A mediação comunitária como instrumento de acesso à justiça e efetivação da cidadania: uma nova perspectiva do conceito de justiça e de conflito
Por Aidil Lucena Carvalho | 26/04/2012 | DireitoAutores: Aidi Lucena Carvalho; Bertoldo Klinger Rego Barros Neto; Filipe Franco Santos
Alunos da Faculdade UNDB - São Luis (MA)
Sumário: Introdução;1 A mediação comunitária como um marco de cidadania e complementação do poder judiciário; 2 Os princípios básicos para a realização eficaz da mediação; 2.1 O princípio da liberdade das partes ; 2.2 O princípio do poder de decisão das partes; 2.3 O princípio não competitividade; 2.4 O princípio da competência do mediador e da participação de terceiro imparcial; 2.5 O princípio da confidencialidade e informalidade do processo; 3 A mediação comunitária e uma nova perspectiva do acesso à justiça; 3.1 Do acesso a ordem jurídica justa à construção do conceito de cidadania Conclusão; Referências
RESUMO
O presente artigo terá como escopo magno analisar a crise de efetividade na qual se encontra o poder judiciário, haja vista a morosidade e a falta de um cunho social nas decisões judiciais. A partir desta crítica, desenvolver-se-á um espaço de discussão sobre a alternativa da mediação comunitária como um veiculo eficaz para demonstrar caminhos possíveis de efetivação da justiça e dos interesses coletivos
PALAVRAS-CHAVE
Mediação comunitária. Acesso a justiça.
Introdução
Desenvolver um estudo a respeito da condição hodierna do poder judiciário e dos seus instrumentos de solução[1] de conflitos, deve ser feito concomitantemente ao estudo da construção histórica do discurso jurídico e da sua sustentação social. Nesse sentido é salutar que iniciemos este debate remontando os aspectos gerais que levaram o direito a possuir o status que tem hoje.
A positivação de condutas permitidas e proibidas, e as suas devidas sanções pelo estado, é um dado bastante antigo no decorrer da história humana, contudo, foi a partir do século XVI que se iniciou uma racionalização do conceito de justiça, com o início da formação dos grandes Estados modernos e a utilização cada vez maior das normas como veiculo de controle social e determinador de condutas.
Ao transcorrer do tempo, esse direito de cunho regulador ganhou cada vez mais aceitação e legitimidade popular, os cidadãos passaram a utilizar cada vez mais o Estado para buscar uma solução justa para os seus conflitos, e em decorrência disso a lei passou a ser o veículo mais aconselhável para decidir o que é justo ou não. Nesse sentido, os conflitos que outrora eram resolvidos entre as próprias partes passaram a ser avaliados pelo poder judiciário, e em detrimento disso, toda sanção aplicada a alguém decorrente de uma vontade de justiça, deve ser declarada unicamente pelo órgão estatal competente. No que tange ao papel do estado nas sociedades modernas, Wolkmer enfatiza que: “[...] sendo expressão da vida social, o Estado torna-se em simples órgão da sociedade, capaz não só de impor a ordem às associações que a constituem, mas de executar sem muitos atritos e resistências a vontade da própria sociedade.”[2]
Ademais, esse aprisionamento da tutela jurisdicional na esfera estatal nos fomenta uma inquietante questão: o que é justiça? E por quê o poder Judiciário é o único incumbido a decidir o que é justo ou não? A partir disso, é necessário que explicitemos o que de fato significa o acesso à justiça para podermos adentrar na perspectiva central do artigo, que é o papel da mediação comunitária na construção da justiça eficiente e da cidadania.
Retomando o tema referente ao acesso à justiça, enfatizamos que por muito tempo este significou apenas a possibilidade de propositura de uma ação junto ao poder judiciário. Porém, com as constantes evoluções e racionalizações imanentes aos estudiosos do direito, foi formulado um novo conceito para tal tema. Ter acesso a justiça, trata-se muito mais do que poder propor uma ação no judiciário, significa ter acesso a uma ordem jurídica justa; e nesse sentido cabe a primeira relação com a mediação comunitária, haja vista que nela são os próprios mediados os responsáveis pela solução dos conflitos.[3]
Tratando sobre o tema dos conflitos dentro do poder judiciário, Wolkmer enfatiza que “a ideia de que a função central do direito em todos os lugares não é a resolução dos conflitos, mas sim a instituição de uma ordem pacífica interna das relações sociais de qualquer associação humana.”[4]. Percebe-se então, que dentro da esfera do judiciário os conflitos não são solucionados, permanecendo os fatores que desencadearam tal, o que há na verdade é uma imputação da decisão do juiz que se baseia no ordenamento jurídico e nos valores sociais.
Contudo, na mediação comunitária o conflito é encarado como algo construtivo na vida social, diferentemente da sua constatação no poder judiciário e em outras formas alternativas de resolução de conflitos. Nesse caso em especial o conflito é visto como um ente inerente á vida em sociedade, algo que acontece em todos os ambientes e que deve ser devidamente tratado. Ou seja, um conflito não deve ser encarado como uma guerra entre bem e mal, onde uma parte busca derrotar a outra e vice-versa. Pelo contrario, deve-se vê-lo como uma oportunidade de iniciar um dialogo franco e aberto, onde ambas as partes cheguem por suas próprias convicções a uma alternativa benéfica a ambas de resolver esse litígio. Nesse sentido, podemos afirmar que a mediação comunitária vem a tona com uma alternativa importantíssima ao acesso a justiça, haja vista que na sua aplicação supera-se muito mais do que o conflito trazido a tona, mas restabelece-se uma convivência harmônica e de bem-estar.
A partir desses apontamentos gerais, iniciaremos agora o estudo pormenorizado da mediação comunitária, fazendo, sempre que oportuno, comparações aos processos realizados nessa forma alternativa de resolução de conflitos e na estrutura burocrática e lenta do poder judiciário.
1 A mediação comunitária como um marco de cidadania e complementação do poder judiciário
Atualmente, o poder judiciário passa por uma séria crise de legitimidade e eficácia, haja vista que devido aos grandes números de reclamações feitas em juizados faz com que o processo judicial torne-se um meio extremamente lento, confuso e burocrático para solucionar conflitos. Além do mais, em muita das vezes não há uma extinção dos conflitos reais que permeiam a relação entre as partes, havendo apenas uma solução parcial dos aspectos mais superficiais de um litígio muito mais profundo.
A partir disso, o poder Judiciário passou a ser cada vez mais questionado sobre sua eficácia, e passaram a perceber que justiça está para muito além dos braços do estado. A partir disso, novas formas alternativas de resolução de conflitos foram se desenvolvendo gradativamente, apesar de não estarem desvinculadas do estado, tais alternativas representam um avanço social dentro da tutela jurisdicional, não representando a mesma morosidade e burocracia da justiça estatal. Partindo desse viés, enfatizaremos em especial a mediação comunitária como meio de edificar a cidadaniaem um Estadodemocrático de direito.
De maneira mais simples e clara possível, podemos definir a mediação comunitária “como sendo o meio alternativo de resolução de conflitos que possibilita às partes, através da ajuda de um terceiro imparcial (o mediador), manter o diálogo, construindo assim uma solução satisfatória para o problema, preservando o relacionamento entre elas.” [5]. Conclui-se, portanto, que antes de tudo a mediação comunitária visa um fim muito mais profundo do que as decisões judiciais, isso porque ela não se restringe apenas ao fato apresentado, o mediador busca sempre identificar os problemas que estão intrínsecos àquela relação, e a partir disso fomentar as partes a restabelecer o dialogo, e de forma pacifica chegarem ambas ao entendimento do que é justo para eles.
Cabe lembrar que a aplicação da mediação é realizada apenas em casos onde as partes mantêm um convívio constante, tal como relações entre vizinhos, familiares, amigos, etc. Isto porque, já como a relação entre elas é duradora e constante, o mais indicado seria fazer com que os próprios mediados chegassem de forma tranqüila a uma solução pacifica e um restabelecimento do diálogo entre eles.
2 Os princípios básicos para a realização da mediação
Assim como no âmbito do processo formal, a mediação possuiu alguns princípios gerais que devem ser reverenciados, a fim de consagrar esse procedimento como meio alternativo de pacificação. Podemos á seguir expor alguns desses princípios fazendo uma correlação com os princípios gerais do processo judicial, refletindo determinados pontos desses dois instrumentos de acesso á justiça. Sobre esses preceitos fundamentais que sustentam e legitimam esses procedimentos, nesse sentido temos:
[...] além do seu compromisso com a moral e a ética, atribui-se extraordinária relevância a certos princípios que não se prendem á técnica ou á dogmática jurídicas, trazendo em si serissimas conotações éticas, sócias e políticas, valendo como algo externo ao sistema processual e servindo-lhe de sustentáculo legitimador.[6]
2.1 O princípio da liberdade das partes
Temos nesse primeiro princípio uma idéia essencial da mediação, que é a voluntariedade das partes envolvidas em um conflito. Em contradição, no processo formal temos a citação e a intimação que são mecanismos usados pela parte autora para provocar o exercício da função jurisdicional tutelada pelo Estado. Na mediação as “pessoas devem escolher livremente (...) como um caminho para resolver o seu conflito”[7]. Dentre outras características percebemos que os mediados possuem também uma incondicional liberdade de escolher o mediador e extinguir o procedimento quando acharem necessários. No judiciário vimos que o processo encerra apenas com a decisão final do juiz ou pela desistência da parte autora.
2.2 O princípio do poder de decisão das partes
Inversamente ao processo formal onde existe o princípio das decisões judiciais, o mediador não possui a função do Juiz-Estado de impor uma decisão, cabe a sua pessoa somente definir normas de comunicação a fim de que os mediados encontrem uma solução pacifica para o conflito. Cabe ressaltar que “o poder de decisão das partes não é absoluto. Deste modo, o mediador pode (e deve) impedir que sejam celebrados acordos cujo o objeto seja ilegal ou que tragam desvantagem para uma das partes”[8].
2.3 O princípio não competitividade
Surgiu-se no mundo jurídico a idéia de que uma parte perde e a outra ganha quando é instaurado um processo judicial, desta maneira podem-se gerar posteriormente novos conflitos. Na mediação podemos observar que essa concepção não existe, esse procedimento é sustentado essencialmente no dialogo e no respeito mútuo das partes, com isso os mediados deixam “de enxergar o conflito como um espaço de competição, passando a velo como algo natural que deve ser superado mediante colaboração de ambos, é que estará criado o ambiente propicio para o dialogo e para o acerto de contas de forma pacifica”.[9]
2.4 O princípio da competência do mediador e da participação de terceiro imparcial
O mediador tem que possuir determinadas qualidades de percepção, como as expressões corporais e usar algumas técnicas da psicológica. Seria fundamental que essa pessoa conhecesse a realidade daquela comunidade “bem como o contexto cultural onde as partes estão inseridas (...) contribuindo positivamente na busca da solução mais satisfatória para a resolução do conflito”.[10] Devemos frisar também o compromisso do mediador com ética, exaltando o principio da imparcialidade.
2.5 O princípio da confidencialidade e informalidade do processo
Diferentemente do princípio processual da publicidade, na mediação o conflito mediado e as partes devem ser mantidos em sigilo, a fim de evitar algum eventual constrangimento advindo da publicização do seu litígio.
O principio da informalidade do processo diz respeito à natureza da mediação, tendo em vista que não se trata de um mecanismo legal e burocrático. Diferente disso, ela significa uma maneira informal das próprias partes resolverem seus litígios a partir de um diálogo civilizado.
3 A mediação comunitária e uma nova perspectiva do acesso à justiça
A partir do momento em que as partes litigiosas se propõem a travarem o seu debate dentro das delimitações da mediação comunitária, já se identifica ai um importante passo para a mudança do antigo paradigma de acesso á justiça, baseado simplesmente na capacidade de mover uma ação junto ao poder judiciário, para a construção de um novo ideal, pautado num debate racional, eficaz e útil tanto para as partes em conflito quanto para o próprio poder judiciário, que diminui notadamente a quantidade de processos, propiciando assim uma maior rapidez nos casos lá presentes.
Há de se considerar também o fato de que na mediação comunitária a solução dos conflitos é um papel exclusivamente das partes, não havendo possibilidade do mediador impor uma decisão que segundo ele seria mais justa. O que pode acontecer é o mediador vetar algum acordo das partes, caso constatado que uma das partes foi coagida ou realizou o acordo sob pressão. Outrossim, o mediador exerce uma função de salutar importância nesta relação, mantendo sempre a ordem durante os procedimentos, evitando uma eventual agressão de qualquer uma das partes, ou atitudes de má-fé . Vale lembrar que o mediador deve manter sempre um clima harmônico nas seções, buscando tirar os argumentos ofensivos e criar possibilidades de entendimento e de restabelecimento do dialogo.[11]
Diante disso, percebemos o quão é importante a difusão dessa forma alternativa de efetivação da justiça, e novamente reiterar que justiça é um valor abstrato, que não deve ser visto como um confronto entre bem e mal onde apenas uma das partes detém a razão. A justiça de fato existe quando ambas as partes chegam junta a uma solução harmônica e eficaz para um problema, sem gerar mais ódio e insatisfação entre elas.
3.1 Do acesso à ordem jurídica justa à construção do conceito de cidadania
Continuando o estudo já desenvolvido acima, faz-se necessário darmos ênfase ao desenvolvimento da mediação comunitária como veículo de afirmação da cidadania. Em primeiro lugar, vale ressaltar que a cidadania aqui enfatizada não se trata apenas da capacidade de adquirir direitos e garantias individuais. Muito mais do que isso, cidadania corresponde a um conceito bastante plural, composto por um conjunto de manifestações sociais. Tais como o respeito individual e coletivo com os outros membros da coletividade, o dever que cada um deve ter para tutelar os direitos que lhe compete - não admitindo qualquer violação de direitos -, também deveria ser inerente a todos os cidadãos a sensibilidade de enxergar as necessidades de diversos outros cidadãos, e efetivar uma política individual de solidariedade, apoiada na assistência e no contato continuo, realizando assim uma atividade pedagógica e construtora de novos cidadãos conscientes de seus direitos e deveres.
Mas a atribuição de cidadania mais pertinente para o nosso estudo atual é a necessidade de fomentar aos indivíduos uma convivência pautada no dialogo, na compreensão e aceitação na diferença, ou seja, os conflitos recorrentes no bojo da sociedade devem ser encarados não de forma repressora ou imputativa, mas sim pautada no debate entre os indivíduos a fim de buscar uma solução real para o motivo que levou aqueles dois cidadãos a um litígio.
Diante disso, é notável a semelhança da mediação comunitária com esse anseio de cidadania jurídica, tendo em vista o processo na qual se edifica essa forma alternativa de resolução de conflitos e os objetivos que ela busca atingir.
Conclusão
O mundo moderno criou em seu aparato de controle uma supremacia do poder judiciário para a resolução de conflitos de todos os âmbitos. Todavia, hodiernamente o poder judiciário encontra-se em um estado estático, muitos processos a serem solucionados, muitos conflitos surgindo a cada dia, e cada vez mais ações judiciais. Tais características contribuem para a manutenção de uma justiça lenta, muitas vezes tardia aos interesses das partes, e acima de tudo, um transtorno para os cidadãos que buscam no judiciário a solução de seus litígios.
A partir dessa condição crítica, o conceito de acesso à justiça foi remodelado, sendo este o acesso à uma ordem jurídica justa. Nesse âmbito novas formas de solucionarem os litígios foram criadas, entre elas a mediação comunitária, que foi a base de análise deste presente artigo.
Quando tratamos de mediação comunitária enfatizamos bem as características principais que compõe esta ordem jurídica. E é importante frisar novamente que a mediação trouxe a tona uma reformulação do que seja conflito e do que seja justiça, tendo em vista que as decisões são tomadas pelas próprias partes mediadas, e o principal objetivo é a consonância entre os cidadãos, buscando uma vida tranquila e bem relacionada.
Diante disso, percebemos o papel fundamental que a mediação comunitária exerce na construção de uma sociedade pautada nas garantias fundamentais e na pedagogia da cidadania. Por fim, vale ressaltar que as formas alternativas de solução de conflitos devem ser cada vez mais propagadas, a fim de trazer a justiça para mais perto da população e “desafogar” o imenso número de processos no poder judiciário.
REFERÊNCIAS
CINTRA, Antonio C. de Araujo; GRINOVER, Ada P.; DINAMARCO, Cândido R. Teoria Geral do Processo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
MARANHÃO, Ministério Público. Manual de mediação comunitária/ Adaptação de Vicente de Paulo Silva Martins. – São Luís: Procuradoria Geral de Justiça, 2008.
WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da antiguidade à modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.
[1] Apesar da utilização do termo “solução”, ressaltamos que as alternativas criadas pelo poder judiciário não possui um caráter finalista, de exclusão total dos litígios. O que há na verdade é uma ponderação de regras e princípios que buscam edificar uma coesão entre os valores sociais e as decisões judiciais. Destarte, não há uma resolução completa dos conflitos, pois as condições que desencadearam este continuarão presente entre os sujeitos. Neste sentido, a mediação comunitária surge como alternativa ideal no restabelecimento do diálogo e na supressão das divergências mútuas.
[2] WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da antiguidade à modernidade.Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. p.206.
[3] CINTRA, Antonio C. de Araujo; GRINOVER, Ada P.; DINAMARCO, Cândido R. Teoria Geral do Processo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 39-42.
[4] WOLKMER. Síntese de uma história das idéias jurídicas. op. cit. 2006. p.206.
[5] MARANHÃO, Ministério Público. Manual de mediação comunitária/ Adaptação de Vicente de Paulo Silva Martins. – São Luís: Procuradoria Geral de Justiça, 2008. p.23.
[6] CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria Geral do Processo. op. cit. p.56.
[7] MARANHÃO. Manual de mediação comunitária. op. cit. p.23
[8] Ibidem, p. 24
[9] Ibidem, p. 25
[10] Ibidem, p. 27
[11] Ibidem.