A morte social em pacientes do sexo masculino com câncer de cabeça e pescoço: um estudo de caso
Por Jaciane Pasolini | 31/03/2011 | SociedadeA morte social em pacientes do sexo masculino com câncer de cabeça e pescoço: um estudo de caso
Jaciane Pasolini
Profª. Ms. Sandra Maria Zanello de Aguiar**
Profº. Dr. José Ronaldo Mendonça Fassheber***
Este texto é o resultado do desenvolvimento de Trabalho de Conclusão de Curso ? TCC apresentado ao Curso de Serviço Social do Setor de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Centro-Oeste ? UNICENTRO em 2009, como requisito parcial para obtenção do Grau de Bacharel em Serviço Social.
** Professora orientadora, docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste ? Unicentro em Guarapuava ? PR, a quem agradeço pelas observações e comentários realizados na versão deste artigo.
*** Professor coorientador, docente do Departamento de Educação Física da Unicentro.
Dados da autora
Nome: Jaciane Pasolini
Qualificação: Assistente Social
Endereço: Av. Francisco Perondi, 610 Bairro: Centro, Flor da Serra do Sul/PR/ Brasil, CEP: 85618-000 Email: jacianepasolini@bol.com.br fone res: (46) 3565-1155 cel: (46) 8412- 4224
RESUMO
Este estudo lança a hipótese de que "a morte social pode ser evitada desde que os procedimentos fundamentados em ações humanizadoras permitam promover rupturas com a estrutura hospitalar, que se firma no tratamento ao paciente". Ao ser internado, o paciente não carrega com ele só a patologia, mas traz consigo suas crenças, teorias, histórias e vivências. Como podemos proceder com os pacientes neste estágio de vida enquanto a estrutura hospitalar não os vê e consideram como ser social, identificando-o, absolutamente, como apenas mais um paciente?
Palavras-chave: Câncer; morte social; cotidiano.
ABSTRACT
This survey shows the possibility that "the social death could have been avoid whether procedures established through human actions that allow to organize nosocominal framework breakages, wich ones have been based under medical attendance for patient". When the patient has been hospitalized, he doesn?t bring just the pathology himself, but brings his beliefs, values, theories, stories, and knowledges. How may we to proceed with patients in this life?s stage while nosocomical framework doesn?t consider them such as social person, and unconditionally identifying themselves as well as patient only?
Main words: cancer; social death; daily.
INTRODUÇÃO
O câncer, figura entre as principais causas que podem levar a morte na atualidade, ele traz consigo efeitos profundos no bem estar social e psíquico do doente, assim como no cotidiano de sua família.
A Organização Pan-Americana de Saúde ? OPAS esclarece que o câncer se tornou a mais devastadora doença no mundo, com mais de 10 milhões de novos casos a cada ano. No Brasil, as estimativas para o ano de 2010, segundo dados publicados pelo INCA , válidas também para o ano de 2011, apontam para a ocorrência de 489.270 novos casos de câncer. Os tipos mais incidentes, à exceção do câncer de pele do tipo não melanoma, serão os cânceres de próstata e de pulmão no sexo masculino e os cânceres de mama e do colo do útero no sexo feminino, acompanhando o mesmo perfil da magnitude observada para a América Latina.
Estes índices denunciam o crescimento da doença, seja pela fragilidade que ela apresenta, seja pela fragilidade de um sistema público de saúde preventiva ainda parcial na sua efetividade, que além de abster-se de um número significativo de postos de atendimento e de pessoal especializado, anula como essência a consideração do fenômeno da morte social, parte integrante do tratamento.
Quando o paciente precisa de internamento hospitalar, isso é motivo de grande apreensão e sofrimento, pois exige um afastamento de tudo aquilo que lhe é familiar e conhecido. O internamento assim como a doença lhe traz vivências de isolamento, abandono e rompimento de laços afetivos, sociais, profissionais entre outros, o que acarreta na perda de seus referenciais gerando a morte social. Helman
(1994, p. 205) nos explica que, "enquanto a morte biológica representa o fim do organismo humano, a "morte social" é o fim da identidade social do indivíduo, ou seja, o afastamento do indivíduo das relações sociais em geral".
Focados no fenômeno da "morte social" e por compreendermos tratar-se de elemento constitutivo do tratamento, este trabalho teve como objetivo contribuir no processo de tratamento do paciente oncológico para que ele pudesse enfrentar a doença e, ao mesmo tempo suprir as suas necessidades humanas nos seus aspectos físico, psicológico, espiritual e social.
Para cumprirmos com o objetivo deste trabalho, optamos pelo método de estudo de caso, tomado como unidade significativa do todo, em uma perspectiva qualitativa que no entendimento de Minayo (2004, p. 102), privilegia mais o aprofundamento e abrangência da compreensão e menos a generalização desta. Prossegue seu pensamento afirmando que uma "amostra ideal é aquela capaz de refletir a totalidade nas suas múltiplas dimensões (Minayo, 2004, p. 102).
Na pesquisa de campo a delimitação dos sujeitos incidiu na escolha de dois pacientes do sexo masculino portadores de câncer de cabeça e pescoço, sendo que apenas um deles encontrava-se em tratamento no Hospital de Caridade São Vicente de Paulo ? HCSVP, em Guarapuava, e o outro sob cuidados de hospitais em Curitiba e São Paulo, sendo que o mesmo teve os primeiros cuidados no HCSVP. Ambos demonstraram interesse em relatar o cotidiano de suas vidas.
O Instituto de Tratamento do Câncer - ITC relata ser este o tipo mais comum de câncer em homens que em mulheres (3:1). Apresenta-se por grau de incidência em 5º lugar em homens, e em 7º lugar em mulheres. Na instituição pesquisada as observações sobre este tipo de câncer fizeram-se aleatoriamente em razão de inexistirem informações registradas estatisticamente. O tempo foi um dos motivos de a pesquisadora não ter executado esta tarefa.
A coleta dos relatos comunicados pelos pacientes se deu por meio de entrevista gravada em áudio e editada. Seguiu um roteiro de perguntas abertas e fechadas previamente construído e testado, com o objetivo de deixar espaço para informações espontâneas e não pensadas no momento da elaboração das mesmas. Antes da aplicação do roteiro foi apresentado aos sujeitos um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ? TCLE, para que os mesmos tivessem pleno conhecimento acerca das finalidades do estudo. Para que o sigilo de identidade fosse mantido, os entrevistados foram identificados com letras iniciais de seus nomes, idade e ano de realização da entrevista. Por serem as entrevistas gravadas, optou-se por transcrevê-las na íntegra. No entanto devido ao pedido de um dos participantes, uma das entrevistas foi transcrita e apresentada ao mesmo para possíveis correções, ao que o próprio retirou algumas falas acrescentando outras.
Após a primeira entrevista ambos foram convidados para assistir o filme "Antes de Partir" , e em seguida recolher impressões mais aprofundadas e representativas a respeito das decisões a serem tomadas futuramente.
Com base em imagens fundadas, em um primeiro momento, no senso comum, para em outros momentos superá-lo à construção do real, acreditamos ser possível a partir da arte, pois, "[?] na medida em que uma obra de arte o faz vibrar, na medida em que se reconhece nela [...] agora ele compartilha com alguém as suas emoções, por vezes pouco claras que se lhe oferecem como sinal de outrem; julgando descobrir nelas o segredo do artista, ao mesmo tempo descobre o seu" (Huyghe, 1965, p. 12).
A estrutura deste estudo configurou-se em entender o ser social, levando em consideração as várias determinidades que o fazem desenvolver-se e tornar-se um ser com capacidades para transformar o meio em que vive. Procuramos compreender as representações construídas no cotidiano dos pacientes, os significados que a doença traz juntamente com as reações dos mesmos ao perceberem as mudanças no próprio corpo. Apresentaram-se relatos dos envolvidos e o seu entendimento sobre a doença, os estigmas, as sequelas que a doença acarreta além das mudanças que ocorrem na vida dos indivíduos a partir do diagnóstico positivo da doença.
O SER SOCIAL: UM COMPLEXO EM PERMANENTE MUTAÇÃO
O ser humano é tão diversificado e complexo que as ciências ? antropologia, psicologia, sociologia, anatomia, fisiologia, biologia e outros ramos de saber ? por mais que o estudem e pesquisem não explicam a totalidade de seus aspectos.
As atividades desenvolvidas pelo homem, mesmo as que, à primeira vista apresentam-se simples, carregam em si um crescente processo de complexos. No decorrer dos anos, as tarefas rotineiras vão acumulando em si detalhes e informações enriquecendo e transformando a sua prática. Nesse processo algumas características vão dando lugar a outras e assim sucessivamente.
No processo de sociabilidade, o homem vai se construindo como indivíduo e formalizando a sua história. Ao colocar em movimento as suas capacidades e ao sociabilizar os seus conhecimentos, ele se autodetermina como ser social. Além da transformação operada pelo homem enquanto indivíduo ativo e dotado de pensamento, a sua estrutura física também se constitui como ponto de partida e centro de conhecimentos.
O homem é um ser que supre suas necessidades por meio do trabalho. Dotado de percepção, ele pode planejar a sua ação, idealizá-la em seu pensamento antes de concretizá-la. A esse movimento Lukács in Lessa, (1997, p. 24) chama de prévia-ideação, e explica que, "pela prévia-ideação, as consequências da ação são antevistas na consciência, de tal maneira que o resultado é idealizado (ou seja, projetado na consciência) antes que seja construída na prática". Ao realizar esse exercício de pensar primeiro (abstrato) e agir depois (concreto) o homem consegue, ainda segundo Lukács, transformar o mundo onde está inserido segundo finalidades socialmente postas.
Por se relacionar com outros indivíduos o homem desenvolve a qualidade de sociável. É nesse espaço que suas necessidades são recriadas, ele transforma a si mesmo, influi na transformação do outro e do meio. Barroco diz que,
Uma necessidade primária, como a fome, torna-se social na medida em que suas formas de satisfação são determinadas socialmente e em que, ao serem criadas formas diferenciadas de satisfação, transformam-se os sentidos, habilidades e potencialidades do sujeito. (BARROCO, 2001, p. 27).
Ao ser humano, também, é inerente a necessidade de diversão, distração e satisfação de si mesmo. Procurando a diversão, ao homem implica a alegria, a satisfação e a liberdade. No jogo ou na arte o indivíduo se completa, busca dentro de si, aquilo que existe de mais diverso,
Ao visualizar-se em uma obra de arte, ao identificar-se com as cores, com os sons, com os personagens o indivíduo consegue "soltar-se", exprimir os seus sentimentos de forma mais concreta . Dos poderes da imagem, Huyghe (1965, p. 14) explica que, "a saída avistada não é só a possibilidade oferecida à alma de se exteriorizar, como é também a possibilidade de conquistar, na própria expressão, uma ordenação organizadora".
Em sua complexidade, o ser social apresenta-se de certa forma frágil, incluindo em sua vida a necessidade da confiança em um ser superior. Isto se constata nas palavras de H. L. F.,
Deus faz um plano. Você faz um plano, Deus faz outro. Não adianta você questioná, né? Tudo é por Deus, né? A fé ajuda. Ajuda, muito, muito, muito, muito... a aceitá. Eu aceito tudo que é oração, tudo que é religião, tudo é bem vindo, tá? Católico, evangélico, pra mim é bem vindo. (H. L. F., 55 anos, 2009).
De acordo com Heller, "a fé e a confiança distinguem-se entre si", ela explica que, "a fé nasce da particularidade individual, cujas necessidades satisfazem" e quanto à confiança,
Diferentemente da fé, enraíza-se no indivíduo. [...]. Quando confio num homem ou numa coisa, sou eu, quem confio; sou eu quem me ofereço no que se refere à confiança, tanto como no caso da fé. As necessidades desse "Eu" que se oferece ou entrega não se dirigem apenas a si mesmo; nesse caso, sua teleologia vai além de sua própria particularidade [...]. Toda confiança se apóia no saber. [...]. A fé está em contradição com o saber, ou seja, resiste sem abalos ? como vimos ? ao pensamento e à experiência que a controlam. (HELLER, 2008, p. 69-70).
Também, nesse sentido, pela proximidade continuada com outras pessoas, o homem vai estreitando vínculos, dividindo vivências auxiliando-o na sua própria construção, ao passo que também vai construindo o outro. H. L. F. (55 anos: 2009) testemunhou, "eu acho que um amigo, o amigo verdadeiro... Ele só vai-te ajudá fortalece, te dá uma palavra boa, né? Uma palavra de sustento, de animação, né? [...]. U.A.Z. (2009: 78 anos) quanto aos amigos diz que, "eu ainda sou procurado. "Às vezes vem gente, os amigos e tal, eu atendo, dou a minha opinião".
Pensar a doença é compreender parte da condição humana. É procurar entender a complexidade embutida nas vivências de cada ser, mesmo que elas ligadas à doença venham impregnadas de sensações diferentes das habitualmente vivenciadas. Todavia, não é tarefa fácil interpretar essas representações e seus significados.
A ideia da doença está ligada às percepções que o indivíduo tem a respeito do seu corpo, e que lhe fogem ao entendimento. Dessa maneira a doença pode ser, segundo Helman (1994, p. 104), "a resposta subjetiva do paciente e de todos os que o cercam, ao seu mal estar [...] a definição de doença não inclui somente a experiência pessoal do problema de saúde, mas também o significado que o indivíduo confere a mesma".
Da mesma maneira com que se aprende a notar as diferenças entre um corpo jovem e um corpo idoso, um corpo cansado e um corpo vibrante, também se aprende a organizar e conceituar as mudanças que ocorrem no corpo e no seu funcionamento. A forma de comportar-se, por exemplo, é responsável por comunicar informações sobre sentimentos e atitudes. Perceber no outro a sua condição, assim como uma autopercepção. Uma mudança de comportamento por menor que seja já demonstra sinais de que algo está diferente.
Ao sentir estranhamento quanto às reações de seu corpo, o indivíduo procura repassar suas sensações ou desconfortos para outras pessoas, geralmente as mais próximas de seu convívio, tal como seus familiares, vizinhos ou amigos. Procura deste modo aproximar a experiência pela qual está passando com as experiências já vividas pelos outros indivíduos, que por sua vez já ouviram falar sobre tais sintomas ou situação semelhante.
Para tanto, a expectativa que o indivíduo tem, é de que alguém lhe diga algo que possa explicar as novas sensações que ele está sentindo no momento. Segundo Langdon,
A doença como processo não é um momento único nem uma categoria fixa, mas uma sequência de eventos, que tem dois objetivos vivenciados pelos atores, um entende o sofrimento no sentido de organizar a experiência vivida e outro a possibilidade de aliviar o sofrimento. (LANGDON, 1995, p.13).
Desse modo, em um primeiro momento o processo de tratamento é iniciado na sua própria rede social, onde as pessoas próximas tendem a "receitar" para o indivíduo. Essa opção pode se efetivar, já que neste estágio o indivíduo conta com vantagens tais como a proximidade, o afeto e as relações de seus familiares, e amigos que se identificam com ele, e conhecem o seu estilo de vida. A questão está em que a rede de convivência reage à nova situação de forma a identificar sintomas no outro, não levando em conta os "ais" do paciente, mas sim, tentando identificar-se na situação do outro.
Não encontrando resultados nessas abordagens, o paciente então parte em busca de outros recursos tais como, curandeiros, vendedores de ervas, pastores, entre outros, que tratam do indivíduo de forma integral, investigando até os seus relacionamentos, além do estado espiritual e físico, tratando-o num contexto biopsicossocial. A vantagem dessa alternativa é que o paciente e a família são envolvidos no diagnóstico e no processo de tratamento.
O processo da doença é também motivo de influência nas relações sociais, culturais e econômicas do indivíduo. U.A.Z. (78 anos, 2009) referindo-se ao sentimento quanto a sua doença diz que,
E o pior de tudo que eu vejo, é que nós como médicos sabemos de todas as complicações e por incrível que pareça, raciocinamos sempre pelo mais grave. Então, a gente nunca está realmente tranquilo. [...] não é fácil, mesmo como médico, passando por tudo o que se passa. (U. A Z. 78 anos, 2009).
Quando o indivíduo sente que algo não está bem, logo lhe vem à memória que se essa sensação for levada a sério, e que se o seu pressentimento se confirmar e ele identificar que precisa de cuidados especializados logo terá complicações maiores.
A doença cria a ansiedade e o medo. [...] Ela é a quebra da harmonia orgânica e, muitas vezes, transcende a pessoa do doente, interferindo na vida familiar e comunitária. Ela se apresenta como uma ameaça ao equilíbrio social e por isso o homem luta contra ela. [...] A sociedade estimula pessoas sadias e produtivas. Assumir o papel de doente é sair da engrenagem social, segregar-se, parar de produzir, exigir cuidados especiais, onerar um orçamento familiar afastar-se das atividades usuais e distanciar-se da família e dos amigos. (RESENDE, 1989, p. 97).
Assim, na maioria dos casos, somente com a impossibilidade de encontrar por conta própria a solução para o seu problema, o doente é estimulado e/ou cria coragem para procurar assistência profissional. U. A. Z. (78 anos, 2009), conta que,
Eu já desconfiava, a lesão apareceu, era uma lesão que você primeiramente fazia um curativo, quando eu vi que não cicatrizava realmente eu já pensei: deve ser uma neoplasia de pele, e não deu outra coisa. Um colega fez a biopsia, mas a gente sempre raciocina ? ah, isso não é nada! ? tanto que a primeira cirurgia eu fiz em Curitiba com uma colega, mas na hora de fazer a cirurgia nós já fizemos a anátomo-patologia e não dava margem. (U.A.Z. 78 anos, 2009).
Segundo o que diz Martinelli (2006, p. 14), "uma pessoa pode ter trabalhada durante muitos anos, porém ao deixar o mercado começa a repor uma categoria de não trabalhador, todos os seus direitos se esvaem, abala-se toda uma vida pessoal e familiar arduamente construída". U.A.Z. (78 anos, 2009), diz que, "eu senti muito pelo fato de parar de trabalhar, [...] agora, sem dúvida nenhuma, o que mais me marcou foi eu precisar parar de trabalhar".
Antes de procurar ajuda especializada, ou de se reportar a um profissional com conhecimentos específicos na área de saúde, neste caso o médico, com competência para tratá-lo de forma a encontrar a origem da sua patologia, o indivíduo percorre um caminho por vezes longo, ao qual nos referimos anteriormente. Porém, o movimento que o sujeito faz de recorrer aos seus próximos com a finalidade de encontrar a solução de sua problemática não é um fato que acontece acidentalmente.
O modo de agir em relação a si próprio é fruto de fatores que influenciaram na sua vida cotidiana, fatores estes que não foram construídos por ele mesmo, mas que já estavam dados quando da sua existência como "ser" pertencente a determinado grupo ou sociedade. Heller (2008, p. 115) comparece afirmando que "mesmo a vida mais elementar seria inimaginável sem imitação [...] o homem é capaz de imitar não apenas movimentos e funções isolados, mas também inteiros modos de conduta e de ação".
Os indivíduos agem por reflexos e instintos. O homem adquire no decorrer de seu desenvolvimento como sujeito a capacidade de realizar as suas atividades rotineiras de forma mecânica e instintiva. Aranha (1993, p. 07) por sua vez comunica rotinas construídas no cotidiano do indivíduo: "veste-se, come-se, pensa-se, não como cada um gostaria de se vestir, comer ou pensar, mas como a maioria o faz".
Pode-se dizer, então, que o indivíduo já nasce em circunstâncias précondicionadas. Circunstâncias estas que já estariam postas a sua condição e à sociedade na qual ele está inserido. Porém, não sendo o homem um ser passivo, mas um ser singular dotado de especificidades e criatividade, mesmo no processo de imitação dos movimentos da sociedade a qual pertence, o homem vai por intermédio de sua atividade imprimindo significados, sentidos e singularidades que lhe são próprios, ou seja, mesmo que ele tenha uma base social maior, ele se construirá com individualidade inconfundível. Marx & Engels dizem que,
A história nada mais é do que a sucessão de diferentes gerações, cada uma das quais explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; ou seja, de um lado prossegue em condições completamente diferentes a atividade precedente, enquanto, de outro lado, modifica as circunstâncias anteriores através de uma atividade totalmente diversa. (MARX & ENGELS, 1991, p. 70).
O modo de produção capitalista tem sua dose de influência no cotidiano das pessoas quando, na busca por rentabilidade a qualquer custo, utiliza-se de técnicas publicitárias que seduzem as pessoas a consumir produtos que transformam a vida cotidiana em princípio de exploração, controlando-a e programando-a para tal. H. L. F. (55 anos, 2009), conta de sua trajetória, "a vida inteira... era só trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, na hora de desfruta, não desfruta, na verdade... Você morre trabalhando, né?".
Na vida cotidiana, o homem atua sobre a base da probabilidade, da possibilidade, entre suas atividades e as consequências delas existe uma relação objetiva da possibilidade. Jamais é possível, na vida cotidiana, calcular com segurança científica a consequência possível de uma ação. (HELLER, 30, p.1992).
Sendo a vida cotidiana a vida de todos os dias, que se realiza mais mecânica do que conscientemente, é nela mesma que o homem vai se descobrindo, nas vivências, na prática de cada dia, nas emoções e nos hábitos.
Você se planeja, se enche de sonho, né? Daqui a tal ano me aposento, vô descansa. Eu descansei dois ano, dois ano eu consegui descansa, dois, né? Mas de um ano pra cá, não tenho mais sussego, né? Mas eu consegui descansa um ano, né? Aproveita um poquinho da minha vida. Muito poco né? Eu acho que eu merecia mais, né? Pelo quanto eu trabalhei, né? (H.L.F. 55 anos, 2009).
Quando o homem rompe com essa rotina substituindo tais hábitos rotineiros e consegue elevar-se a partir de sua estrutura, está rompendo com a cotidianidade. Esse rompimento dificilmente ocorre do nada. São as vivências acumuladas no dia a dia, as dificuldades passadas, ou no caso as enfermidades, que, de certa forma desestruturam a rotina e a vida até então tida como normal do indivíduo. Essas situações levam o indivíduo repensar as suas atitudes, a sua condição e tudo o mais que dava sentido a sua vida.
A DOENÇA E O INDIVÍDUO: O CÂNCER DE CABEÇA E PESCOÇO
Dentre os vários tipos de câncer existentes, o câncer de cabeça e pescoço apresenta na sociedade (como as demais variações da doença) um processo de estigma. Para Goffman, (2004, p. 07) o estigma é: "em primeiro lugar, as abominações do corpo ? as várias deformidades físicas".
Na sociedade atual, convivemos com a exaltação exacerbada do belo, onde as medidas "perfeitas" do corpo são muito valorizadas. Embora esse conceito seja histórico , cada época imprime o seu padrão de beleza próprio. Os padrões criados principalmente, pela mídia como um conceito de beleza revelam, fortemente, a necessidade de valorizar num rosto perfeito, os sorrisos largos, os dentes brancos, as formas e as medidas harmoniosas como marco de beleza, já traçado como um ideal a ser seguido. Logo, as pessoas que não se encaixam nessas medidas são consideradas fora dos padrões estéticos e consequentemente estigmatizadas.
O câncer é motivo de procedimentos médicos cirúrgicos que prejudicam a imagem do sujeito, chegando a fazê-lo perder a forma original, e muitas vezes levando-o a uma espécie de mutilação, ficando irreconhecível em seu formato facial. Em virtude dessa mutilação facial na maioria das vezes exposta, por serem cabeça e pescoço lugares difíceis de disfarçar ou encobrir, há um estranhamento que parte tanto do doente quanto daqueles que o vêem em relação à deformidade adquirida. U.A.Z.(78 anos, 2009), demonstra de certa maneira questionamentos de pessoas próximas ou não, advindas do estranhamento causado pela diversidade posta pela e na sociedade, dizendo, "então o meu nariz hoje em dia é parte do meu antebraço e ainda, "e outra, a primeira coisa: o que foi? Foi acidente? "Isso é horrível", referindo-se as pessoas que ao perceberem a deformidade em seu rosto o questionam sobre.
No caso das pessoas portadoras de uma doença degenerativa como é o câncer de cabeça e pescoço que corrói as estruturas do corpo humano, o estigma é ainda maior. U. A. Z. (78 anos, 2009), fala sobre a doença e a cirurgia a que precisou se submeter,
Ficam sequelas. [...] meu olho não fecha totalmente ! E fiquei também como o que se chama lagoftalmo, porque foi seccionado o meu canal lacrimal, então meus olhos ficam sempre lacrimejando, e ectrópio é porque o meu olho não fecha direito. (U. A. Z. 78 anos, 2009).
U. A. Z. (78 anos, 2009), fala sobre o início da sua patologia e as possíveis causas para o câncer que desenvolveu dizendo que,
Eu comecei com o início de uma lesão em 1997 no dorso do meu nariz. Foi feita uma biópsia que revelou tratar-se de um carcinoma basocelular esclerodermiforme , é um tipo de tumor que aparece quando a gente se descuida e toma muito sol. É o que nós precisamos acreditar que nós temos que usar o protetor. Isso é indiscutível, isso tem que usar. Eu acho que me descuidei, além do mais eu tenho um fator de risco, eu tenho pele clara e olho azul. Pessoas de pele clara e olhos azuis tem mais predisposição ao câncer de pele. Por isso, deve usar o protetor solar, cotidianamente mesmo em dias bruscos. (U. A. Z. 78 anos, 2009).
O Instituto Nacional de Câncer (INCA) confirma esta afirmação:
A maioria dos cânceres de pele é devido à exposição excessiva ao sol. A Sociedade Americana de Câncer estimou que em 2007, mais de um milhão de casos de basocelulares e células escamosas, e cerca de 60 mil casos de melanoma estariam associados à radiação UV (ultravioleta). Em geral, para o melanoma, um maior risco inclui história pessoal ou familiar de melanoma. Outros fatores de risco para todos os tipos de câncer de pele incluem sensibilidade da pele ao sol, história de exposição solar excessiva, doenças imuno supressoras e exposição ocupacional. (INCA, 2008).
Consequência de tratamentos a base de medicamentos altamente agressivos às células do corpo humano, como as quimioterapias e as radioterapias, a perda dos cabelos e pêlos do corpo é um dos sintomas que transformam o visual do indivíduo. U.A.Z. (78 anos, 2009) mostra como se processa a sensação: "lacrimejando, isso mesmo, isso é incomodativo, realmente você fica constrangido", referindo-se às sequelas das cirurgias realizadas em sua face. H.L.F. (55 anos, 2009) relata este fato ao retirar pequeno maço de cabelos numa demonstração do resultado do processo de tratamento, "a dose muito forte, fez me cozinhá a boca e a garganta, tô com a garganta seca [...] com 14 dias péla tudo, a cada banho sai bolas...". E ainda sobre o tratamento quimioterápico anterior, esclarece que, "solta tudo, solta. É muito forte. Perdi, perdi tudo, pelô pelado pelado", referindo-se à perda total dos cabelos e pêlos do corpo. U. A. Z. (78 anos, 2009) anos, diz que,
Esse meu caso não dá metástase, mas ele é altamente invasivo. Do meu nariz ele foi para o meu globo ocular. O último exame que eu fiz não tem nada, e outra eu me submeti a um tipo de radioterapia muito atual, tanto que nem tinha em Curitiba. Esse é outro problema, eu fiquei trinta dias em São Paulo, fazendo todo dia aplicações IMRT, um tipo de irradiação muito controlada. (U. A. Z. 78 anos, 2009).
A Revista Prática Hospitalar, em um artigo referente às novas técnicas de radioterapia, explica que IMRT significa,
Nos anos 90 começou a ser desenvolvido o IMRT (radioterapia de intensidade modulada do feixe), um degrau maior com programas de computador estudando profundamente a distribuição de dose, com grande controle na efetivação do tratamento realizado, possibilitando o colimador do acelerador linear mover-se durante a irradiação. Tal tecnologia reduziu drasticamente os efeitos colaterais, como por exemplo, a retite actínica (no câncer de próstata) e a perda de função da glândula parótida (nos cânceres de cabeça e pescoço). [...] O IMRT necessita de grande controle de qualidade, com um planejamento que leva pelo menos três vezes mais tempo de dedicação da equipe. (REVISTA PRÁTICA HOSPITALAR, 2009).
No entanto, nem todos os tipos de radioterapias são iguais. Alguns procedimentos não são controlados, são mais invasivos e causam queimaduras tanto externas como internas nos órgão do paciente. H. L. F. (55 anos, 2009) conta que, "agora eu vim de lá ? de Curitiba ? com a pele sensível, eu vim com a garganta queimada por dentro e por fora, como ta até agora, oh! [...] foi muito forte. Tinha que ser uma bem menor, bem menor, tá!". E ainda sobre a carga recebida, "mas quando eu recebi, eu já vi, a carga foi muito forte. [...] porque isso te agride você sente, não precisa ninguém te explicar, você sente né?".
Quando a doença se manifesta no rosto e/ou no pescoço chegando a afetar a região da garganta o sujeito acaba, principalmente em estágio terminal, ficando privado da alimentação habitual. A medicina então, se ocupa de procedimentos como a alimentação por sonda nasoenteral, responsável por levar o alimento através de pequenos tubos instalados em uma das narinas até o sistema digestivo do indivíduo, substituindo assim a função da garganta, elo entre a boca e o aparelho responsável pela digestão. Acontece que, essa alimentação não é suficiente para que o indivíduo se mantenha com os mesmos níveis de massa corpórea e energia anterior. H.L.F. (55 anos: 2009) relata sobre a condição de seu peso dizendo que, "antes, nunca tinha perdido tanto assim, [...]" e sobre a alimentação,
Ajuda, ela ajuda, ajuda só que eu tinha que chegar lá na alimentação mais forte, [...] Pois eu... Aparentemente to bem, sabe? Eu tô é fraco, só falta me recuperá da fraqueza, né? Porque ela é lenta, né? Através dessa nutrição ela é muito lenta, né? (H.L.F. 55 anos: 2009).
Dessa forma, o indivíduo precisa conviver com o fato de não poder saborear os alimentos ao qual estava habituado. Helman (1994, p. 56) diz que, "um lanche servido de forma privada não é um alimento social, mas os ingredientes de uma refeição familiar ou de um banquete religioso normalmente o são". O indivíduo passa então a não mais fazer parte deste momento de socialização, ele sente os cheiros, observa as texturas e cores dos alimentos, mas não pode prová-los, sentir o gosto, pois fica incapaz de engolir, mesmo os alimentos em estado líquido. Helman explica melhor a função social dos alimentos quando diz que,
Os diversos exemplos de alimentos sociais ilustram as múltiplas funções que o alimento desempenha na sociedade humana, a saber: criar e sustentar relações sociais, indicar status social, profissão e papéis de gênero, assinalar mudanças de vida importantes, aniversários e festas, além de reafirmar identidades religiosas étnicas e regionais. (HELMAN, 1994, p. 56).
A falta de alimentação adequada para manter as funções do organismo em dia faz com que o indivíduo necessite de ajuda em tarefas simples, já que não consegue manter os níveis de energia que o corpo precisa para as atividades rotineiras. H. L. F. (55 anos, 2009), deixa bem claro em sua fala,
Você tem que depende de tudo, né? Depende da esposa, do irmão, né? Né? Você fica lá em baixo, você precisa de auxilio de tudo, né? É pra i no banheiro, é pra i toma banho, né? Então acho que você era independente,... sem auxílio de nada, né? Mas isso também supera, né. (H. L. F. 55 anos: 2009).
Não bastassem todas essas dificuldades, o indivíduo ainda precisa passar pelas sensações da dor física. A dor é subjetiva, cada pessoa pode senti-la e expressá-la a seu modo, de acordo com as suas experiências. Podemos perceber quando uma pessoa está com dor a partir de seus gestos, expressões faciais, mudanças de comportamento, de exclamações, gemidos até a opção da automedicação ou pedido para que sejam aumentadas as doses de medicamento .
Helman diz que,
A dor é um "dado privado", isto é, para sabermos se uma pessoa tem dor dependemos de uma demonstração verbal ou não-verbal, por parte da pessoa, a respeito deste fato. Quando isto acontece, a experiência e percepção privadas da dor tornam-se um acontecimento público e social; a dor privada transforma-se em dor pública. (HELMAN, 1994, p. 166).
É preciso lembrar que a dor não se limita apenas à física, na maioria das vezes o paciente, assim como os que lhe são próximos, passa pelo estágio da dor emocional, aquela dor que vai além da dor física, mas que se traduz em sofrimentos. Elias, diz que,
As pessoas nessa situação têm uma necessidade especial de outras pessoas. Sinais de que os laços ainda não foram cortados, de que aqueles que estão deixando o círculo humano, ainda, são valorizados dentro dele, são especialmente importantes, dado que agora estão fracos e talvez não passem de uma sombra do que foram. (ELIAS 2001, p. 96).
A família nesse sentido, pode ser o alicerce em quem o indivíduo fragilizado se apóia, recebendo proteção, carinho, segurança e a satisfação das necessidades básicas. A importância da família, dos amigos e do convívio social para uma pessoa com câncer é primordial. U.A.Z (78 anos, 2009), relata: "recebi um apoio extraordinário, me telefonavam, e isso é muito bom", e, "sem dúvida nenhuma, isso eleva teu astral. Eu tive apoio de todos, todos, todos".
Quando se pensa que nada mais se pode fazer, em relação ao problema em questão nota-se que, ficar calado e ouvir o que o paciente tem a dizer, já é uma grande contribuição, considerando a situação em que ele se encontra. A escuta nessas horas, seja de amigos, profissionais ou familiares é de grande importância para o paciente. A dinâmica de exteriorizar os seus sentimentos, medos e dúvidas é uma forma de dividir a dor presente.
O PACIENTE COM CÂNCER E O PROCESSO DE INTERNAMENTO
Quando o indivíduo procura a unidade hospitalar a fim de encontrar ajuda especializada para o diagnóstico de seu problema, e o médico para reconhecer os sintomas realiza uma bateria de exames, que irão concretizar o seu pensamento a respeito da sua patologia, isso é motivo de apreensão por parte do sujeito que teme pelo resultado. A espera por esse resultado deixa o paciente temeroso pelo que há de vir. Ele, então, cria fantasias que podem ser tanto positivas quanto negativas sobre o que pode ou não estar acontecendo em sua estrutura física. Ao receber o diagnóstico da doença e, no caso das suas suspeitas se confirmarem, o paciente se vê diante de uma situação da qual nunca pensou que um dia precisasse enfrentar. O indivíduo então entra em crise. Com o conhecimento de que está com câncer, ocorre uma oscilação em todos os aspectos da sua vida. Assim como na vida de sua família e na das pessoas que lhe são próximas. Nogueira explica a crise como,
Uma idéia associada quase sempre a uma situação-limite, na qual explicitar-se-ia num quadro de particular gravidade e se revelariam como diriam os médicos, as chances de recuperação do paciente.[...] uma crise sempre destrói e desorganiza: caracteriza-se precisamente por modificar o peso relativo das coisas, tirá-las do lugar ou do fluxo rotineiro, alterar seu sentido, dispô-la de um outro modo. Numa fase de crise, são suspensos ou postos em xeque os conceitos e idéias com que interpretamos o mundo. Tendemos a nos angustiar porque nos sentimos ameaçados em nossos próprios fundamentos, naquilo que dominamos e conhecemos que nos sustenta. (NOGUEIRA, 2001, p. 14).
O desgaste físico e emocional é grande. O corpo e a mente não estão separados, mas caminham no sentido de complementação. Um, não pode existir sem a presença do outro. Apesar do internamento hospitalar preocupar-se com uma questão importante que é cuidar para que se restabeleça a saúde do indivíduo, é preciso também levar em conta as sensações do sujeito. H. L. F. (55 anos: 2009) em relação à permanência na unidade hospitalar diz que "o hospital na verdade, ele é estressante, né? Só o fato de você perder a liberdade, tchau, né? Pode vê a criança, o idoso, qualquer pessoa, tirô a liberdade dele..." Langdon esclarece que,
O que o corpo sente não é separado do significado da sensação, isto é, a experiência corporal só pode ser entendida como uma realidade subjetiva onde o corpo, a percepção dele e os significados se unem numa experiência única que vai além dos limites do corpo em si. [...] a divisão cartesiana entre o corpo e a mente não é um modelo satisfatório para entender os processos psicofisiológicos de saúde e doença. (LANGDON,1995, p. 17)
O fato de se estar com pessoas com as quais convivemos e que são de confiança, pessoas conhecidas com certo grau de intimidade, que participam da vida do indivíduo fazem com que o paciente se sinta melhor. Estando próximo de suas "coisas", das suas conquistas, dos seus pertences, e de tudo aquilo que lhe é familiar, com o qual ele está habituado a conviver, a sensação é outra,
Na casa é diferente. Na casa é bem melhor [...] não existe. Volta e meia chega uma pessoa, chega outra e vai saindo. [...] aqui eu tenho toda a liberdade, lá (no hospital) eu não tinha liberdade nenhuma né? ... né? Lá chego o horário, o remédio faça efeito ou não faça, você vai recebe, tem soro, tem injeção, tem soro, tem injeção, né? Não querem nem sabe né? E tem que cumpri com a prescrição do médico, né?. (H. L. F. 55 anos: 2009).
Outra coisa também, eu sou rotariano, [...] tenho 52 anos de Rotary, cheguei aqui em 1957, entrei e não sai mais, toda quarta-feira nos reunimos e isso é muito bom. [...] esse convívio social não pode deixar, a hora que você deixar você cai nessa miserável depressão. (U. A. Z. 2009, 78 anos)
O indivíduo vai além da matéria, ele é dotado de sentimentos, emoções, valores e crenças diversificadas. Se o corpo sofre, em consequência todas as esferas da vida do sujeito sofrem juntas. O indivíduo com uma doença grave torna-se então, fragilizado, tanto na dimensão física quanto na psíquica, sentindo necessidade de atenção especial. Helman (1994, p. 107) nos diz que, "o processo de adoecer envolve, experiências subjetivas de mudanças físicas ou emocionais".
O paciente com câncer sofre as mudanças corporais que a doença traz, sofre com o tratamento, com os medicamentos que não deixam de ser substâncias estranhas ao seu corpo e ainda precisa conciliar a mudança de ambiente com pessoas desconhecidas ao seu convívio e à idéia de que a doença pode ser causa de morte. H. L. F. (55 anos: 2009) ao analisar a sua situação diz que, "não adianta, você tem que ser realista, né? Né? Não adianta você querê fazê de conta que não tá sabendo, que não tá vendo, né? Isso não existe".
O câncer já foi uma doença considerada inevitavelmente fatal, mas, com os avanços da medicina, pode-se dizer que, ao ser diagnosticado precocemente e tomadas às medidas imediatas de intervenção, existem, como em qualquer outra doença, possibilidades de cura, a Sociedade Brasileira de Cancerologia afirma que,
Quanto mais cedo diagnosticar-se o câncer, maior a chance de cura e menores as sequelas do tratamento. A boca (incluindo-se o lábio) por ser de fácil exame, tanto pelos profissionais da saúde quanto pela própria pessoa (a procura de lesões que podem vir a se transformar em câncer, como as manchas vermelhas e brancas persistentes e as ulcerações superficiais), e também a laringe (chama a atenção pela rouquidão persistente que o tumor da prega vocal provoca), propiciam maiores chances de ter uma lesão pré-maligna ou já maligna em fase inicial diagnosticados precocemente. (SBC, 2009)
No entanto, essa ideia de fatalidade da doença fez com que as pessoas nem sequer pronunciassem a palavra câncer. Essa ideia subsiste ainda hoje, quando as pessoas não têm acesso adequado às informações. Do contrário, se a pessoa tiver algum grau de conhecimento ou convivência com a doença, ela pode encarar de modo natural, vale dizer que, não sem sofrimento. A notícia de que se está com tal enfermidade soa com menor grau de estranhamento,
Eu tenho câncer. Não me assustei. Eu estava preparado, eu trabalhei 18 anos em hospital. Encarei como se fosse uma gripe. Foi o que me reforço. Em tudo que é parte que eu fui eu encarei sem medo, sozinho, sem medo, tuda vida eu enfrentei, ai me encorajô porque eu vi de tudo, né? Em 18 anos eu vi de tudo, ali você vê nasce, você vê morre. A pessoa ta bom, ta morto, o morto ressuscita. É, é por ai, sabe? Pela valia do ser humano as veis, você erra muito, né? O que tava melhor lá no otro canto, sai morto. Não tem lógica. (H.L.F. 55 anos: 2009).
No imaginário coletivo está presente o medo da morte, do sofrimento, do desfiguramento e da dor. Esses medos, além de causar sofrimento psíquico que também se estendem aos familiares, amigos e colegas, muitas vezes levam o indivíduo a adiar a procura por diagnóstico, o que irá dificultar o tratamento e por consequência o processo de cura da doença . O sofrimento emocional pode prejudicar o diagnóstico quando a pessoa demora a procurar ajuda, assim como a adesão aos tratamentos, resultando em estresse que prejudica o funcionamento do sistema imunológico.
O Instituto Oncológico do Paraná (IOP), define o câncer como:
Com o tempo, as células envelhecem e necessitam ser substituídas, através de um processo chamado de divisão celular e que irá gerar novas células. Algumas vezes, entretanto, este processo não ocorre de forma ordenada, originando células novas doentes, que deveriam ser substituídas, mas isso nem sempre ocorre. Ao contrário, surge um acúmulo de células anormais, que denominam-se tumores. (IOP, 2009).
Estudos demonstram que, os hábitos de fumar e ingerir bebidas alcoólicas, são alguns dos principais motivos que levam ao desenvolvimento de câncer de cabeça e de pescoço, e que evitá-los é uma forma de prevenção "Outros fatores são: o Papiloma vírus humano, a predisposição genética, o hábito alimentar, o trauma crônico, a ingestão do mate e a exposição ocupacional dentre outros" (SBC, 2009).
Após tratamentos cirúrgicos ou de quimioterapia e radioterapia os pacientes tratados devem permanecer em rotina de acompanhamento, para detectar possíveis reincidências da doença, U.A.Z (78 anos, 2009) relata que, "eu tenho que estar sempre atento. A última tomografia computadorizada que eu fiz foi em 2008. Agora eu vou ter que repetir", e ainda, "fiz recentemente uma retinografia, pra ver se a minha retina não esta comprometida, uma vez que essa lesão é próxima da minha órbita", referindo-se ao acompanhamento médico recebido após as cirurgias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os indivíduos que fizeram parte deste estudo são de classes sociais distintas, por isso em alguns momentos embora passando por situações semelhantes, diferenciam-se em suas reflexões e consequentes depoimentos. Pudemos perceber que a construção de conceitos e do espaço vivido se dá de forma diferenciada de acordo com as determinações econômicas e das relações sociais. Construções individuais e condições materiais objetivas determinadas pelo cotidiano dos sujeitos são determinantes na maneira de encarar os fatos e acontecimentos que ocorrem em dado momento da vida de ambos.
U.A.Z. (78 anos), tem informações a respeito de sua condição e da patologia desenvolvida por ser médico. Dessa forma procurou ajuda especializada em curto espaço de tempo assim que percebeu que não estava dando conta do seu problema garantindo os seus 78 anos de existência. Já, H.L.F. (55 anos) retêm para si poucas informações a respeito da doença e apesar de conviver com situações diversas e por vezes semelhantes a que ele estava passando, acumulou para si somente informações de senso comum, não procurando ajuda especializada para o incômodo inicial com o qual vinha convivendo ao longo de doze anos, o que o levou a óbito em curto espaço de tempo, levando em consideração a sua idade.
Buscamos conhecer a realidade em que cada sujeito estava inserido, para então procurar entender as percepções e sensações de ambos acerca de suas patologias, com o intuito de identificar os principais agravantes que contribuem para o afastamento social dos mesmos, bem como da construção de consciência crítica a respeito da doença e do processo interrompido das relações sociais em geral, especialmente o afastamento total das atividades profissionais.
Constatou-se que a relação de afeto entre indivíduos e familiares bem como de pessoas próximas é primordial para o indivíduo que, em certo momento da vida encontra-se diante da notícia de que desenvolveu uma doença como o câncer.
Percebeu-se também que um dos maiores sentimentos de perda estava ligado ao campo de trabalho. Ao serem afastados de suas atividades profissionais, foi como se parte deles fosse subtraída, ou seja, a própria identidade pessoal construída ao longo da vida se concretizou sobre as atividades laborais. Esta percepção deixa bem clara a importância do trabalho como forma de satisfação e fundamentação dos indivíduos como seres sociais.
A morte física é a lembrança da derrota da condição humana. Trata-se do medo de romper com a teia afetiva e de relações, de deixar para traz tudo aquilo que se tem e que foi construído, além da solidão e do sofrimento. A morte não é um assunto discutido abertamente e com o qual se deseje conviver. O pensamento sobre tal ideia já vem carregado de constrangimento e temor. Talvez seja por isso que, na atual conjuntura mobilizam-se contra ela todos os recursos possíveis de maneira a não ver e nem pensar muito a respeito.
O modo como tratamos os moribundos, os velórios e funerais, as "armas" com que lutamos contra o envelhecimento e recorremos ao congelamento de corpos na esperança da ressurreição são sinais visíveis que não estamos preparados para aceitar este fato a que todos estão destinados queiramos ou não. Neste sentido podem-se entender algumas nuances da morte social.
Estar próximo a um indivíduo doente remete a lembrança de que isso poderá levá-lo a morte física. Compartilhar dos sentimentos e temores junto com ele, nem sempre é fácil, já que ao dividir esses temores aflora no indivíduo cuidador, o temor pelo que há de acontecer com o seu semelhante e também a ele próprio. Desse modo em algumas situações cresce o distanciamento entre familiares ? geralmente são eles os cuidadores ? e pacientes, bem como entre profissionais e pacientes.
Para que isso não se efetive existe a necessidade de que entrem em ação as equipes multiprofissionais. Profissionais capacitados na área de saúde, que sejam capazes de dar conta do contexto.
O Ministério da Saúde, em 1994 iniciou as Unidades de Saúde da Família, que são equipes de saúde trabalhando de forma descentralizada, nas cidades e bairros com o objetivo de realizar o atendimento de forma continuada às especialidades básicas, com equipes multiprofissionais , habilitadas para desenvolver a promoção, a proteção e recuperação da saúde. Essas equipes precisam estar ativas, de forma a ir até a casa das pessoas, aproximarem-se de seu cotidiano, observar as suas realidades e dificuldades, orientando-as para as ações de saúde em geral, englobando ações, inclusive na área econômica e do meio ambiente, por serem estes fatores que influenciam na saúde dos indivíduos, além de promover programas de consultas periódicas e campanhas para rastreamento de doenças crônico-degenerativas. Sob esta ótica faz-se necessária a presença do assistente social nas Unidades de Saúde da Família, lugar onde ele terá a possibilidade de estar o mais próximo possível das demandas. Atuante, o profissional precisa ter no seu projeto ético-político o compromisso de sua prática social centrada nas demandas e necessidades sociais dos indivíduos, sejam elas simples ou complexas, interpretando-as na linguagem e no contexto em que estes a expressam. A liberdade como possibilidade de escolhas concretas, dentre elas a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos sujeitos sociais para a construção de uma nova sociedade.
O trabalho em rede com outras unidades de referência da assistência social e da saúde, como os Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Programa de Saúde Mental (PROSAM), dentre outros viabilizam a operacionalidade do projeto ético-político profissional pelas mediações produzidas por meio das práticas sociais, identificando para conhecer os cotidianos dos usuários ? seres sociais ? em um plano ontológico de relações.
A preocupação com ações preventivas e de promoção da saúde devem estar presentes no cotidiano dos profissionais da rede, agindo no sentido de melhoria no estilo de vida das pessoas, acolhendo as situações de forma a esclarecer, orientar e fazer os devidos encaminhamentos.
Para que isso se efetive será necessário que o profissional de serviço social tenha habilidades para ouvir e dialogar. Através da escuta especializada em decifrar relatos e depoimentos como elementos constitutivos para investigar, analisando e interpretando as informações para em seguida, subsidiar a equipe multiprofissional, de maneira que se discuta no grupo o melhor caminho para a intervenção.
É importante que se reconheça no indivíduo não apenas as suas funções motoras e biológicas ou simplesmente tratá-lo numericamente. É preciso ir além. Para isso cabe ao assistente social descobrir a riqueza de detalhes que perpassa os indivíduos, suas histórias, seus valores e subjetividades, levando em consideração as múltiplas formas de expressão apresentadas por ele.
Para a prevenção na área da saúde, é necessário também que se trabalhe, no sentido de desenvolver nos indivíduos a capacidade de perceber em seu próprio corpo as mudanças pelo qual ele está passando, para que assim se tomem as medidas devidas e em tempo, antes que o quadro geral se agrave já não sendo possível um tratamento eficaz em curto prazo e sem sequelas.
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