A MINIMIZAÇÃO DA CRIMINALIDADE ATRAVÉS DA DESCONSTRUÇÃO DO CONCEITO SOCIAL MANIQUEÍSTA

Por Catarina Santos Bogéa e Jailson Martins Filho | 28/02/2017 | Direito

A MINIMIZAÇÃO DA CRIMINALIDADE ATRAVÉS DA DESCONSTRUÇÃO DO CONCEITO SOCIAL MANIQUEÍSTA[1]

 

Catarina Santos Bogéa[2]

Jailson Martins Filho [3]

 

Sumário: 1 Introdução; 2 A construção do conceito social maniqueísta; 2.1 O poder da mídia na legitimação do poder social maniqueísta; 2.2 O sistema punitivo baseado no princípio maniqueísta; 3 Desconstrução do conceito social maniqueísta; 4Princípios do Direito Penal Mínimo para minimização da Criminalidade; 5 Conclusão; Bibliografia.

 

RESUMO

            A sociedade experimenta hoje a ideia simplista imposta pela mídia ao logo das gerações de que há os bons e os maus. O sistema penal como um todo constitui uma herança enraizada no maniqueísmo, em que a pena é o único meio de castigo. Atualmente, o sistema penal enfrenta uma deslegitimação perante o seu papel, e institui sobre a sociedade a cultura do medo, onde a expansão punitiva é matéria aceita e aplaudida pela grande maioria.

A potencialização da criminalidade é causada primordialmente por uma sociedade excludente, abortiva e exterminadora, estabelecida a luz do sistema penal, e consolidada através do poder midiático. Quanto mais legitimo for o conceito maniqueísta que separa os bons dos maus, onde os maus são estigmatizados e marginalizados, maiores serão os obstáculos perante a minimização da criminalidade.

O papel da justiça não é o de atuar como mecanismo de exclusão definitivo, mas propor a minimização da criminalidade através de teorias criminalistas, que devem vir complementar o atual sistema.

 

PALAVRAS CHAVE

Maniqueísmo. Mídia. Sistema Punitivo. Minimalismo.

 

 

1 INTRODUÇÃO

            O presente trabalho tem por objetivo abordar as alternativas trazidas pela criminologia crítica para a minimização da criminalidade, através da desconstrução do próprio conceito maniqueísta enraizado na sociedade atual, e que se perpetua através do funcionamento do sistema penal sob a ótica do paradigma da reação social.

            Por conseguinte, faz-se necessário analisar e entender a influência da mídia na formação do conceito de “bons” e “maus”, do que é violento, e de quem é seletivamente violento ou perigoso. Ou seja, o que se pretende é enxergar a mídia como real protagonista na geração da ideologia penal dominante que predomina no sistema atual, e de que forma, a transição paradigmática sobre o funcionamento do sistema penal irá refletir em um novo comportamento midiático, a luz da criminologia crítica e das teorias minimalistas.

            Finalmente, a proposta desta pesquisa é identificar um modelo eficaz para transformar a ineficácia que se tornou o sistema penal no Brasil. Tal modelo advém de conceitos criminológicos, e de movimentos reformistas, que propõem o principio da intervenção mínima, e do uso do cárcere como última opção, na busca de penas alternativas a ele, baseadas nos binômios da criminalidade, isto é, nível de gravidade da criminalidade versus teor da pena a ser aplicada (cárcere ou alternativa).

            Uma última consideração cabe ser feita a luz do que será abordado neste trabalho. Não há que se falar em transição de paradigmas ou métodos complementares para operar o sistema penal, sem levar sempre em consideração o poder da mídia sobre quaisquer mudanças. O próprio conceito maniqueísta foi primordialmente disseminado pelo poder midiático. Dessa forma, a mídia deve desempenhar um papel colaborativo junto ao Estado, e só assim um novo modelo de sistema penal poderá operar de forma eficaz perante o julgamento e aceitação da sociedade.

 

2 A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO SOCIAL MANIQUEÍSTA

 

2.1 O PODER DA MÍDIA NA LEGITIMAÇÃO DO CONCEITO SOCIAL MANIQUEÍSTA

            É inquestionável o papel que a mídia desempenha na geração e disseminação de ideologias, já que, através da mídia, a sociedade perece de influência direta acerca das questões atreladas ao sistema penal. É a mídia que forma os estereótipos dos indivíduos considerados criminosos pela sociedade, assim como é ela que prolifera a ideologia penal dominante, ou seja, a ideia de que a única solução contra a criminalidade é através de um sistema estritamente repressivo, violento e punitivo, onde é necessário que o Estado amplie ainda mais a estrutura do sistema carcerário, onde o “correto” é aumentar o número de policiais nas ruas, criando então a falsa sensação de segurança para os cidadãos “bons”.

            As conotações de criminalidade amplamente difundidas pela mídia têm reflexo na própria orientação e ação dos órgãos oficiais, o que acarreta reações extremamente seletivas, tanto por parte do Estado, ou seja, os três poderes, quanto por parte da sociedade. O resultado do conceito maniqueísta que difere os “bons” dos “maus”, onde os “maus” normalmente estão locados em parcelas menos abastadas da sociedade, ocasiona a impunidade das classes dominantes, e a eterna falta de eficácia do sistema penal, que pune uns, e imuniza outros, marginalizando estereótipos (o negro, o pobre, o analfabeto, o nordestino, etc.), e culminando em crescente revolta social das classes criminalizadas, resultando finalmente, na maximização da própria criminalidade.

            A definição de criminalidade (baseada no conceito maniqueísta e utilização da ideologia penal dominante), e as reações não institucionais derivadas desta definição, estão ligadas ao caráter estigmatizante que a criminalidade leva (BARATTA, p. 103, 2002). Nessa seara, as chances de determinados indivíduos serem definidos pela mídia como criminosos e periculosos à sociedade, ressalta a tese de que há efetivamente real incongruência entre a igualdade formal e a desigualdade material dos agentes de direito, levando-se em consideração também, o desnível de distribuição do poder e recursos na sociedade (ANDRADE, p. 283, 2003), evidenciando a falta de eficácia dos órgãos responsáveis, e do Estado como ente gerenciador das relações sociais, que em tese, são igualitárias.

            Em outras palavras, a mídia tem papel determinante na vida das pessoas, à medida que possui o poder de diferenciar os criminosos dos não criminosos, de construir a ideologia penal dominante, ou senso comum penal, sendo esta concepção difundida pela mídia, concebendo de forma sacramentada a ideia maniqueísta como legítima, isto é, a sociedade acredita que só terá harmonia quando o homem mau não estiver entre os homens de bem.

            Objetivamente, o sistema punitivo vai muito além dos controles estabelecidos pelo Estado. A pena para os considerados criminosos entra no âmbito de controles informais, como a família, comunidade, e principalmente, a mídia, que efetivamente encabeça a construção da ideologia seletiva vigente no sistema penal da atualidade.

 

 

2.2 O SISTEMA PUNITIVO BASEADO NO PRINCÍPIO MANIQUEÍSTA

            A justiça penal funciona hoje no Brasil de forma extremamente seletiva no que diz respeito à proteção dos interesses comuns ao bem da sociedade. O que se vê, na realidade, é a justiça voltada para as classes menos favorecidas, ou classes populares, mesmo quando os comportamentos tidos como delitos, ou socialmente negativos, estão distribuídos por todas as camadas sociais.

            O sistema punitivo atual, que tem como base principal o cárcere, é altamente inadequado e ineficaz, à medida que não desenvolve as funções sociais para o qual foi desenhado, e, ao invés de defender os direitos elementares e fundamentais do individuo, cria uma nova vítima a partir do daquele individuo que cometeu o delito. Esta nova vítima criada pelo sistema penal, está eternamente estigmatizada como homem mau, e as suas chances de reinserção na sociedade dos “homens bons” é mínima. Ou seja, a punição, acaba marginalizando de forma definitiva o seu objeto.

            No entanto, o sistema punitivo encontra todo o seu embasamento e sua justificativa nos termos da ideologia da defesa social, mediante alguns princípios (BARATTA, p. 41-44, 2005):

1) Princípio do bem e do mal. Há um controle da criminalidade (mal) em defesa da sociedade (bem). O delito é um dano para a sociedade e o delinquente é um elemento negativo e disfuncional do sistema social.

2) Princípio de culpabilidade. O fato punível é expressão de uma atitude interior reprovável, porque seu autor atua conscientemente contra valores e normas que existem na sociedade previamente à sua sanção pelo legislador.

3) Princípio de legitimidade. O Estado, como expressão da sociedade, está legitimado para reprimir a criminalidade, da qual são responsáveis determinados indivíduos. Isto se leva a cabo através das instâncias oficiais de controle do delito (legislação, policia, magistratura, instituições penitenciaria). Todas elas representam a legitima reação da sociedade, dirigida tanto ao rechaço e condenação do comportamento individual desviante como à reafirmação dos valores e normas sociais.

4) Princípio de igualdade. O Direito Penal é igual para todos. A reação penal se aplica de igual maneira a todos os autores de delitos. A criminalidade significa a violação do Direito Penal e, como tal, é o comportamento de uma minoria desviada.

5) Princípio do interesse social e do delito natural. No centro mesmo das leis penais dos Estados civilizados se encontra a ofensa a interesses fundamentais para a existência de toda a sociedade (delitos naturais). Os interesses que o Direito Penal protege são interesses comuns a todos os cidadãos. Somente uma pequena parte dos fatos puníveis representa violações de determinados ordenamentos políticos e econômicos, e é punida em função da consolidação destes (delitos artificiais).

6) Princípio do fim ou da prevenção. A pena não tem (ou não tem unicamente) a função de retribuir o delito, mas de preveni-lo. Como sanção abstratamente prevista pela lei, tem a função de criar uma justa e adequada contra motivação ao comportamento criminal, isto é, intimida-lo (prevenção geral negativa). Como sanção concreta, tem como função a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva).

            O resultado dos princípios descritos por Baratta é a ideia de que a sociedade está caminhando para um futuro sem criminalidade, onde os “homens bons” teriam medo das penas, e os criminosos seria, ressocializados. O sistema punitivo atual, no entanto, gera violência com violência, e o que se percebe é o crescimento acentuado da criminalidade, comprovando mais uma vez, que o sistema é ineficaz, e necessita de algum mecanismo alternativo para auxiliar a sua operação.

 

3 DESCONTRUÇÃO DO CONCEITO SOCIAL MANIQUEÍSTA

A sociedade experimenta hoje a ideia simplista imposta pela mídia ao logo das gerações de que há os bons e os maus. O sistema penal como um todo (e não apenas um instrumento que o compõe), constitui uma herança enraizada no maniqueísmo, em que a pena é o único meio de castigo. Andrade (2003, p.38) afirma que:

 

“As representações do determinismo/criminalidade/ontológica/periculosidade /anormalidade/tratamento/ressocialização se complementam num circulo extraordinariamente fechado, conformando uma percepção da criminalidade que se encontra, há um século, profundamente enraizada nas agências do sistema penal e no senso comum da sociedade”.

 

            O sistema penal atualmente enfrenta tamanha deslegitimação perante o seu papel fundamental que impõe sobre a sociedade a cultura do medo, onde a expansão punitiva é matéria aceita e aplaudida pela grande maioria, inclusive a parcela da sociedade dita “intelectualmente esclarecida”. A potencialização da criminalidade, tão temida por todos nós, é causada primordialmente por uma sociedade excludente, abortiva e exterminadora, estabelecida a luz do sistema penal, e consolidada perante a sociedade através do poder midiático. Quanto mais legitimo for o conceito maniqueísta que separa os bons dos maus, onde os maus são estigmatizados e marginalizados. O sistema penal hoje pune o causador de um dano ou prejuízo, ou seja, encarcera-o em um sistema desumano derivado de uma justiça fria e insolvente, descumprindo o seu papel de favorecimento do condenado, e produzindo efeitos irreversíveis e contrários ao seu discurso oficial, em outras palavras, o sistema cria novas vítimas. O papel de nossa justiça seria então atuar como mecanismo de exclusão definitiva, multiplicando a criminalidade que o sistema deveria combater? A desconstrução da ideia de que existem dois tipos de cidadãos, os “bons” e os “maus” é fundamental para que se transforme o paradigma atual, de modo a obter a reforma do sistema penal em si mesmo.

 

4 DIREITO PENAL MÍNIMO PARA MINIMIZAÇÃO DA CRIMINALIDADE

            A teoria do minimalismo penal atesta o principio da intervenção mínima em seu caráter punitivo no que concerne a pena restritiva de liberdade, ou seja, o cárcere. A ideia é complementar o sistema penal vigente, que se mostra ineficaz, adotando princípios que punição do que diz respeito ao cárcere de acordo com a o potencial ofensivo do delito. Isto é, de acordo com a gravidade do delito, aplicar-se-á penas alternativas ao cárcere, de modo a evitar a atual marginalização e bi-criminalizaçao dos encarcerados.

            Tais penas alternativas poderiam constituir-se em trabalhos voluntários ou trabalho estatal não remunerado, mas, o principal enfoque da utilização do direito penal mínimo é a criminalização do ato mediante, e apenas mediante, a legalidade do mesmo, aplicando o principio da proporcionalidade para destituir penas, que, de acordo com a teoria minimalista, nem sempre implicaria em cárcere, e, por conseguinte, não implicaria na criação de uma nova vítima decorrendo do sistema.

 

5 CONCLUSÃO

            O sistema penal no Direito Moderno está corrompido defronte os seus princípios e objetivos fundamentais. O sistema não busca minimizar a criminalidade, mas enraíza o conceito de homens “maus”, “delinquentes”, “criminosos, tão profundamente na sociedade, que é impossível pensar o sistema penal de outra forma se não a punitiva e excludente. A partir desta realidade, se faz imprescindível a análise de como se dá a recuperação da cidadania, e uma das possíveis soluções seria a aplicação do direito penal mínimo, como forma de reestabelecer a ordem do sistema penal, e desconstruir a cultura maniqueísta atual. Tão logo ocorra este fenômeno de mudança paradigmática, tão logo será possível observar a real minimização da criminalidade.

BIBIOGRAFIA

 

 

ANDRADE, Vera Regina de. A ilusão de segurança jurídica. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003.

 

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x Cidadania mínima. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003.

 

BARATTA. Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

 

[1] Paper apresentado à disciplina de Criminologia, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

[2] Aluna do 5º período, do Curso de Direito, da UNDB.

[3] Aluno do 5º período, do Curso de Direito, da UNDB.