A nostalgia do vale

Por Osorio de Vasconcellos | 10/01/2013 | Crônicas

Resumo: É preciso romper a barreira cultural que restringe a obscenidade ao âmbito do sexo.

A nostalgia do vale

Isto aqui, onde moro,  semelha o traçado de um vale,  assim entendida a planície que se estende à margem esquerda do Rio Ceará, próximo do oceano.   

Funcionava, em passado não muito remoto, como concha acústica para o canto de marrecos e gaivotas, no banquete da embocadura.    

De uns tempos para cá, a concha acústica do vale passou a repercutir sons hostis. Primeiro chagaram os bastardos, depois os obscenos.  

Os bastardos assim os denomino à conta da  degeneração que apresentam em face do volume normal de audiência. De índole anárquica, surgem em resposta a impulsos orgiásticos.     

Os obscenos, ao contrário dos bastardos, que já nascem bastardos, só tomam a forma obscena depois de um  período de metódica degeneração.

Aliás, é o que acontece bem aqui à minha frente na propriedade do vizinho que mora literalmente na praia, entre mim e o rio.

Tudo começou há cerca de quatro meses, num sábado, às onze horas da manhã.  Ao sopro elástico da brisa marinha, por entre as palhas movediças dos  coqueirais, a uma intensidade suficiente para ecoar por todo o vale, os sons do vizinho irrompem em grande estilo, com músicas de Altemar Dutra – Que queres tu de mim... Sentimental eu sou...; Antonio Marcos – A tarde está chorando por você; Dolores Duran – Hoje, eu quero a rosa mais linda que houver ; Nelson Gonçalves – Boemia, aqui me tens de regresso; e tantas outras seresteiras e românticas.

Tirante o aspecto invasivo e descarado das emissões, o vale parece ter acolhido de boa sombra a toada nostálgica do repertório, confirmando talvez aquele refrão que pergunta: quem é que não tem um grande amor, quem é que não chora uma lágrima perdida?  

Seja lá como for, o fato é que o vizinho interpretou a nostalgia do vale como aplauso e incentivo.

A partir daí deflagrou-se o processo degenerativo das canções, a caminho da obscenidade.

As músicas passam a integrar uma grade de programação de tal forma organizada que se repetem sempre, algumas às mesmas horas, como por exemplo “A tarde está chorando por você”, que se dá a ouvir todos os dias no arrebol vespertino.    

Com a repetição exaustiva perde-se o sentido metafórico das canções, como se compositores e intérpretes, esquecidos de suas origens poéticas, resolvessem colocar as suas metáforas a serviço de um mandamento estranho. Ou, se preferirem o tom de diatribe, como se resolvessem vender a alma ao diabo.

Ora, sem metáfora, qualquer coisa, seja lá o que for - o corpo humano, uma refeição, um drink, uma dança, sexo, sedução – reduz-se a uma exposição grosseira de matéria elementar.

Como nos filmes pornô, como nos campos de futebol, quando um jogador desajustado, reduzindo a zero a metaforicidade do sexo, dirige ao público gestos obscenos.

É mais ou menos isto o que o vizinho está fazendo com as canções de seu degenerado repertório.  

Agora cabe perguntar quais os recursos disponíveis para combater as hostilidades e devolver à concha acústica do vale a sonoridade original.   

Bem, quanto aos sons bastardos, tendo em vista sua estreita relação com o consumo de bebidas alcoólicas, ou seja, o seu caráter delituoso e flagrante, não vejo  caminho mais curto que o da ação policial.

Difícil, senão impossível, no entanto,  será romper a barreira cultural que restringe o estigma da obscenidade ao âmbito do sexo.

Não consigo imaginar a polícia prendendo o vizinho por atentado contra a ordem metafórica da vida, fora da qual tudo é obsceno.

A única esperança é o tédio, a fadiga, a desilusão. Isso leva tempo, mas vale a pena esperar.