A Norma Oculta - (o) culta.

Por Geraldo Gerraro Goulart | 13/11/2014 | Resumos

A - Primeira Parte – Síntese da obra estudada

 Primeiras Palavras

  A idéia de escrever “A norma oculta”  surge a partir de uma necessidade e vontade do autor Marcos Bagno de organizar idéias surgidas a partir da produção de dois dos livros: Norma Lingüistica (2001) e Lingüistica da Norma (2002), e também a partia da eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, já que este fato fez ressurgir na mídia, críticas à fala estigmatizada do presidente.

O livro vem com o intuito de ir contra toda e qualquer forma de preconceito lingüistico, mostrando as relações entre língua e poder na sociedade e sua conseqüência, se observada a realidade sociolinguista.

Prólogo: Mídia, preconceito e revolução

Surge um novo “tipo” de preconceito além dos mais falados como raça, cor, sexo e religião. Este novo preconceito se refere ao modo como as pessoas falam. Exemplo disso, são  as críticas feitas, pela mídia, à forma de falar do presidente Lula.

Em seu livro, Marcos Bagno, analisa inteligentemente estas publicações maliciosas, ressaltando as bases infundadas dessas críticas, bem como a total falta de conhecimento lingüistico dos “acusadores”.

A chegada de Lula ao poder, não acaba e muito menos minimiza, o preconceito existente na sociedade, contra àqueles que fazem, segundo a norma padrão, “uso incorreto” da língua. Este preconceito acaba por gerar um outro preconceito que é o social, primeiro, se levar em conta que as pessoas de baixa renda possuem menor grau de escolaridade, menor possibilidade de ascensão social, segundo, por que a língua é o mais completo e sutil controle de coerção social.

Segundo Marcos Bagno, “acusar alguém de não saber falar a sua própria língua materna é tão absurdo quanto acusar essa pessoa de não saber usar corretamente sua visão”. Ele ressalta de forma bastante clara que a língua está implícita em nós, ela não é uma ferramenta da qual fazemos uso, e depois devolvemos à caixa. A língua sozinha (abstrata) não existe, o que existe são seres humanos que falam línguas (concreto). Assim, deve-se levar em conta a realidade histórica, cultural e social em que se encontram os falantes, bem como o caráter dinâmico da língua, antes de se fazer algum julgamento preconceituoso.

Por tudo isso, Marcos Bagno explica com destreza que a norma culta não é sinônimo  de língua, não é homogênea, pronta e acabada, e não é um conjunto de regras de aplicação prática.. portanto, não pode ser imposta aos falantes, a língua sofre mudanças a todo momento e de acordo com a necessidade do falante. Pregar a norma culta como única modalidade correta de fala, é impedir que ocorra atendimentos individuais da língua aos falantes, pois não se pode reduzir a língua à gramática de frases isoladas.

Marcos Bagno considera que a noção de erro é variável e pode ser mais ou menos grave, dependendo do nível social do falante. Se um indivíduo de nível social elevado comete um “erro”, esse “erro” não é tão grave quanto o “erro” cometido por  um indivíduo das classes mais humildes.

Marcos Bagno mostra que a eleição de Lula é um fato lingüistico importante na história do Brasil. É a primeira vez que um cidadão com antecedentes biográficos e sociais desprestigiado alcança um posto, até então, exclusivo a representantes das oligarquias dominantes. Chega ao poder um representante das variedades lingüisticas populares. Porém, Este fato não significa o fim do preconceito lingüistico, para que isso ocorra é preciso uma grande e radical transformação das relações sociais como aconteceu na França com a revolução Francesa.

O Brasil não passou por um processo revolucionário, Lula foi eleito segundo trâmites legais. Além disso, Lula tem incorporando à sua fala, várias expressões consagradas, para conseguir apoio de todas as classes sociais. Para Marcos Bagno, Lula sabe servir-se muito bem da língua utilizando-a de acordo com suas necessidades, fazendo-se portanto, um grande usuário da língua.

A vitória de Lula não significa entretanto, a extinção da norma culta, ao contrário, ela continuará tendo sua importância, sendo a modalidade ensinada nas escolas ainda que seja utilizada somente lá.

Capítulo 1 - Por que “norma”? por que “culta”?

“A norma oculta”, o livro do lingüista Marcos Bagno, chama a atenção logo de início para seu título, onde apresenta dois termos, “Norma”, escrito diretamente, e “Culta”, palavra que pode ser percebida através do vocábulo “oculta”.

Segundo o autor, quando se trata da língua existe uma “duplicidade de noções” contida na palavra “norma”. Buscando este termo em dicionários, encontram-se duas acepções: “Norma é um conjunto de preceitos na seleção do que deve ser usado numa certa língua...” e também, “Norma é tudo o que é de uso corrente numa língua”. Ou seja, é possível classificar esta palavra em relação a dois adjetivos: “Normal” e “Normativo”.

Diante dessa dupla realidade, também a expressão norma culta pode ser entendida a partir de visões diferentes. Podemos ter uma “Norma culta” quando se considera o uso habitual da língua por pessoas classificadas como cultas.  Por outro lado, o conteúdo de gramáticas normativas da língua, que determinam, arbitrariamente, formas corretas de se comunicar numa determinada língua, também revelam  uma Norma culta.

Quanto ao conceito de norma culta enquanto “uso correto da língua”, existem as gramáticas normativas. Essas gramáticas são elaboradas a partir de textos clássicos da literatura portuguesa, de onde os autores dos compêndios gramaticais extraem exemplos do emprego da língua escrita, arbitrariamente. Por quê arbitrariamente? Porque na realidade, os gramáticos extraem das obras literárias somente os exemplos de uso da língua que se adaptem perfeitamente às regras que eles mencionam. Com isso, os gramáticos  criaram um “modelo de língua” que deve ser seguida e idolatrada, por todos aqueles que desejarem ser considerados bons falantes da língua portuguesa.

O termo gramática, originalmente grego, significa a “arte de escrever”. Portanto, pouco tem a ver com a língua falada. Então por que uma norma válida para o código escrito serve de “molde” para avaliar o desempenho do falante, servindo inclusive de motivo para o preconceito social? De fato, quando se determina que a maneira de falar deve ser a clássica, a gramatical, por ser ela a forma correta de uso da língua, o povo e passa a ser visto como inculto, analfabeto e caipira. Isso aos olhos deles, os escritores gramaticais e dos ditos “cultos” em nossa cultura.

A outra noção de “norma culta” se “refere a linguagem empregada pelos cidadãos que pertencem aos segmentos mais favorecidos da nossa população”. Logo, o falante que está fora desse “segmento favorecido social e culturalmente”, acaba estigmatizado pelo preconceito da dita “norma culta”.

Segundo o NURC (Norma Urbana Culta), que documenta e analisa a linguagem usada pelos falantes cultos das grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, entre outras, esses “falantes cultos” são definidos por critérios como escolaridades superior completa e antecedentes biográficos urbanos. Aqui, o termo “norma culta” é meramente técnico e designa “formas lingüisticas que existem na realidade social”.

Mas, de fato existem  as pessoas que usam a expressão norma culta como um pré-conceito, e que tentam encontrar em todas as manifestações lingüisticas, faladas e escritas, esse ideal de língua, esse padrão preestabelecido como uma espécie de lei, que todos teriam a obrigação de conhecer e de respeitar. Como é virtualmente impossível encontrar esse modelo abstrato na realidade da vida social, é obvio concluir que praticamente todas as pessoas “falam errado”. No entanto, apesar dessa inegável realidade, as classes sociais classificadas como cultas, freqüentemente encontram nesse paradigma motivos para estigmatizar a língua falada pelas camadas menos favorecidas da população.

Já aqueles que usam a expressão “norma culta” apenas como um termo técnico, não são preconceituosos. Os estudiosos se baseiam em atividades de pesquisa lingüistica, para confirmar mediante análise, que há termos gramaticalmente corretos, que hoje se encontram em desuso “na língua falada pelos brasileiros, inclusive, na língua falada pelos brasileiros classificados de cultos”. Os exemplos citados pelo autor no livro são:  “o pronome cujo e o futuro simples do indicativo (eu cantarei), este ultimo, permanece apenas na escrita mais formal”

Existe muita ideologia política por traz dessa questão de “norma culta”, que muitas vezes coloca lingüistas e gramáticos em lados opostos de uma discussão que ainda vai durar um bom tempo. Isso, sem chegar em alguma solução consistente, para estudantes professores e todos os demais envolvidos nesta expectativa.

Em meio a essa infindável polêmica, os falantes vivem, sem saber o que fazer em relação às gramáticas, tanto as prescritivas quanto as descritivas. Vale escrever como se fala?; vale falar como se escreve?; a linguagem é fundamento para a língua?; ou a língua é fundamento para a linguagem?

Afinal, o que é a Norma Culta?

NORMA CULTA?

NORMA CULTA?

Prescritiva (normativa)

Descritiva (normal)

Língua prescrita nas gramáticas normativas, inspiradas na literatura “clássica”

Atividade lingüistica dos “falantes cultos”. Com escolaridade superior completa e vivência urbana.

Preconceito (baseia-se em mitos sem fundamentação na realidade da língua viva, inspirados em modelos arcaicos de organização social)

Conceito (termo técnico usado em investigações empíricas sobre a língua, correlacionadas com fatores sociais)

Doutrinaria (compõe-se de enunciados categóricos, dogmáticos, que não admitem contestação)

Científica (baseia-se em hipóteses e teorias que devem ser testadas para, em seguida, ser validadas ou invalidadas)

Pretensamente homogênea

Essencialmente heterogênea

Elitista

Socialmente variável

Presa à escrita literária, separa rigidamente a fala da escrita

Se manifesta tanto na fala quanto na escrita

Venerada como uma verdade eterna e imutável (cultuada)

Sujeita a transformações ao longo do tempo

Segundo Bagno, o correto seria usar as seguintes terminologias e definições:

1 – “Norma culta” – Prescritiva, ligada a tradição gramatical normativa que tenta preservar um modelo de língua ideal inspirado na literatura do passado.

2 – “Norma culta” – segundo os lingüistas, a língua realmente empregada no dia-a-dia pelos falantes de escolaridade superior completa, que nasceram, cresceram e sempre viveram em ambiente urbano.

3 – “Norma popular” – expressão usada tanto pelos tradicionalistas quanto pelos pesquisadores para designar um conjunto de variedades lingüisticas (...)

Capitulo 2 - Um pouco de historia: o fantasma colonial & a mudanca lingüística

A diferença entre a norma-padrão e português brasileiro é surpreendente, pois havia um nivelamento nos dois sentidos quando eram analisadas as “variedades prestigiadas” x “variedades estigmatizadas”. Os cultos achavam que estavam certos, mas n’uma análise cuidadosa, verificam-se varias coincidências entre fala popular e erudita.Um exemplo clássico são as regências dos verbos. Portanto, o preconceito lingüístico no Brasil se exerce em duas direções: Dentro da elite para fora dela e dentro da elite para o redor de si mesma.

Norma padrão brasileira...brasileira?

Até 1822 não haviam dúvidas quanto ao padrão lingüístico a considerar como modelo, pois o Brasil era uma extensão de Portugal. Em 1757, o Marques de Pombal proibiu ensino de qualquer outra língua no Brasil, que não fosse a Portuguesa. Esta proibição intencionava atingir a prática dos padres jesuítas que utilizavam língua geral amazônica. O português só se tornou língua majoritária de nosso povo depois de um longo processo de repressão, incluindo extermínio físico de falantes de outras línguas.

Com a independência, nossa minúscula elite passa a se divertir com a “língua brasileira”. Mas o nosso mais ilustre escritor romântico Jose de Alencar diz que nossa língua é tão brasileira quanto o índio que ele retrata nos seus romances: de espírito nobre e puro.

Passados quase dois séculos de independência política, a sociedade conserva uma estrutura colonial anterior a 1822. Com todas as mudanças políticas até 1984, vimos que três características da sociedade brasileira não mudaram: autoritarismo, oligarquismo e elitismo. O abismo entre a pequena elite e a imensa maioria do povo permanece até hoje e causam efeitos sobre definição da norma-padrão brasileira. Até hoje a ABL (Academia Brasileira de Letras) sai em “defesa” da língua (norma-padrão), como se os brasileiros não tivessem direito de falar sua língua materna da maneira que melhor lhe parece.

Neste século XX a defesa da língua permanecerá estrita às esferas dos intelectuais, sem influencia na vida dos cidadãos comuns e o reduzido acesso à escola pública, explica por que não houve propagação e conhecimento da “norma culta”. Temos elevados índices de analfabetismo e baixa escolaridade formal. Comprar livros e ler é extremamente restrito. Somente pelos anos de 1800 foi criada a primeira faculdade no Brasil e teve início a industria gráfica (300 anos de atraso em relação ao Peru). Somente em 1970 começa uma pesquisa cientifica lingüística no Brasil. Aí chega a internet, televisão, que começam a influenciar no modo de falar e escrever de nosso povo, mas mesmo assim nosso ensino continua dividido: escola publica para camadas desprestigiadas da população e escola particular para os de melhor renda, com grandes diferenças da qualidade de ensino. Nos dias de hoje, o poder econômico exerce uma influencia gigantesca na população, carente de cultura, mas bombardeada pelo marketing da industria.

 Toda língua muda

 Através de exemplos de poemas do século XII e a carta de caminha de 1500, verificamos que a língua portuguesa mudou através dos tempos. Esta mudança acontece naturalmente, influenciada pela moda, pelas necessidades sociais, etc. É importante perceber que a língua mudou no passado e este processo não parou. Enquanto houver gente falando uma língua, essa língua vai sofrer mudanças.

As forças que impulsionam a língua no rumo da mudança são forças centrifugas: levam os elementos da língua a se afastarem de suas formações atuais. E as forças centrípetas, puxam a língua para o centro, ou seja, tentam conter este impulso de mudança. São forças exercidas pelas instituições sociais, onde a escola é o sistema mais importante e a escrita é um elemento fundamental, cheia de normas, regras, oficialização, normatização, etc.

A mudança lingüística é inevitável, gostando ou não. No nosso português podemos encontrar traços inovadores e conservadores. Um exemplo é o léxico das variedades estigmatizadas na zona rural, que conservam termos vindos de formas arcaicas da língua. Por outro lado, na fonologia, as variedades estigmatizadas se mostram inovadoras: a pronuncia “paia” para que se escreve “palha” e outros como, pêxe, chêro, bêjo, etc.

O que se deve evitar é dividir na realidade do português brasileiro, as variedades prestigiadas e as estigmatizadas, pois elas se complementam, se influenciam. O que vai caracterizar uma variedade lingüística é o grau de freqüência de determinadas regras que o povo chama de errado. Estes fenômenos podem ser divididos em dois tipos: traços descontinuados e traços graduais. Os descontinuados aparecem nas camadas mais estigmatizadas e deixam de aparecer quanto mais subimos na escala social. Os graduais ocorrem ao longo do tempo e maior ou menor freqüência. Traços descontínuos podem ser encontrados no léxico: despois, antonce, treição, etc.

Para desatar este nó, é necessário que as investigações lingüísticas ultrapassem a esfera acadêmica. Cabe, portanto ao lingüista assumir um papel político, formando uma comunidade cientifica especializada. Enquanto os lingüistas não tomarem para si esta tarefa, vamos continuar convivendo com os falsos especialistas que se apoderam do meio de comunicação para irem em defesa do padrão lingüístico tradicional.

 Capítulo 3 - Por uma gramática do português brasileiro

 As pessoas têm dúvidas na hora de escrever um texto mais monitorado. Quando as dúvidas acontecem, geralmente elas recorrem a gramáticas normativas, que são inadequadas. A verdade é que as gramáticas normativas se tratam de obras prescritivas. Em vez de deduzir as regras de utilização da língua a partir de seu uso, os gramáticos colhem, na obra dos grandes ficcionistas, aquelas opções lingüísticas que eles, já de antemão, consideram boas, aquelas em que supostamente  não se detecta nenhuma interferência da língua falada. São, portanto, obras confeccionadas sem nenhum rigor científico. Fica evidente que os gramáticos não deduzem nem depreendem da grande literatura as regras de funcionamento da língua, eles simplesmente buscam pelo menos um exemplo que possa justificar a imposição da doutrina prescritivista que, ao fim, é o grande objetivo da gramática normativa. A própria forma de instrumentalização das citações pode levar o leitor a crer que aqueles escritores só escreveram de acordo com a tradição gramatical, o que não é verdade.

Na gramática normativa se confunde valor estético com performance lingüística. Machado de Assis, considerado por muitos como o maior escritor brasileiro de todos os tempos, costuma ser o mais citado em gramáticas e considerado o ideal máximo de correção da língua. Na realidade, o objetivo maior do escritor não é transformar-se numa régua para medir os usos lingüísticos, mas, sim, construir obras de arte que lhe permitam dar vazão à sua necessidade de expressão, a seu desejo de comunicação, à sua ânsia de criação.

Muitas obras gramaticais trazem observações sobre fenômenos que indicam mudanças na norma padrão e que já caracterizam o português brasileiro escrito menos monitorado. No entanto, essas observações quase sempre aparecem de forma tímida, em notas de rodapé, sem que o gramático aplique a elas o adjetivo recomendável. É preciso escancarar o português brasileiro: dizer que as regras gramaticais do nosso vernáculo são certas e válidas, de modo claro e explícito, e não com observações em letras pequenas ou em “pés-de-página”. O uso do pronome ele como objeto direto é um ótimo exemplo. Tanto na literatura, quanto na imprensa, quanto na fala este recurso é amplamente utilizado. No entanto, as obras de caráter tradicional fazem referências ao uso do pronome ele como objeto direto como uma expressão que “deve ser evitada”, ou que é atribuído “a pessoas incultas ou cultas descuidadas”. Ora, por que tal uso deve ser evitado? A única razão para isso é o apego obsessivo a um ideal de língua que se justifica por si mesmo, pelo simples fato de ser ideal.

A gramática deveria levar em consideração os avanços obtidos pela investigação lingüística. É preciso produzir, dois tipos de gramáticas: uma gramática descritiva, descrevendo as múltiplas variedades específicas do português brasileiro: urbana, rural, do Norte, do Sul, etc. A outra gramática seria uma obra de referência, que sirva de material prático de consulta para as pessoas quando tiverem dúvidas na hora de escrever textos mais monitorados. Gramáticas que mostrem que, ao lado da opção padronizada tradicional, existem outras opções, igualmente válidas, e que caberá ao falante fazer sua própria escolha.

Em 2002, foi publicado nos Estados Unidos uma obra de mais de 620 páginas intitulada Modern Portuguese: a Reference Grammar, de Mário A. Perini. A obra é dirigida especificamente a falantes de língua inglesa interessados em estudar o português brasileiro. Para cumprir seu objetivo, Perini enfatiza as regras mais usuais das variedades dos falantes urbanos escolarizados. Seu objetivo é evitar que o aprendiz de português brasileiro acabe falando como um livro.

Essa mesma visão é transmitida aos estudantes brasileiros, através do ensino tradicionalista, que se apóia nas descrições inconsistentes das gramáticas normativas. Isso gera o problema da insegurança lingüística tão presente entre os brasileiros – “que não sabe português”.

Embora haja aspectos criticáveis no trabalho de Perini, como a separação rígida entre “língua falada” e “língua escrita”, ele representa um avanço considerável nas tentativas de descrição da nossa língua.

Muita gente acredita, sem razão, que os lingüistas querem abolir as regras padronizadas, que não é mais preciso corrigir os textos escritos dos alunos, que ninguém mais vai precisar se importar com a ortografia. Essas idéias, que incentivam duras críticas aos lingüistas na mídia (que chegam a ser chamados de defensores do vale tudo), não correspondem à realidade.

É preciso entender que a norma culta não deriva de nada intrínseco ao português. O certo ou errado deriva apenas de uma contingência social. A classe de prestígio dita a escolha de uma variedade lingüística dentre as que estão à disposição dos falantes. Ao escolher uma, essa classe condena as outras variedades.

Um ensino de língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece o direito que têm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.

Se cabe à escola ensinar as formas lingüísticas padronizadas, isso não deve ser visto nem como uma tarefa única do ensino, nem como um instrumento para a adequação, é necessário empreender um ensino crítico da norma-padrão, escancarar sua origem “elitista e coercitiva”, e mostrar que a necessidade de dominá-la se prende à necessidade de que os alunos oriundos das camadas sociais desfavorecidas possam dispor dos mesmos instrumentos de luta dos alunos provindos das camadas privilegiadas.

A necessidade de ensinar a norma-padrão na escola se prende também ao fato muito evidente de que as regras gramaticais padronizadas só podem em sua maioria, ser aprendidas na escola, porque elas só sobrevivem hoje na língua escrita mais monitorada. Como a prática da leitura inexiste nos meios familiares da maioria da nossa população, é na escola que ela deverá ser praticada.

A norma-padrão é um elemento importante da nossa cultura e não pode ser desprezada. Essas normas estão restritas à língua escrita mais monitorada, é verdade, mas também é verdade que são justamente os gêneros textuais escritos mais monitorados os que gozam de maior prestígio social. Estruturas da língua escrita mais monitoradas só podem ser apreendidas e aprendidas se a pessoa tiver contato com elas, e este contato se faz por meio da leitura e da escrita. Por isso, não adianta entupir a cabeça das pessoas com regras, exceções, nomenclaturas e definições. Não é assim que alguém vai aprender a ler e a escrever. Isso não é “ensinar português”, é simplesmente decorar a gramática normativa. Só se aprende a ler e a escrever, lendo e escrevendo. A idéia de que a boa leitura e a boa produção de textos depende do conhecimento pormenorizado da gramática normativa é uma falácia que precisa ser combatida. O próprio surgimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em  1998, representa um avanço importante nessa direção.

 Epílogo: Norma [o]culta, a gramática não-escrita

 O título deste livro se refere ao jogo ideológico que está por trás da defesa de um conjunto padronizado de regras lingüísticas. Essa defesa se faz apoiada no mito de que o conhecimento da “norma culta” é garantia suficiente para a inserção do indivíduo na categoria dos que podem falar. Mas a restrição imposta ao acesso dos falantes das variedades estigmatizadas ao sistema educacional já garante que essa “ascensão social”  não acontecerá.

A discriminação explícita contra os que “não sabe português” é simplesmente a face visível de um mecanismo de exclusão que atua num nível bem mais sutil e insidioso.

Essa discriminação não dita ou implícita é que configura a norma oculta, o disfarce lingüístico de uma discriminação que é, na realidade, social, e o domínio das regras padronizadas não vai garantir que um indivíduo deixe de ser discriminado por outros critérios de avaliação.

B - Segunda Parte – Análise/Comentários sobre a obra

Deixando de lado as questões políticas que permeiam essa discussão sobre “certo e errado”, essa discussão entre lingüistas e gramáticos, além de cultural, contextual e educacional é sem dúvida política e institucional. Acaba sendo uma “busca por poder” e tem muito chão ainda para ser caminhado antes que se chegue a uma solução, se é que há algum interesse em chegar.

Mudanças acontecem, algumas vezes, depois de muita discussão. Existem, de fato, propósitos embutidos nessas discussões. A maioria desses propósitos, senão todos, são válidos e em benefício do “falante da língua portuguesa brasileira”. Mas é inegável que em todas as discussões sociais, em todas as lutas sociais, sempre existem “certos interesses” que não são de tudo, coletivos, e sim pessoais ou restrito a minorias.

O autor, acertadamente, declara que “o prestígio ou estigma das variedades lingüísticas tem muito a ver com o prestigio social. E que esse prestigio ou estigma, ocorre tanto de um patamar para outro, quanto dentro de um mesmo patamar”.

Resumindo, quanto maior prestigio social tiver o indivíduo, menor será a possibilidade de seu “erro” ficar em evidencia. Quanto menor prestigio social tiver o indivíduo, maior será possibilidade de seu “erro” ficar em evidencia.

Sobre o autor: Marcos Bagno

Professor do Depto. De Lingüística  da Universidade de Brasília, Doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo, tradutor, escritor com duas dezenas de títulos publicados, entre literatura e obras técnico-didáticas.

Exerce ampla atividade de divulgação cientifica por meio de palestras, oficinas e minicursos.

Obras de destaque.

 A Língua de Eulália: novela sociolinguistica (Contexto,1997), Pesquisa na escola: o que é, como se faz (Loyola,1998), Preconceito Lingüistico (Loyola, 1999), Dramática da Língua Portuguesa; tradição gramatical, mídia & exclusão social (Loyola, 2000) e Português ou Brasileiro? Um convite à pesquisa (Parábola, 2001).

Organizou e traduziu A norma lingüistica (Loyola, 2001).

 

 

 

 

Geraldo Goulart