A Opinião Pública na Dinâmica da Revolução Francesa

Por Silvon Alves Guimaraes | 03/05/2011 | História

No seu livro, Roger Chartier, procura entender a Revolução Francesa a partir de elementos culturais. Para atingir essa perspectiva desejada, Chartier recorre ao clássico de Daniel Mornet (1933) "As Origens Intelectuais da Revolução Francesa (1715 ? 1787). Para Mornet as idéias Iluministas foram essenciais para a Revolução Francesa, pois somente as causas políticas não poderiam alavancar elementos populares suficientes para determinar a Revolução.

O objetivo deste trabalho será focado com certo privilégio, em detrimento a interpretações que são com certeza relevante, mas não pertinente ao recorte que pretendo abranger, sobre o papel do surgimento da opinião pública na dinâmica da relação entre o povo e as elites, que levaram, segundo Mornet, a formulação e a realidade da Revolução Francesa.

Modestamente, farei um breve mapeamento do percurso historiográfico conforme apresentado nas aulas de História Contemporânea I, ministradas pelo professor Dr. Marcos Menezes e os referenciais apresentados por ele em classe. Farei também uma consideração marginal e breve de autores consagrados como: Robert Darnton (1982), Reinhart Koselleck (1953), Elisabeth Badinter (1983) e Daniel Roche (2004). Porém, esclareço que não haverá nenhuma intenção de percorrer a fundo os desdobramentos por eles abrangidos, utilizando-os, portanto, apenas como indicação de área de contato com o raciocínio principal, que conforme mencionado é a analise feita por Roger Chartier da obra de Daniel Mornet.

Mornet faz uma interessante abordagem mostrando as relações entre a Revolução Francesa e a ilustração, através da qual houve uma "penetração de novas idéias", que foram rapidamente ligadas por ele a idéias iluministas. Mornet divide em três períodos essa penetração de idéias: o primeiro período é o que ele chama de "Les Premiers Conflits" (1715-1747), que foi o período das grandes publicações como L?encyclopédie, e dos grandes conflitos de consciência, logo após o tratado de Ultrech e no contexto da delicada doutrina do equilíbrio entre os estados europeus, quando a Europa tentava buscar um novo conceito de identidade. O segundo período é chamado de "La Lutte Décisive" (1748-1770), este foi o momento da difusão das idéias, de Paris à genericamente chamada "province", o "interior". O terceiro e derradeiro período, foi chamado de "L?exploitation de La victoire" (1771-1787), marcado como o lugar temporal da ação em lugar fundado no debate que marcou os períodos anteriores.

Como metodologia, Mornet, propõe a tentativa de uma "história impessoal" que não se ofusque com o reluzir dos "grandes nomes" e redireciona nosso olhar para os autores menores e para os panfletos, no perscrutamento de "La guerre cachée" (a guerra escondida) envolta pela penumbra da clandestinidade.

É preciso lembrar, porém, que naquela época a autoria não era uma preocupação central e todos liam o que estivesse ao alcance das mãos. Entretanto, é sábio refletir em Daniel Roche que problematiza quem lê o quê, observando que o acesso à leitura é mediado por um acúmulo de privilégios culturais em uma época em que as comunicações visuais e gestuais próprias do campo e que predominaram no curso do Ancien Régime (antigo regime) ainda predominam sobre o homo graphicus em gestação.

Contudo, a realidade é uma população entusiasmada com as potencialidades da boa educação, causando uma grande comoção no sentido de se conseguir material de leitura mesmo que esse houvesse sido objeto de censura. Houve uma onda de contrabando de panfletos anticristãos, irreligiosos e profundamente materialistas, fazendo com que nomes como Voltaire fosse lido não só nos salons dos Philosophes e das Salonniéres, mas também nos cafés e nas praças.

Os panfletos se tornaram populares e de fácil acesso, sendo amplamente lidos até pela classe feminina da época. Elisabeth Badinter fez um estudo onde aponta que por meio de panfletos a irreligião ficou chique entre as mulheres, apesar do veredicto de Rosseau de que "a reivindicação de igualdade pretendida pela mulher em relação ao homem é destituída de sentido", a ambição feminina conduz ao desejo fremente pelo conhecimento, produzindo, entre outros, dois efeitos de interesse para a afirmação de Mornet sobre a natureza destes panfletos. O primeiro caso, Elisabeth Badinter, cita Mme. Du Châtelet que, mesmo sendo proibida de ser atéia, a exemplo de Voltaire, empreendeu "Le examen de La Bible" e seu "espírito exato se insurge contra a incoerência das lendas", conduzido-a, finalmente, à crença de que "tudo é falso nas Escrituras". No segundo caso, Badinter, cita Mme. De Rambouillet, para quem a "conversação é uma arte com regras".

Portanto, se conforme os exemplos colhidos por Badinter, as mulheres dos salons duvidaram da doutrina oficial enquanto praticava o ritual do espartilho, os panfletos revelam a mesma prática em outras camadas estratigráficas desta sociedade, muito abaixo do domínio dos autodenominados philosophes.

Mornet aponta também para o fato de as academias se tornarem, por outro lado, centros de conhecimento e de reflexão que, no contexto das províncias do reino, longe da corte de Paris, negam a produção universitária e se tornam focos da resistência burguesa contra abusos, iniqüidades, misérias materiais e intelectuais.

Essa inconformidade, comunicada não apenas pelos panfletos, mas também pelos periódicos, não constitui em ideal revolucionário, mas era um desejo de reforma, de mudança de um sistema que não atendia a sociedade atual. Assim a disseminação das "novas idéias" passa pelas três leis, mencionadas por Mornet, e encontra espaço fecundo nas sociedades secretas, como a maçonaria.

Neste ponto recorri a uma referencia citada pelo professor Marcos Menezes, apenas para retirar a expressão: "Circularidade entre o alto e o baixo". Esta expressão foi usada por Carlo Guinzburg em "O queijo e os Vermes ? o Cotidiano e as Idéias de Moleiro Perseguido pela Inquisição". Esta expressão reflete o foco das atenções de Mornet em sua obra: abordando a questão da heurística de natureza escrita para chegar ao leitor, a circulação e as práticas de leitura que conduziram à Revolução, e que neste ponto inspira o estudo de Roger Chartier.

Analisando a obra de Mornet, Chartier localiza o seguinte movimento de causalidade como uma questão mal colocada: as novas idéias descendem das hostes burguesas, penetram do centro parisiense à província e, finalmente, encontra a difusão geral (as três leis de Mornet), determinando, assim, a Revolução Francesa.

Depois de localizar o caminho teleológico trilhado, Chartier realiza a crítica aos mitos de origem com o argumento de que a pretensa linearidade/totalidade, conforme levantado por Foucault na tradição de Nietzsche remete a um eixo infinito de causalidades que passa ao largo das rupturas e das descontinuidades, conformando um curso mecânico, linear, contínuo e, por que não, progressivo dos acontecimentos.

Neste ponto acrescento uma critica que nos ajuda a entender este assunto, embasado no pensamento de Marc Bloch:

"A palavra origens (...) é preocupante, pois equivoca (...). Será que (...) por origens entende-se as causa? (...) entre os dois sentidos frequentemente se constitui uma contaminação tão temível que não é em geral muito claramente sentida. Para o vocabulário corrente, as origens são um começo que explica. Pior ainda: que basta para explicar. Ai mora a ambigüidade; ai mora o perigo. Em suma, nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento (...). O provérbio árabe disse antes de nós: ?os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais: por não ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do passado às vezes caiu em descrédito".
(Marc Bloch, 1997)

Apresento também outra dificuldade ligada ao raciocínio de Mornet, conforme a problematização levantada pelo professor Marcos Menezes: "Será que todos de comum acordo aceitaram o Iluminismo como sendo o melhor, sem numa reação contraria, se tornando todos em conjunto, sujeitos apenas receptores?"

Chartier propõe-se a superar esta dificuldade do raciocínio de Mornet, recolocando o problema das origens "intelectuais" para as "culturais", o que permitiria uma compreensão sobre a dinâmica da "sociabilidade" e, desta forma, inverte a chave de inteligibilidade: a ilustração como construto revolucionário visando a sua legitimação.

Roger Chartier faz uma abordagem na analise que Mornet desenvolve sobre o trabalho precedente de Hippolyte Taine, em sua obra: "L?ancien Régime", onde Mornet refuta a idéia de Taine, primeiro porque ele se deixou convencer rápido demais com base em livros muito famosos, os clássicos, não recorrendo aos escritores menores que, segundo Mornet, nos dá uma dimensão mais exata dos acontecimentos. Segundo, porque ele, Taine, colocou um sentimento, "o espírito revolucionário", num contexto em que ele não se encontrava presente, no classicismo Francês.

Contrário a posição de Mornet, Chartier encontra elementos do classicismo que estão presentes no Iluminismo. Um exemplo disso é a presença do trágico tanto no classicismo como no Iluminismo. Assim, segundo Chartier, O Iluminismo encontra suas origens no classicismo, retirando dali idéias que o impulsionaram. Chartier mostra assim que ao descartar as idéias de Taine, Mornet deixou de considerar um fator vital para se entender essa noção de origens.

Indo além, Chartier busca Alexis de Tocqueville, resgatado por François Furet, que também aponta para a ossatura do pensamento ilustrado em pleno classicismo de Luís XIV, com referência especial às academias, que levaria a pó, as próprias bases da Monarquia Absoluta; com o passar dos anos, é claro, mas em um movimento dialético, movimento esse que fora ignorado por Mornet, que não considerou que a eclosão às luzes minaria de fato a matriz Absolutista.

Tocqueville aponta também para uma longa "centralização administrativa" que ocorrera quando toda nobreza se muda para o palácio de Versailles, ocorrendo uma castração da política oposicionista, levando a um desaprendizado da arte de fazer política. A este fenômeno o Professor Marcos Menezes chama de "esvaziamento do poder" e Chartier cita que a partir desta situação era como se o Ancien Régime engendrasse a sua própria negação. Chartier fala então que neste contexto surge uma nova cultura política por oposição, mas em um novo espaço público, separado da autoridade estatal, Independente dos estamentos nobiliárquicos e clericais, e delimitados pelo espaço do povo e da burguesia, que caminhava a passos largos na busca de pensamento político e religioso através do campo da critica, esboçando a possibilidade da sua existência separada do privado, com um individuo que seria apto ao exercício da razão.

Faço aqui uma consideração da obra de Reinhart Koselleck, para quem até essa época, devido à censura, a opinião pública existia somente nos clubes, cafés e salões. Este é o segundo domínio, apartado do Estado: a instância da lei moral dos cidadãos que circunscreve a critica ? semelhante à estratégia maçônica, que tem por escopo a racionalidade como instrumento para a felicidade comum.

O fato é que com a "centralização administrativa", apontada por Tocqueville, gerou-se um individuo com opinião, fora dos clubes, cafés e salões, e agora este individuo de opinião se sentia livre das obrigações para com os príncipes e até mesmo para com o Rei. Cada um agia agora na defesa de seu próprio interesse, daí o culto aos livros, onde se acreditava encontrar o principio da universalidade, através dos escritos e lidos. Este era sem dúvida um posicionamento totalmente contrário a tradição e que compôs a idéia de "República das Letras".

Chartier raciocina que por ter ocorrido uma distinção entre discursos e práticas é possível que pensemos na circulação dos documentos escritos, livros ou panfletos, e é possível também pensarmos na relação entre esses objetos impressos e a formação do público na França. Através da circulação impressa, o conhecimento, que era limitado à Igreja secular e que, necessariamente, emanava do soberano, torna-se relativamente acessível aquele que saiba ler. Assim, o livro fica fisicamente menor, ou mais perto dos populares, e a nobreza e a figura do Rei perdem seu contorno sagrado por meio dos usos criativos da leitura.

A partir desta reinvenção de Mornet por Chartier, achei interessante, fazer um diálogo, conforme sugerido pelo professor Marcos Menezes da obra de Robert Darnton, onde ele retorna a idéia de alto e baixo com a ressalva, central, de que o espaço público se constitui em uma sociedade não aberta ao conhecimento: o mundo burguês não recebe ou estimula o talento, imerso na mentalidade rígida do Ancien Régime.

Darnton mostra que o submundo, os "escreventes e rábulas", e mesmo os letrados de uma "segunda geração" do Iluminismo, atraídos pelo mundo anunciado por Voltaire e seus pares, ao partirem da Província à capital, vêem as portas fechadas; nem todos podem se atribuir a alcunha de Philosophe e participar de "Le monde". Darnton comenta:

"Talvez o mundo literário tenha sempre se dividido hierarquicamente, tendo no vértice um monde de mandains e, na base, a boemia literária (...). Mas as condições sociais e econômicas do Alto Iluminismo cavaram um fosso incomum entre os dois grupos nos últimos vinte e cinco anos do Ancien Régime. Este distanciamento (...) revelará algo sobre uma das questões clássicas propostas pela era pré-revolucionária: qual foi a relação entre o Iluminismo e a Revolução?"
(Robert Darnton, 1987)

Assim, segundo nos mostra Darnton, a "cambulhada de subliteratos", criados nas profundezas do submundo intelectual, ressentida pelo desprezo da "despótica tirania das letras", conduzem a revolução ao plano dos fatos.

Nas considerações finais, posso dizer que este mapeamento historiográfico deu entendimento quanto à natureza da Revolução Francesa, relacionada com o papel essencial desempenhado pela formação da opinião pública. Fica claro também que o desprezo as classes que não figuravam na aristocracia foi fator crucial para que se formasse uma mentalidade onde não haveria também consideração das tradições que mantinha essa aristocracia no poder. Desta derrocada emerge uma nova classe, disposta a trilhar por outros caminhos, com uma cultura própria e revolucionaria.

Referências:

BADINTER, Elisabeth, Émilie, Émilie. A Ambição Feminina no Século XVIII. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra/ Editora Discurso Editorial/ Editora Duna Dueto, 1983, pp. 10-43.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1937, pp. 56-58, 60.

CHARTIER, Roger. Origens Culturais da Revolução Francesa. Tradução George Schlesinger. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

DARNTON, Robert. Boemia Literária e Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 13-45.

GUINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes ? O cotidiano e as Idéias de Moleiro Perseguido Pela Inquisição. São Paulo: Companhia de Letras, 1989, pp. 11-13.

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: Uma Contribuição à Patogênese do Mundo Burguês. Tradução: Luciana Villas-Boas Castelo-Branco, Rio de Janeiro: Editora da UERJ/ Editora Contraponto, 1999, p. 254.

ROCHE, Daniel. O Povo de Paris: Ensaio Sobre a Cultura Popular no Século XVIII. São Paulo: EDUSP, Tradução Antônio de Pádua Danese, 2004. pp. 267-308.