou mesmo no que concerne à sua inclusão em organismos internacionais. Pode-se deduzir dessas circunstâncias uma responsabilidade estatal comum que, por vezes, transcende as fronteiras nacionais para adquirir uma dimensão internacional, do que é prova a ingerência humanitária igualmente beneficiada pela relativização da soberania.[33]
A refundação ideológica do aparelho estatal é consequência das mutações constitucionais, pois “os Estados procuraram se integrar em comunidades políticas supra-estatais ou em sistemas políticos internacionais”[34]. Nesse viés, os fundamentos do constitucionalismo global partem do pressuposto de que haveria um “estreitamento entre as fronteiras entre o Direito Constitucional e do Direito Internacional, os problemas pertinentes ao Estado e à Constituição só devem lograr reconhecimento jurídico e político sob a ótica do Direito Constitucional internacional”[35].
No plano social, tanto a governança local quanto a governança global criam instrumentos ágeis e eficazes de superação de desigualdades sociais e instituem mecanismos aptos a combater a ineficácia de instrumentos normativos, na ordem interna e externa.
No plano econômico, a governança também favorece a superação de obstáculos ao desenvolvimento da economia e da atividade empresarial. Já no plano cultural, ela possui aptidão para promover a relação entre Estado e sociedade, o que demonstra na prática a propensão para o início da formação da rede de colaboração entre grupos sociais, instituições públicas e o Estado.
No plano institucional, a governança demonstra-se como um mecanismo permanente de avanço na democratização para a conquista e cumprimento dos objetivos precípuos da Administração Pública: a realização do bem comum e a harmonização entre os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa.
As instituições participantes da governança, no âmbito da sociedade política (Estado), também promovem impacto de extrema importância na gestão pública e no atendimento dos anseios da sociedade. O enquadramento da governança como instrumento de participação político-sociológica e institucional evoca a participação dos sindicatos como atores protagonistas em todas as situações, inclusive na propositura de políticas públicas.
A política pública constitui-se em meio politicamente legitimado que permite a canalização de recursos, de esforços e de comportamentos para enfrentar problemas coletivos.[36]
A política pública é, por natureza relacionada ao interesse público porque, de algum modo, acaba por afetar, mesmo que indiretamente, todos os membros de uma sociedade. As políticas públicas constituem, assim, uma significativa porção do nosso ambiente sociopolítico, o que leva à necessidade de conhecer como elas são formadas, orçadas, implementadas e avaliadas. Essas tarefas normalmente são desempenhadas por profissionais da Administração Pública e por políticos, e de interesse de pesquisadores preocupados em compreender o funcionamento de processos de formulação de políticas e como os problemas sociais por elas são enfrentados.[37]
A participação dos sindicatos na governança promove, consequentemente, a participação na implementação e na propositura de políticas públicas, já que diz respeito à “mobilização político-administrativa para articular e alocar recursos e esforços para tentar solucionar dado problema coletivo”[38].
Apesar de complexo, o processo de formação de políticas públicas, com maior ou menor sucesso, tem se desenvolvido ao longo do tempo e em diferentes contextos de sociedade. Como regra, uma política pública ganha identidade a partir de um conjunto de decisões que definem e instituem normas e regras gerais abstratas (leis, decretos, acordos, convênios, acordos, tratados, etc.) que irão pautar comportamentos e ações de atores individuais e coletivos (decisões administrativas, autorização, subsídios etc.) para geração de resultados concretos destinados a solucionar problemas que deram origem à necessidade da própria configuração política.[39]
Para que as políticas públicas sejam bem elaboradas e surtam os efeitos desejáveis, a participação da sociedade civil, do terceiro setor e de agentes públicos de carreira permanente tornam-se instrumentos necessários à realização de anseios sociais para a construção de políticas públicas que efetivem a good governance nos planos social, econômico e institucional. Nesse viés, a participação das entidades de representação coletiva constitui pressuposto básico para a construção da concepção de governança. A participação dos sindicatos na implementação, na construção e na propositura de políticas públicas pode se dar de duas maneiras: pela via dos Conselhos Colegiados de Políticas Públicas e pela via da Comissão de Legislação Participativa. É o que se depreende do Quadro 13.
Quadro 13 – Possibilidades de participação dos sindicatos na governança – Elaboração de políticas públicas
Conselho colegiados de políticas públicas |
Comissão de legislação participativa |
Os conselhos colegiados de políticas públicas traduzem-se em formas empíricas de fiscalização e controle das políticas públicas. O objetivo do conselho é descentralizar o poder e compartilhá-lo com a sociedade. |
É uma comissão permanente que recebe sugestões apresentadas por entidades, associações, órgãos de classe, sindicatos e entidades organizadas da sociedade civil, exceto os partidos políticos. Característica: participação social sem ter que recolher milhares de assinaturas em Estados distintos. |
Finalidade: promover a transparência e controlar as políticas públicas |
Finalidade: promover a participação pública. |
Fonte: Elaborado pela autora.
Ao se abordar a participação dos sindicatos e das entidades de representação coletiva em nível internacional, na elaboração de políticas públicas, é importante tecer algumas considerações sobre o tipo/modalidade de política pública a que se refere. Trata-se das cinco modalidades utilizadas atualmente: a) políticas distributivas; b) políticas constitutivas ou de infraestrutura; c) políticas regulamentares ou regulatórias; d) políticas redistributivas.
Observa-se que o sindicalismo contemporâneo é marcado por uma atuação multifacetária, portanto, há necessidade de se estabelecerem políticas públicas plurais, ou seja, diversificadas para atender à amplitude e complexidade da atuação das entidades de representação coletiva. Como exemplo de atuação plural, têm-se as manifestações ocorridas no Brasil em 2016 em prol do “meio passe estudantil” que contou com a participação, organização e apoio de vários sindicatos e centrais sindicais. “O pluralismo, a seu uso contemporâneo, é uma teoria de um processo político em que os indivíduos usam a sua liberdade de se organizar em associações voluntárias, grupos, ou facções para perseguir seus objetivos coletivamente, através do Estado e independente do Estado” (tradução nossa)[40].
Hodiernamente, o sindicalismo brasileiro adota eixos horizontais com movimentos sociais para atuar de forma cooperativa, o que exige a participação, em sua mais ampla acepção, nas políticas públicas. Os sindicatos patronais, de modo geral e na prática, também se amparam em grandes corporações para alcançar seus objetivos e atingir as finalidades inerentes à categoria econômica. O pluralismo e a união entre o sindicalismo contemporâneo e os movimentos sociais, ou entre aquele e os movimentos de cunho econômico (no caso dos sindicatos patronais), bem como a vinculação político-partidária são apenas algumas materializações de uma sociedade democrática e, simultaneamente, plural:
Em uma verdadeira democracia pluralista, grupos de interesse continuam a penetrar em todas as partes como uma estratégia de acesso ao governo. Mas com muito mais frequência, tendo quebrado parte do monopólio do acesso, grupos de interesse procuram mais e mais sucesso para ganhar e manter acesso direto à legislatura, bem como para as agências relevantes e atores do executivo, a fim de participar diretamente na elaboração de políticas e nos processos de implementação dessas políticas. (Tradução nossa).[41]
Ao considerar que os problemas econômicos e sociais são complexos, as políticas públicas também passam a incorporar a marca da complexidade na tentativa de atender e equilibrar os anseios econômicos, sociais, políticos e institucionais. Para melhor compreensão, as políticas públicas são divididas várias tipologias, esquematizadas no Quadro 14.
Quadro 14 – Tipologia das políticas públicas
Políticas distributivas |
Políticas redistributivas |
Políticas regulatórias |
Políticas constitutivas ou estruturadoras |
São políticas públicas que objetivam alocar bens e serviços a frações específicas da sociedade, mediante recursos advindos da coletividade como um todo. Ex.: programas de renda mínima, seguro desemprego, subsídios a empreendimentos econômicos, construção de escolas, revitalização de áreas urbanas. |
São políticas que distribuem bens ou serviços em segmentos particularizados da população por intermédio de recursos oriundos de outros grupos específicos. São conflituosas e nem sempre virtuosas. Ex.: reforma agrária, política tributária, política de transferência de recursos inter-regionais, distribuição de royalties. |
São políticas públicas que estabelecem imperativos (obrigatoriedades), interdições e condições por meio das quais podem e devem ser realizadas determinadas atividades ou admitidos certos comportamentos. Podem ser regulamentações simples ou complexas. Ex.: código de trânsito, legislação trabalhista, lei de eficiência energética, código florestal etc. |
São políticas utilizadas para consolidar as regras do jogo político. São as normas e os procedimentos sobre os quais devem ser formuladas e implementadas as demais políticas públicas. Exemplo: regimentos das casas legislativas e do Congresso Nacional e demais regras constitucionais diversas. |
Fonte: Elaborado pela autora com base em RUA, Maria das Graças; ROMANINI, Roberta. As abordagens das políticas públicas. Brasília: IGEPP, 2013. (Para aprender políticas públicas, v. 5.). Disponível em: <http://igepp.com.br/uploads/ebook/para_aprender_politicas_publicas_-_unidade_05.pdf>. Acesso em: 5 jan. 2016.
Apesar de incipiente, a participação dos sindicatos na governança e na propositura e implementação de políticas públicas, o que mais chama atenção é a quantidade de possibilidades à disposição das entidades de representação coletiva. Ao se considerar que as políticas públicas são manifestações de forças sociais com intervenção na esfera econômico-social e com aptidão para executar programas políticos baseados em anseios que perpassam o bem comum, tem-se que, além da participação das entidades sindicais na governança e nas políticas públicas, existe a possibilidade de participação do próprio sistema NINTER na propositura, elaboração e implementação dessas políticas.
Em outras palavras, os Núcleos Intersindicais de Conciliação Trabalhista possuem personalidade jurídica e são formados por um sindicato patronal e um sindicato de trabalhadores. As proposituras das políticas públicas podem ser formuladas em consenso pelos sindicatos signatários do núcleo e remetidas para o Poder Público, em nome do núcleo, para os conselhos colegiados de políticas públicas e para a comissão de legislação participativa. As políticas públicas, propostas pelo NINTER e em nome do núcleo, podem ainda ser elaboradas com a participação dos agentes públicos integrantes do Conselho Tripartite:
A ideia de “governança” que orienta o sistema Núcleos Intersindicais de Conciliação Trabalhista constitui uma consequência inevitável da aceitação dos paradigmas da razão dialógica e da complexidade como paradigmas complementares ao da filosofia da consciência e diz respeito à adoção de práticas institucionais coerentes com as premissas de uma gestão pública compartida entre sindicatos e instituições do trabalho em âmbitos locais e setoriais. A aceitação da complexidade do real implica desde logo reconhecer as diferenças e a irrepetibilidade das situações concretas e, por isso mesmo, sua irredutibilidade a padrões abstratos de intelecção. O fundo epistemológico desta concepção está na ideia de que a democratização da ação pública somente será possível se as autoridades do trabalho tiverem acesso ao conhecimento acerca da realidade dos destinatários de sua ação, em seus contextos singulares, complexos e irrepetíveis.[42]
Do mesmo modo, a acepção de governança global evoca a propositura de políticas públicas transnacionais. Assim, a participação do sindicalismo de cunho internacional, na elaboração de políticas públicas, fundamenta-se nos problemas sociais e econômicos existentes em nível mundial, principalmente no que tange à América Latina e Caribe:
Na América Latina e no Caribe, a desigualdade tem limitado acesso aos benefícios, dada a orientação dos contratos que tem disposto sobre o financiamento das políticas sociais. Baseando o acesso às prestações em sistemas contributivos, a desigualdade de renda se reflete na capacidade de pagar e é reproduzida na qualidade dos serviços. Assim, na ausência de políticas universais, a cidadania acessa de forma diferenciada os benefícios destinados a melhorar a cobertura em alimentos-nutrição, educação, saúde, emprego e habitação, um fator que é então traduzido em um impedimento para aproveitar as oportunidades de se beneficiar dos frutos do desenvolvimento. (Tradução nossa)[43]
A participação de tais entidades sindicais na governança global também se dá pela atuação política e pela elaboração de instrumentos que cumpram normas internacionais, como é o caso da norma SA8.000.
A SA8.000 é uma norma internacional de responsabilidade social que trata das relações entre pessoas e condições do ambiente de trabalho. Algumas empresas do segmento das telecomunicações possuem certificação de adesão à SA8.000, porém, na prática, não há fiscalização para verificar o cumprimento dessa norma, que é de extrema importância para a criação de um ambiente saudável de trabalho em call centers.
A cooperação e a interação constituem pressupostos da governança na busca por soluções para problemas coletivos; assim, as políticas públicas podem “refletir a capacidade de diferentes grupos em disponibilizarem seus recursos e mobilizar esforços para viabilizar empreendimentos considerados estratégicos para agentes políticos ou gestores públicos em situação de tomada de decisões”[44]. As mencionadas cooperações e interações se materializam no que se denomina rede multiatores de políticas públicas.
Considerando formas organizacionais normalmente abrangidas por pesquisas empíricas, têm sido recorrentes estudos que contemplam aquelas envolvidas em redes de políticas públicas, que conectam com o Estado e a sociedade; estruturas e organizações de atores –chave da economia, com vistas a compreender que papeis exercem e como se ajustam frente a políticas socioeconômicas; e a formação, funcionamento e comportamento de grupos de interesse e sua relação com instituições públicas.[45]
O terceiro setor[46] possui condições de diagnosticar os problemas sociais com maior amplitude que a própria Administração Pública, por isso, a elaboração de políticas públicas pode se adequar com mais facilidade aos anseios sociais. Como exemplo, cita-se o sindicalismo contemporâneo, que está intimamente entrelaçado e envolvido nos próprios movimentos sociais em busca da efetividade das ordens constitucional e infraconstitucional, além de instrumentos aptos para assegurar as diretrizes sociológicas estabelecidas na Constituição da República de 1988. Ademais, “a capacidade governamental nos arranjos de governança varia significativamente, além das habilidades de lidar eficazmente com grupos de interesses, em função do grau em que detém os recursos necessários para definir estratégias viáveis”[47].
Na outra ponta do espectro, visualizamos redes sociais que ampliam seu raio de ação, incluindo, por exemplo, empresas privadas, mas também organizações sem fins lucrativos do terceiro setor e, no âmbito municipal, associações comunitárias e cidadãos individuais. É assim que a concepção de governança pública e o novo modelo de modernização da “comunidade de cidadãos” caminham lado a lado.[48]
Enfim, almejou-se, até aqui, apenas contextualizar a importância da relação entre Estado, sociedade e sindicato para a construção do conceito de governança. Na atual sociedade contemporânea, “as transformações em curso estariam fazendo com que as instituições tradicionais estabelecidas demonstrem-se crescentemente incapacitadas ou debilitadas para enfrentar e resolver, de maneiras percebidas como legítimas e efetivas, as novas demandas políticas e sociais”[49] Assim, o conceito de governança, dentro dos paradigmas da razão dialógica e da complexidade será apresentado no subtítulo 3.1.3, já o conceito de governança na perspectiva do sistema NINTER, será objeto de estudo do subtítulo 3.2 do presente capítulo, desse modo, passar-se-á para uma primeira análise do estado da arte do conceito de governança fracionado pela dogmática jurídica entre pública e social.
Referências
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[1] Integração entre governança pública e governança social diante do esgotamento do paradigma burocrático.
[2] KISSLER, Leo; HEIDEMANN, Francisco G. Governança pública: novo modelo regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade? RAP, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3, p. 479-99, maio/jun. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rap/v40n3/31252.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2015. p. 480.
[3] KISSLER, Leo; HEIDEMANN, Francisco G. Governança pública: novo modelo regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade? RAP, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3, p. 479-99, maio/jun. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rap/v40n3/31252.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2015. p. 482.
[4] Conforme se verá adiante, o terceiro setor é composto por organizações sem fins lucrativos e não governamentais.
[5] KISSLER; HEIDEMANN, op. cit., p. 491.
[6] KISSLER, Leo; HEIDEMANN, Francisco G. Governança pública: novo modelo regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade? RAP, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3, p. 479-99, maio/jun. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rap/v40n3/31252.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2015. p. 491, grifos no original.
[7] MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e a questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002. p. 52-53, grifos no original.
[8] BRASIL. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nos 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999. (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015). Diário Oficial da União, 1º ago. 2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13019.htm>. Acesso em: 15 dez. 2015.
[9] BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, 9 ago. 1943. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm>. Acesso em: 5 jan. 2016.
[10] SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos paradigmas em face da globalização. 4. ed., rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2011. p. 369.
[11] COELHO, Vera Schattan P.; NOBRE, Marcos (Orgs.). Participação e deliberação. Teoria democrática e experiência institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 26.
[12] CATTONI, Marcelo. Poder Constituinte e patriotismo constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. p. 82.
[13] VASCONCELOS, Antônio Gomes de. Pressupostos Filosóficos e Político-Constitucionais do Sistema Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista. Teoria e prática da razão dialógica e do pensamento complexo na organização do trabalho e na administração da justiça: democracia integral e ética de responsabilidade social. São Paulo: LTr, 2014. p. 413.
[14] Ibid., p. 413.
[15] Ibid., p. 78-79.
[16] VASCONCELOS, Antônio Gomes de. Pressupostos Filosóficos e Político-Constitucionais do Sistema Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista. Teoria e prática da razão dialógica e do pensamento complexo na organização do trabalho e na administração da justiça: democracia integral e ética de responsabilidade social. São Paulo: LTr, 2014. p. 74.
[17] Incluem-se aqui as organizações sindicais.
[18] RANIERI, Nina. Teoria do Estado: do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito. Barueri: Manole, 2013. p. 43.
[19] Ressalta-se que o presente tópico apenas promove uma contextualização da relação entre Estado, sociedade e sindicato, deixando a apresentação do conceito de governança e a construção do sentido dentro do sistema NINTER para os próximos subtítulos.
[20] VASCONCELOS, Antônio Gomes de. Pressupostos Filosóficos e Político-Constitucionais do Sistema Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista. Teoria e prática da razão dialógica e do pensamento complexo na organização do trabalho e na administração da justiça: democracia integral e ética de responsabilidade social. São Paulo: LTr, 2014. p. 87.
[21] O quadro objetiva discorrer de forma sintética sobre os tipos de Estado constitucional. A síntese de justifica pela preservação do foco teórico-metodológico da pesquisa; assim, para não fugir das diretrizes da temática do capítulo, apresenta-se apenas uma abordagem genérica.
[22] RANIERI, Nina. Teoria do Estado: do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito. Barueri: Manole, 2013. p. 57.
[23] ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. São Leopoldo: Unissinos, 2003. p. 104.
[24] Ibid., p. 105.
[25] RANIERI, Nina. Teoria do Estado: do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito. Barueri: Manole, 2013. p. 57.
[26] HURRELL, Andrew. Sociedade Internacional e governança global. Lua Nova, São Paulo, n. 46, p. 55-77, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64451999000100003&script=sci_arttext>. Acesso em: 28 jan. 2016.
[27] Ibid.
[28] A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é uma organização de cooperação internacional composta por 34 países, fundada em 1960, sediada em Paris (França) e é sucessora da OECE, que foi criada no Plano Marshall com o objetivo de promover soluções para a reconstrução dos países europeus afetados pela Segunda Guerra Mundial.
[29] OCDE. Relatório sobre a reforma regulatória. Brasil: fortalecendo a governança para o desenvolvimento. Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/ocde_portugues.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2016.
[30] Ibid.
[31] Ibid.
[32] RANIERI, Nina. Teoria do Estado: do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito. Barueri: Manole, 2013. p. 335.
[33] RANIERI, Nina. Teoria do Estado: do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito. Barueri: Manole, 2013. p. 332.
[34] SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos paradigmas em face da globalização. 4. ed., rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2011. p. 367.
[35] Ibid., loc. cit.
[36] PROCOPIUCK, Mario. Políticas públicas e fundamentos da administração pública. São Paulo: Atlas, 2013. p. 138.
[37] Ibid., loc. cit.
[38] Ibid., loc. cit.
[39] Ibid., p. 141.
[40] No original: “Pluralism, in its contemporary usage, is a theory of a political process in which individuals use their freedom to organize into voluntary associations, groups, or factions to pursue their goals collectively, through the state and independent of the state.” (CALISE, Mauro; LOWI, Theodore J. Hyperpolitics. An interactive dictionary of political science concepts. Chicago: University of Chicago Press, 2010. p. 178)
[41] No original: “In a genuine pluralist democracy, interest groups continue to penetrate parties as a strategy of access to government. But much more frequently, having broken the party monopoly of access, interest groups seek more and more successfully to gain and maintain direct access to the legislature as well as to the relevant agencies and actors in the executive, in order to participate directly in the policy-making and policy implementation processes.” (CALISE, Mauro; LOWI, Theodore J. Hyperpolitics. An interactive dictionary of political science concepts. Chicago: University of Chicago Press, 2010. p. 181)
[42] VASCONCELOS, Antônio Gomes de. Pressupostos Filosóficos e Político-Constitucionais do Sistema Núcleo intersindical de conciliação Trabalhista. Teoria e prática da razão dialógica e do pensamento complexo na organização do trabalho e na administração da justiça: democracia integral e ética de responsabilidade social. São Paulo: LTr, 2014. p. 132.
[43] No original: “En América Latina y el Caribe, la desigualdad ha limitado el acceso a las prestaciones, dada la orientación de los contratos con que se ha dispuesto el financiamiento de las políticas sociales. Al basar el acceso a las prestaciones en sistemas contributivos, la desigualdad en los ingresos se refleja en la capacidad de pago y se reproduce en la calidad de las prestaciones. Es así como, en ausencia de políticas universales, la ciudadanía accede en forma diferenciada a prestaciones destinadas a mejorar la cobertura en alimentación-nutrición, educación, salud, empleo y vivienda, factor que luego se traduce en un impedimento para aprovechar las oportunidades de beneficiarse de los frutos del desarrollo”. (UTHOFF, Andras. El financiamiento de la política social. In: ARRIAGADA, Irma (Coord.). Famílias y Políticas Públicas en América Latina. Una historia de desencuentros. Santiago: Comisíon Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), 2007. p. 297)
[44] PROCOPIUCK, Mario. Políticas públicas e fundamentos da administração pública. São Paulo: Atlas, 2013. p. 170.
[45] Ibid., loc. cit..
[46] Incluem-se os sindicatos.
[47] PROCOPIUCK, Mario. Políticas públicas e fundamentos da administração pública. São Paulo: Atlas, 2013. p. 170.
[48] KISSLER, Leo; HEIDEMANN, Francisco G. Governança pública: novo modelo regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade? RAP, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3, p. 479-99, maio/jun. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rap/v40n3/31252.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2015.
[49] PROCOPIUCK, op. cit., p. 171.