A MORTE VISTA POR OLHOS DESATENTOS
Por Lucas Simão Tobias Vieira | 31/01/2011 | CrônicasA MORTE VISTA POR OLHOS DESATENTOS
03h15min AM: Com os olhos cheios de lágrimas Maria Madalena apertou a campainha. Estava quase desistindo após ter dado o terceiro toque e esperado sentada na sarjeta da calçada. Já havia virado as costas quando ouviu o tilintar das portas se abrindo. Respirou aliviada.
Ao vê-la naquela situação já sabia o que havia se passado. A MORTE HAVIA VISITADO MAIS UMA CASA. Ela - mulher tagarela - não disse sequer uma palavra por cerca de quinze minutos. Apenas fez um delicado movimento ao perceber que o ombro em que se debruçava estava encharcado. Simplesmente virou, mudou de ombro e continuou chorando. Olhou em meus olhos buscando uma palavra que afagasse sua dor.
Falar o quê? Dizer o quê?
Dizer que sentia muito? Ela sabia disso.
Dizer que ele tinha sido uma pessoa boa, que deixou um bom perfume? Isso ela também conhecia.
Dizer que um dia se reencontrariam? A fé nem sempre se apresenta como um argumento plausível, por que é suscetível a crença de seu interlocutor.
Poderia lançar mão de uma daquelas frases previsíveis que sempre escutei em todos os velórios e me questionei o quanto seriam verdadeiras: "meus pêsames" "ele está melhor agora" "ele parece estar dormindo". Optei por ficar em silencio.
Finalmente criei coragem, ou poderia dizer, finalmente fui covarde. Sussurrei em seu ouvido dizendo que ela ficaria bem, que aquela dor que esquadrinhava o seu peito iria passar. Sabia que estava mentindo. Sabia que aquela dor era eterna. Uma vez enlutado, para sempre enlutado.
Na melhor das hipóteses ela conseguiria esquecer por certos momentos. Ficaria dias ou quem sabe meses sem se lembrar de João Jesus. Então se confrontaria com um cheiro, uma música, uma comida, um lugar, uma paisagem, um rosto desconhecido com feições semelhantes e que a faria lembrar-se daquele que um dia foi para Madalena seu herói indestrutível.
No palco dos acontecimentos sabia que aquilo não era uma mentira, apenas cumpri o que ela esperava de mim. Ela quase implorou para que eu dissesse aquilo.
Disse uma mentira da maneira mais espontânea possível para que soasse como verdade. Deturpei um pouco mais em meus já devassados princípios no intento de ajudá-la. Engraçado como as pessoas às vezes nos suplicam para que mintamos.
Gostaria que meus olhos me obedecessem e derramassem algumas lágrimas. Pareceria mais humano. Pareceria que eu realmente me importava. Desejei ter o talento das velhas carpideiras.
04h15min AM: Maria Madalena pegou uma muda de roupas e ajudou a trocar o pai. Não se conteve na hora de calçar as meias pretas de cetim e entrou em nova crise de choro. Lavou com as próprias lágrimas os pés de João Jesus.
Colocou o terno de linho fino que João Jesus tinha comprado há dois meses especialmente para comemorar o nascimento de seu primeiro neto. Foi ao hospital, visitou Samuel e pendurou a fina beca no guarda roupas. Na história do bonito terno de linho fino havia apenas dois capítulos: o nascimento e a morte. Genesis e Apocalipse resumiriam perfeitamente a história de uma roupa que foi comprada para saudar a vida, mas que teve sua grande proeminência com a entrada triunfal da MORTE.
07h00min AM: Finalmente chegou o corpo. O funcionário da funerária, um sujeito alto e obeso, de nome Pilatos, segurava uma das alças do caixão com uma mão, enquanto que com a outra devorava um grande sanduiche de presunto. Ironicamente de presunto. A morte não mais o assustava, pelo contrário, a cada notícia de óbito ele esboçava um leve sorriso.
Como matadores de aluguel, coveiros, fabricantes de caixões, vendedores de flores a porta do cemitério em dia de finados ele felicitava pela morte para que o negócio continuasse lucrativo. Para Pilatos era a garantia de que sua empresa continuaria viva.
08h00min AM: Chegaram as primeiras pessoas e com elas seis coroas de flores, ele realmente era querido. ERA UM VELÓRIO COMO OUTRO QUALQUER. Vieram os curiosos, os vizinhos, o pessoal do trabalho, os membros da igreja. Também vieram os piadistas, velório sem a turma da piada não é velório.
09h00min AM: Pedro Judas se debruçou em cima do caixão do pai. Fazia cinco anos que não se falavam. Havia negado por três vezes o pedido de visitas feito por João Jesus. Estranho pensar que só pensou na morte no momento em que ela visitou a sua casa. Acreditou que as tragédias sempre ocorreriam em outras famílias. Apostou erradamente que sempre haveria tempo para se desculpar, para dizer "me perdoe, você é especial para mim, eu te amo".
Na porta do velório o TEMPO e a MORTE riam da desgraça de Pedro Judas. Gargalhavam na companhia da turma da piada e do sujeito da funerária que carregava o presunto nas mãos. Lamentou o momento de sua concepção, blasfemou contra os deuses pelo seu tão doloroso opróbrio.
11h00min AM: Ana chegou ao velório. Pelo modo escandaloso com que chorava julgaram-na que estava alcoolizada. Dizia ter trabalhado na carpintaria com João Jesus. Tive a impressão de que ela era quem derramava as lágrimas mais sinceras. Mais sinceras até que as próprias lágrimas de Maria Madalena. Disseram que era o efeito do vinho. O pessoal da piada aproveitou a deixa para lançar um novo gracejo.
14h00min PM: Com direito a carreata de doze carros o caixão do bondoso homem seguiu rumo ao cemitério da Saudade localizado na rua do Calvário. Reparei um detalhe que me chamou a atenção: a corda utilizada para abaixar o caixão de João Jesus era a mesma utilizada para abaixar os caixões dos ricos empresários da cidade. Talvez a MORTE e somente ela, tem esse poder, equiparar por alguns segundos ? precisamente os 12 segundos que são gastos para abaixar o caixão até a cova ? os famigerados dos endinheirados.
A vida seguiu após a morte de João Jesus. Maria Madalena com a sua dor. Pedro Judas com o seu remorso. Ana com seu choro incompreendido. O pessoal da piada com um repertório ainda mais engraçado. Dizem que Pilatos agora acompanha seus clientes mais de perto, visita com um sorriso maroto a UTI do hospital da cidade.