A mão esquerda da escuridão, de Úrsula Le Guin: presença do grotesco na science fiction
Por Lilian Silva Salles | 12/11/2012 | LiteraturaA mão esquerda da escuridão: uma metáfora grotesca
Mas o grotesco é apenas uma expressão sensível, um paradoxo sensível, ou seja, a figura de uma não-figura, o rosto de um mundo sem rosto (KAYSER).
Úrsula Le Guin tece um enigma e propõe ao leitor a tarefa de desvendá-lo. Nem sempre o universo literário incrustado na própria narrativa que lemos nos aparece com evidência. O romance A mão esquerda da escuridão (2008) apresenta em sua composição de Science Fiction uma metáfora cifrada, cujo efeito estético amplia o universo alegórico das personagens – Genly Ai, Therem Estraven – , e do próprio título do romance, para revelar a construção grotesca da narrativa e reforçar o vazio e a fragmentação do “eu” nos entes ficcionais.
O ponto nodal estrutura-se em mostrar o grotesco como efeito estético presente na science fiction: trazer à tona a tessitura que erige o romance leguiniano como a totalidade significativa de uma concepção de mundo, que assume forma de surpreendente variedade:
Sim, de fato, as pessoas lá são andróginas, mas isso não significa que estou prevendo que todos seremos andróginos dentro de um milênio, ou mais ou menos, ou anunciando que acredito que deveríamos, ora bolas, ser andróginos. Estou apenas observando, de maneira peculiar, tortuosa e experimental própria da ficção científica que, se você olhar para nós em certos momentos, dependendo de como está o tempo lá fora, já somos andróginos (LE GUIN, 2008, p. 9).
O caráter de totalidade de que falamos deve ser entendido como a condensação das informações, pois,em Le Guin, a elaboração do romance é produto também de um extremo domínio do autor sobre seus materiais narrativos para a obtenção da metáfora grotesca.
A mão esquerda da escuridão, romance em primeira pessoa, narra a história de Genly Ai, um enviado de Ekumen, uma federação de planetas, ao gélido planeta Gethen. Sua missão é conseguir que o planeta se una à colisão galáctica. Theren Estraven, diplomata, uma espécie de primeiro-ministro de Gethen, é a pessoa que fará a comunicação entre o governante e a federação. Contudo Genly Ai, o emissário, é colocado em xeque, devido às suas crenças e às diferenças culturais, físicas e políticas dos habitantes do Planeta Inverno (Gethen).
Os habitantes de Gethen, outrora humanos, desenvolveram modificações em sua estrutura sexual, tornando-se andróginos e podendo escolher em certas épocas – chamadas de Kémmer – os caracteres masculino ou feminino para o acasalamento.
Em razão de complicações diplomáticas, as personagens Genly Ai e Estraven se lançam em uma fuga no mundo glacial, não fugindo especificamente de um antagonista, mas de uma situação política, social e cultural já estabelecida. Não há inimigos, mas sim a própria realidade de um planeta gélido, cujas nações usam e abusam do desconhecimento do visitante.
Acontece então a travessia do enviado e do diplomata, as intrigas políticas, a distopia dos governos antagônicos, a luta de Genly Ai pela sobrevivência em um ambiente tão inóspito e a inevitável aproximação entre os dois indivíduos e suas causas.
Durante a fuga das personagens através dos desertos gelados do norte, ocorre a compreensão mútua entre os dois protagonistas e também o leitor, sendo cada um é representante de seus respectivos modelos sociais.
Observamos na Science fiction, de Úrsula Le Guin, uma abordagem escritural que recorre à ciência para questionar o mundo e a filosofia do mundo, oferecendo, por exemplo, à perspectiva à divisão homem/ mulher, ao instinto sexual, à questão política, ideológica e social. Entendemos o andrógino como um estudo metafórico de nossa sociedade. A obra de Le Guin contém uma mensagem clara: a diferença entre os dois sexos só existe nos olhos daqueles que não distinguem o único ser que somos: humano.
As imagens típicas da science fiction são claras até mesmo para os não aficionados: espaçonaves, mutantes, impérios galácticos, andróides e outros. Science fiction foi o nome escolhido por Hugo Gernsback, editor da revista Amazing Stories, nos anos 20, para denominar o tipo de literatura que ele tentava incentivar.
Olhar para o romance A mão esquerda da escuridão como um tipo de science fiction que a todo o momento flagra na metáfora seu enigma, talvez seja uma possível abertura para a discussão desta narrativa, mesmo porque a metáfora projeta nas personagens efeitos sutis e inusitados. Esses efeitos intensificam no discurso a imagem grotesca a partir de diversos elementos: o enigmático e o suspense, bem como o sobrenatural, o monstruoso, entre outros. Sobre a metáfora declara Haroldo de Campos (2000, p. 127):
Toda a delicada substância do discurso se constrói sobre um substrato de metáforas. Os termos abstratos, pressionados pela etimologia, revelam suas raízes antigas ainda mergulhadas na ação direta. Mas as metáforas primitivas não se originaram de processos subjetivos arbitrários. Elas só se tornaram possíveis por acompanharem as linhas objetivas das relações na própria natureza. As relações são mais importantes e mais reais do que as coisas por elas relacionadas
O romance fisga-nos a cada página. Leitor e personagens são arrebatados por uma força estranha que, por vezes, nem mesmo a identificamos, apenas sentimos, por isso inefável, embora seja construída com palavras. Trata-se de um tecer textual cuja metáfora se torna capaz de materializar o universo da busca e da angústia que permeia esta narrativa leguiniana:
[...] o homem branco respondeu: - Sou seu irmão e Kemmering, Hode.
Hode era o nome do irmão que se suicidara. Getheren viu que o homem branco era o seu irmão [...] Aproximou-se rapidamente de Getheren, estendendo os seus braços para envolvê-lo, e o segurou pela mão esquerda [...] No nono dia, após partir para o Gelo, foi encontrado pelo povo do lar [...] rastejando, faminto, cego pela neve, o rosto queimado pelo sol e gelo [...] contudo, não sofreu nenhum dano aparente, exceto na mão esquerda, que estava congelada e precisou ser amputada (LE GUIN, 2008, p. 31- 32).
O título do romance A mão esquerda da escuridão é a grande metáfora da narrativa, à medida que a expressão sempre aparece em momentos críticos da história, pois representa a busca e a angústia vivenciada pelas personagens Getheren e Genly Ai, que por procurarem um espaço externo e não encontrarem, as personagens realizam um percurso inverso à realidade cotidiana: é o espaço interior dos entes ficcionais que tenta estruturar na narrativa a realidade desconhecida que vivenciam.
A esquerda remete à ideia de oposição, de contrário a uma ordem, de estranho. Estar à esquerda na obra de Le Guin é estar na escuridão política, social, cultural, mas, acima de tudo, é estar em confronto consigo mesmo. Tal confronto aparece no romance por meio do andrógino.
Quando examinamos a science fiction leguiniana, observamos uma significativa alusão aos mitos que representam divindades andróginas, e fundamentam as origens do mundo na idéia de um caos, contendo os princípios do masculino e do feminino, que dotam de bissexualidade os ancestrais da humanidade. Estudar o andrógino é uma forma de revelar a construção grotesca do romance:
[...] a separação dos sexos fazia parte de um processo cósmico. A divisão das substâncias começara em Deus e se efetuara progressivamente até na natureza do homem, que foi, assim, separado em macho e fêmea. Por isso é que a reunião das substâncias deve começar no homem e concluir-se de novo em todos os planos do ser, inclusive Deus. Em Deus não existe mais divisão, pois Deus é todo uno, [...] a divisão sexual foi conseqüência do pecado, mas terá fim com a reunificação do homem, que será seguida pela reunião escatológica[1] do círculo terrestre com o Paraíso (ELIADE, 1986, p.106-107).
As personagens do romance apresentam caracterização andrógina por possuírem uma ambivalência de gênero, que permutam entre si suas características comportamentais, por exemplo, notamos que a personagem masculina Estraven exerce uma atração peculiar sobre a personagem Ashe, que por meio de uma espécie de metamorfose, de masculina torna-se feminina, como demonstra o excerto:
Quando o indivíduo encontra um parceiro no kemmer, a secreção hormonal recebe novo estímulo (principalmente pelo toque ... secreção?, cheiro?), até que, num dos parceiros, ocorra a dominância hormonal masculina ou feminina. Os órgãos genitais crescem ou encolhem, conforme o caso, as preliminares se intensificam e o outro parceiro, provocado pela mudança, assume o papel sexual oposto? (LE GUIN, 2008, p. 92).
O andrógino sintetiza a completude dos opostos numa alma que, em dado momento, separou sua essência una. As personagens do planeta Gethen são em sua maioria hermafroditas, trazem consigo a presença do masculino e do feminino. Veja-se o fragmento:
[...] vejam o quarto do misterioso Enviado! Era tão feminino em aparência e modos que certa vez lhe perguntei quantos filhos tinha. Fechou o rosto. Nunca tinha dado à luz. Entretanto, era genitor de quatro. Era um dos pequenos choques que eu sempre levava. Choque cultural não era quase nada comparado com o choque biológico que sofri como macho humano em meio a seres que eram, oitenta por cento do tempo, hermafroditas assexuados (LE GUIN, 2008, p. 54).
Há de se ressaltar que a androginia é instaurada na science fiction como veículo promotor da imagem grotesca. Para a autora Úrsula Le Guin, a ficção científica é uma extrapolação – isso ocorre quando a science fiction questiona a sociedade em seus conceitos filosóficos. É, por exemplo, o que acontece nesta obra leguiniana, ao narrar uma história vinculada à narração de elementos grotescos, como o feio, o monstruoso, o estranho. Perceba que o andrógino oferece ao leitor um contraste entre a imagem feminina e masculina, desencadeando o grotesco pela desarmonia dos gêneros. Em geral, harmoniza-se o que é belo, o que tem valor estético para a sociedade. Aqui também se harmoniza, mas aquilo sobre o que é de valor estético para a narrativa: o grotesco, o andrógino, a deformidade. Kayser declara (1986, p. 24):
A mistura do animalesco e do humano, o monstruoso como a característica mais importante do grotesco [...] O monstruoso, constituído justamente da mistura dos míninos, assim como, concomitantemente, o desordenado e o desproporcional surgem como características do grotesco.
Numa ampla perspectiva simbólica, cujas aberturas interpretativas do romance permitem descartar significados restritos, compreendemos que a experiência estranha acontece quando os complexos masculino/feminino são construídos por uma metamorfose andrógina ou quando crenças imaginativas das personagens relacionadas ao monstruoso se confirmam. É como se, a partir de uma experiência insólita proporcionada pela ambivalência do gênero, o sujeito duvidasse do seu ceticismo e perguntasse a si mesmo: qual parte me é desconhecida, masculino ou feminino?
[...] senti-me isolado e curvado de medo dentro da minha própria mente, atormentado por alucinações visuais e táteis, uma confusão frenética de imagens e idéias, visões abruptas e sensações, todas carregadas de sexualidade e grotescamente violentas (LE GUIN, 2008, p. 69).
Percebamos que o efeito estético–literário desencadeado pelo androginia remete à imagem grotesca presente na narrativa. Os entes ficcionais andróginos alegorizados nas personagens do planeta Gethen em suas deformidades como seres incompletos, divididos e fragmentados, aproximam-se mais do grotesco.
Observamos no início do texto, que, tanto a personagem Genly Ai como Estraven, se encontram dentro da angústia (de ser, existir e viver), e logo iniciam uma busca por respostas que lhes ofereçam um certo equilíbrio, uma certa “verdade” que lhes tragam segurança e os distanciem de todos os medos. Contudo, as imagens construídas na narrativa remetem às personagens para o grotesco e o monstruoso, não apresentando resposta concreta, pois o romance representa a própria busca. As personagens vivenciam a angústia do caos e do possível futuro:
Estava rodeado por grande covas escancaradas, com escabrosos lábios, vaginas, feridas, bocas do inferno; perdi o equilíbrio, estava caindo, desmoronando... Se não pudesse isolar o caos, iria desmoronar de fato, iria enlouquecer, e não havia como impedir [...] uma espantosa disciplina de total concentração e apreensão da realidade imediata, estavam além do meu controle. E, no entanto, estavam controladas (LE GUIN, 2008, p. 69).
No fragmento visualizamos que as sensações da personagem Genly Ai materializam a imagem do horror, do feio e do imperfeito. O andrógino é a transformação do objeto em corpo, ou do corpo em objeto, sendo a literatura também corpo textual. O grotesco interage na tessitura da narrativa para depois reinventar outra imagem que, por vezes, estranha ao nosso olhar. A esse respeito declara Kayser (1986, p.31):
Várias sensações, evidentemente contraditórias, são suscitadas: um sorriso sobre as deformidades, um asco ante o horripilante e o monstruosoem si. Comosensação fundamental, porém, se bem interpretamos Wieland, aparece um assombro, um terror, uma angústia perplexa, como se o mundo estivesse saindo fora dos eixos e já não encontrássemos apoio nenhum.
Outro elemento narrativo que nos chama a atenção por tornar-se descrito em determinados momentos de forma grotesca é o espaço. Em A mão esquerda da escuridão, observamos o planeta Gethen como uma representação do lar, da morada de seus habitantes, porém a imagem do lar é grotesca e horripilante. Esse lar é o espaço utópico da narrativa, pois se trata da tentativa de criação de um espaço ideal, com o objetivo de transformar o caos em uma ordem:
[...] Iremos referir como utópicas somente aquelas orientações que transcendendo a realidade, tendem a se transformarem em conduta, a abalar, seja parcial ou totalmente, a ordem de coisas que prevaleça no momento (MANNHEIM, 1969, P. 216)
Uma utopia é uma visão de sociedade imaginária construída a partir da crítica de uma sociedade existente. Na verdade, a utopia implica uma crítica. Na ficção científica de Le Guin, a crítica às relações diplomáticas entre o sistema galáctico, ou, ainda, a crítica sobre a convivência entre seres diferentes: andrógino, traz à tona a necessidade de construção de um novo lugar, como demonstra o excerto:
Continuei caminhando para casa, para minha ilha.
[...]
Karhosh, ilha, palavra usada para os prédios de apartamentos ou pensões onde habita a maior parte da população de Karhide. As ilhas têm de20 a200 quartos particulares; as refeições são comunitárias, algumas ilhas são administradas como hotéis, outras como comunas cooperativas, outras ainda são uma combinação desses dois tipos. São sem dúvida uma adaptação urbana da instituição Karhideana fundamental, o Lar, embora não tenham, naturalmente, a estabilidade local e genealógica da Lar (LE GUIN, 2008, p. 18)
Na obra leguiniana, o “lar” é o espaço utópico e distópico que desconstruído de seu modelo original é reconstruído dentro de uma nova concepção de “lar”. Nesse sentido, a ficção científica de Le Guin traça uma crítica ao modelo de “lar” que a sociedade contemporânea apresenta, pois, apesar de o romance se passar numa galáxia distante, num planeta desconhecido, percebemos que a estruturas dos prédios mencionados no fragmento é muito próxima das que temos em nossa sociedade. O romance aponta as mudanças que o homem contemporâneo vivencia e não percebe.
Num sentido geral, o termo utopia é usado para denominar construções imaginárias de sociedades perfeitas, de acordo com os princípios filosóficos de seus idealizadores:
Ela [a história] começa em 44º diurnal do Ano 1491, que no planeta Inverno, na nação Karhide, era Odharhahad Tuwa, ou o 22º dia do terceiro mês da primavera do Ano Um. É sempre Ano Um aqui. Só que a datação de cada ano passado e cada ano futuro muda o Ano Novo, quando se conta para trás e para frente a partir do Agora unitário (LE GUIN, 2008, p. 11- 12).
A utopia leguiniana dentro da science fiction estabelece uma nova ordem por meio do grotesco e do estranho, pois ao criar um novo planeta em uma galáxia distante o faz por meio de personagens andróginas, num ambiente hostil cujo espaço e tempo são completamente estranho para o leitor:
A cidade foi construída antes dos karhideanos começarem a utilizar veículos elétricos, e eles os utilizam há mais de vinte séculos. Não existem nas ruasem Rer. Hápasseios cobertos, semelhantes a túneis, que no verão podem ser atravessados por dentro ou por cima, como se desejar. As casas, ilhas e Lares espalham-se desordenadamente, caóticos, em uma confusão profunda e prodigiosa que subitamente culmina (como acontece com a anarquia de Harhide) em esplendor: as Grandes Torres do Não-Palácio, vermelho-sangue, sem janelas (LE GUIN, 2008, p. 58- 59).
As criações utópicas têm como objetivo a concepção de uma sociedade perfeita do ponto de vista racional, ou seja, desligada de crendices e superstições que impediriam seu total progresso, a distopia é o contraponto, o inverso, a negação da utopia: a proposta de um avanço científico- social culmina em estruturas opressoras e populações alienadas. O romance de Le Guin é distópico porque no fim da narrativa temos a conclusão de que a missão de Genly Ai foi inútil:
Dizer que um governo orgota caiu naturalmente significa apenas que um grupo de Comensais foi substituído por outro grupo de Comensais nos gabinetes [...] Algumas sombras encurtaram e outras se alongaram, como dizemem Karhide. Afacção Sarf, que me enviara Pulefen, conseguiu se manter, apesar do embaraço, nada inédito, de ter sido apanhada mentindo [...] Nesse dia, o partido de Obsle, a facção Comércio Aberto, assumiu a presidência dos Trinta e três. Portanto fui inútil para eles, no final das contas (LE GUIN, 2008, p. 279).
Distopias são frequentemente criadas como avisos, ou como sátiras, mostrando as atuais convenções sociais e limites extrapolados ao máximo. Uma distopia está conectada intimamente à sociedade atual. Nesse sentido, o romance apresenta uma visão pessimista da sociedade:
Estraven era um cortesão, um político, e eu um tolo por ter confiado nele. Mesmo numa sociedade bissexual, o político é muitas vezes menos que um homem entenderia (LE GUIN, 2008, p. 21-22).
A distopia é uma tomada de consciência em relação ao futuro. A metáfora de A mão esquerda da escuridão busca na distopia apoio para apresentar a visão negativa e os riscos possíveis da criação de um lugar ideal e perfeito. Tanto o grotesco como a presença do andrógino na science fiction de Le Guin reforçam o olhar crítico da autora sobre as questões políticas, sociais e culturais do mundo contemporâneo, à medida que instaura a angústia no ser humano e a sua busca por algo novo que supere as divergências de sua realidade.
ÚLTIMAS PALAVRAS: O GROTESCO NA SCIENCE FICTION É O DIFERENCIAL
De tudo exposto, fica evidente que a atuação do grotesco em um texto de science fiction se manifesta de diversas formas. Contudo, nos estudo da obra aqui analisada: A mão esquerda da escuridão, de Úrsula Le Gun, o grotesco ocorre por intermédio do estranho, do horrível e do andrógino, que evidência o suspense e o espanto comuns na narrativa de ficção científica.
Em A mão esquerda da escuridão, as relações andróginas operam na superfície social, política e cultural do romance. O contraste entre a utopia e a distopia funciona para Le Guin como forma de crítica da sociedade contemporânea, pois ao criar as personagens Genly Ai como um visitante humano ao planeta alienígena e Therem Estraven como um ser andrógino que vive em uma galáxia distante, faz dessas personagens elementos de ruptura cultural e social. Tal confronto leva-nos a ver a utopia como a concepção de uma sociedade perfeita do ponto de vista racional e a distopia como o contraponto, o inverso, a negação da utopia.
A mão esquerda da escuridão é a grande metáfora da narrativa, à medida que a expressão sempre aparece em momentos críticos da história, pois representa a busca e a angústia vivenciadas pelas personagens Getheren e Genly Ai.
Já o efeito estético–literário desencadeado pelo androginia remete à imagem grotesca presente na narrativa. Os entes ficcionais andróginos alegorizados nas personagens do planeta Gethen em suas deformidades como seres incompletos, divididos e fragmentados, aproximam-se mais do grotesco.
De tudo exposto, fica evidente que uma das maneiras de alcançar essa construção na narrativa de science fiction foi a elaboração de um projeto autoral que apresente o grotesco vinculado à utopia e à distopia.
Enfim, o grotesco na science fiction em A mão esquerda da escuridão é o diferencial – Úrsula Le Guin como artesã engenhosa da palavra constrói a narrativa que mostra a mediação grotesco e ficção científica a todo o momento, e qual é o limite e a fronteira entre utopia e distopia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DO AUTOR
LE GUIN, Úrsula k.. A mão esquerda da escuridão. São Paulo: Aleph, 2008.
GERAL
CAMPOS, Haroldo de. Ideograma: lógica, poesia e linguagem. 4º ed. São Paulo: Edusp, 2000.
ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o andrógino: Comportamentos religiosos e valores espirituais não- europeus .Trad. Ivone Castilho Beneditt. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1986.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. São Paulo: Cultrix, 1969.
[1] O termo estacologia refere-se, segundo o Dicionário Aurélio, ao tratado sobre os fins últimos do homem. Neste trabalho, optaremos pela visão escatológica de Mircea Eliade, cujo significado remete ao estudo sobre o ”fim dos tempos”, o apocalipse.