A manipulação e mecanização do corpo humano na Alemanha nazista
Por Valter Santana Chaves | 10/09/2010 | HistóriaIntrodução
Esta pequena pesquisa tem como base estudar a manipulação e mecanização do corpo humano na Alemanha nazista, através do filme "O Triunfo da Vontade" levando em consideração os interesses políticos do partido NSDAP. Sabemos que a Alemanha foi a mais prejudicada no pós-primeira guerra, com perdas humanas, perda de territórios, pagamento de enormes indenizações, e no sentido de ter a sua moral abalada, por ser considerada culpada pelos vencedores por todo o sofrimento que causou ao iniciar a guerra. Ao assumir o poder em 1933, os nazistas começavam a colocar em prática as medidas que estabeleceram para levar à nação alemã de volta ao topo de grande potência da Europa, e uma destas medidas visava principalmente à guerra. Para que um futuro conflito tivesse inicio, a Alemanha deveria estar preparada, com o seu exército moldado, educado e disciplinado, principalmente com o bem estar corporal.
Esta preocupação com a saúde do corpo sempre foi almejada pela maioria dos exércitos, mas se tornou de vital importância para Alemanha a partir dos anos 30, com a subida de Adolf Hitler ao poder. Segundo Stackelberg a educação se tornou objetivo principal para os nazistas, eles "valorizavam o desenvolvimento do caráter e a educação física mais do que o conhecimento ou intelecto. Um corpo saudável era considerado mais importante do que uma mente brilhante (...) o verdadeiro propósito da educação era incutir um senso de disciplina, dever, obediência, coragem e serviço à causa nacional". Em seu programa de governo promulgado em1920, conhecido como os vinte e cinco pontos, os nazistas deixam claras suas preocupações com o bem estar físico de seus jovens, já visando uma futura guerra em prol de seus ideais de expansionismo, o lebensraum. Vejamos o que diz o vigésimo primeiro ponto deste programa:" O Estado deve tomar a seu cargo o melhoramento da saúde pública (...), uma política de educação física que compreenda a instituição legal da ginástica e do esporte obrigatório, e o máximo auxílio possível às associações especializadas na educação física dos jovens".
Analisando a produção cinematográfica "O Triunfo da Vontade", podemos observar um modo de vida moldado para a guerra, em várias cenas do filme percebe-se a manipulação do corpo humano, como nas já conhecidas marchas do exército, onde percebemos claramente uma mecanização do corpo. Nas tropas perfiladas percebemos que repetidas vezes os soldados marcham, tocam os instrumentos, hasteiam as bandeiras nazistas incansavelmente em um estado hipnótico de homens que se comportam como máquinas, e o chamado "passo de ganso" torna o ser humano em uma máquina de lutar desprovida de alma que, sem questionar obedece a ordem de seu superior. O próprio Heinrich Himmler, líder das temíveis SS, dizia que "para transformar homens em máquinas irracionais e sem sentimentos era preciso doutriná-los de acordo com os ideais do nacional-socialismo (...) e que os soldados também tinham que alcançar certas qualificações físicas e disciplinares".
A saudação nazista também foi um modo de manipular o corpo humano, já que se tornou tão utilizada a ponto de se modificar a maneira de se cumprimentar uma pessoa. No filme, e em toda Alemanha no período nazista, este gesto é constantemente praticado, mulheres, adultos e crianças são obrigados a utilizar a saudação nazista, principalmente na presença do führer.
O Filme
A produção cinematográfica "O Triunfo da Vontade" foi dirigida pela cineasta Leni Riefenstahl, e os nazistas encomendaram esta produção para mostrar o sexto congresso do partido, que foi realizado no estádio de Nuremberg no ano de 1934/35. A equipe contava com 170 pessoas, incluindo 16 cinegrafistas e 16 assistentes de câmeras, contendo também 29 cinegrafistas de jornal cinematográfico. A produção levou dois anos para ser montada, sendo exibido pela primeira vez em 1936, com duração de 110 minutos. As pessoas responsáveis pelas filmagens estavam vestidas como homens das SA, para facilitar o acesso ao trabalho e dar a idéia de realidade no filme. Na produção são mostrados todos os desfiles das SA e SS tanto na abertura como no encerramento do congresso. Este filme foi produzido no período em que os nazistas se consolidaram no poder. Era uma época em que a Alemanha estava vivendo em um momento de transição e, o povo via em Hitler a pessoa melhor indicada para liderar a Alemanha de volta as glórias do passado. Como os nazistas estavam pouco tempo no poder (Hitler foi nomeado chanceler em 1933) esta produção cinematográfica seria uma forma bem sofisticada de levar ao povo a idéia que eles tanto almejavam, a de um líder poderoso, o führer, já que o cinema era uma maneira bem interessante de expressar as idéias, por ser um novo meio de comunicação para a propagação de ideais. Neste filme, percebe-se claramente a intenção dos nazistas, tanto na questão da valorização do corpo humano (preparação do exército), quanto na disciplina rígida imposta aos membros da SS e SA. Para um melhor entendimento deste pequeno ensaio, dividirei o filme em seis cenas (a chegada de Hitler, o acampamento da Juventude Hitlerista, a checagem das tropas, o discurso aos jovens, a apresentação da cavalaria e a homenagem ao ex-presidente Paul Von Hidelburg) explicando onde ocorre este processo de manipulação e mecanização do corpo humano.
Primeira cena: O filme se inicia com a chegada de Hitler de avião sobrevoando a Alemanha, assim que o Führer sai do avião é recebido por milhares de pessoas que o esperavam, com muita alegria, todos o recebem erguendo o braço ao alto na tradicional saudação nazista. No caminho ao hotel, desfilando em carro aberto, Hitler é homenageado por todos durante o percurso. Pessoas dentro das casas, em cima das pontes e até as crianças o cumprimentam com este movimento mecânico que se tornou de uso obrigatório por todos durante a ditadura nazista.
Na chegada ao hotel nota-se que todos os soldados estão em formação, parados, eretos nem se importando com a empurra-empurra dos presentes no evento.
A segunda cena se inicia com o amanhecer do dia. No acampamento da Juventude Hitlerista, percebe-se o espírito de coletividade e alegria nos corpos destes jovens (um ajudando o outro em tarefas como se banhar, fazer a barba, pentear o cabelo etc.), e já pensando na boa formação destes jovens com o intuito de servirem ao Estado, visando à guerra. Todos estão vestidos de maneira igual, praticando várias brincadeiras que estimulam e demonstram a atividade corporal, e a partir da idéia de Sérgio Paulo "demonstrando a eugenia do Terceiro Reich, com seu culto dos belos corpos (...) e sua exaltação ao esporte".
Em seguida tem-se inicio a inspeção das tropas, todos estão enfileirados, eretos com o olhar sempre à frente, se comportando como máquinas (no caso nazista, máquinas de guerra), esperando ordens de comando para se locomoverem.
Começa a terceira cena, após os vários discursos inicia-se mais uma checagem das tropas (algo tão comum neste regime), com movimentos tradicionais e mecânicos de soldados, como apresentar e descansar armas, esquerda e direita volver, as tropas estão disciplinadamente enfileiradas e demonstram estarem dispostos a servir e obedecer as ordens de seus superiores. Neste momento, os soldados se apresentam a Hitler com total disciplina, aos poucos eles dizem as cidades de origem, suas funções para com a Alemanha etc, de um a maneira mecanizada, fria e compulsiva, que nem se quer se mexem para movimentar a cabeça para o lado ou ao menos fazer funções tão básicas como piscar. Após esta apresentação e o discurso de Hitler, os soldados marcham com uma sintonia e uma perfeição sem igual, os movimentos das pernas e dos braços dificilmente se diferem de um soldado para o outro.
Quarta cena: Com o amanhecer o dia, a Juventude Hitlerista entra novamente em cena, comparando as vestimentas dos "soldados mirins" que estão tocando os mais variados instrumentos, veremos que são todas iguais e, que apesar de seus rostos aparentarem pouca idade e experiência, os instrumentos são tocados em uma sincronia perfeita. Já os que estão na função de telespectadores se esforçam e desdobram ao máximo para saldar Hitler com a já tradicional e mecânica saudação nazista. Em seguida, o führer discursa aos seus jovens soldados, cobrando ainda mais disciplina e obediência. À medida que as câmeras vão se afastando dos espectadores, em direção ao alto, verifica-se que a multidão de pessoas estão fazendo uma espécie de "ola" com a saudação nazista!
Na quinta cena é a vez da cavalaria entrar em ação, lembrando o antigo Império Romano, os soldados desfilam com os seus cavalos, utilizando-se inclusive de carros para puxar os animais e veículos de guerra onde homens e máquinas se tornam um único individuo. Em seguida, já ao anoitecer, homens aparecem carregando bandeiras nazistas, desfilando em direção a catedral, lembrando os cavaleiros da Idade Média. Novamente a disciplina dos corpos é tão intensa que dá o parecer das bandeiras terem vida própria e, as pessoas que estão filmando a cena, nem se preocupam em filmar quem são os seres humanos que estão carregando os estandartes.
A sexta cena se inicia com um ritual em memória da morte do ex-presidente da Alemanha, o marechal Paul Von Hidelburg, nota-se que novamente as tropas estão enfileiradas esperando ordens para que possam ser executadas. Durante a cerimônia, as pessoas encarregadas de guiar as bandeiras se movimentam de forma que enfocam os símbolos nazistas contidos no estandarte que carregam, quando as filmagens começam a se focalizar de cima, percebemos melhor a mecanização dos soldados, cada um executando sua função que foi instruído de maneira repetitiva, mecânica e cansativa. Temos a impressão que estes soldados são desprovidos de alma, que não são donos de seus próprios corpos, lembrando máquinas que só funcionam ao toque de botões de comando ou fazem somente aquilo que foram programados para fazer, sem questionamentos ou hesitação, ou como La Mettrie afirmou uma vez a respeito dos seres humanos "os homens não tinham alma, eram meras máquinas, conjuntos de engrenagens puramente materiais, sem nenhuma substância espiritual".
Hitler discursa mais uma vez aos seus seguidores e, após as homenagens, o führer desfila novamente em carro aberto pelas ruas da Alemanha, outra vez o repetitivo e compulsivo "passo de ganso" entra em ação, como máquinas, os soldados desfilam para deleite do líder da nação, este com o braço erguido saúda seus soldados. Em seguida, começa a tradicional marcha militar, mas nada se difere nos movimentos, e a disciplina e repetição tomam conta dos seres humanos que caminham e balançam seus braços em uma coletividade incomparável. E eles continuam marchando sem parar, esperando que algum oficial "aperte o botão" (dê a ordem) para que eles alterem seus movimentos, como se seus corpos fizessem parte de uma orquestra e estes "músicos" estivessem aguardando o comando de seu "maestro" (oficial)! Afinal, estes soldados podem ser comparados com o que La Mettrie defendia ser o "Sr. Máquina, um pobre diabo (...), mas afinal era uma máquina e uma máquina não faz o que quer, mas o que tem que fazer".
Após o término das homenagens, Hitler faz seu ultimo discurso aos presentes e fecha o sexto congresso do partido NSDAP, terminando assim o documentário.
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Considerações finais
Ao término deste pequeno ensaio podemos ressaltar que, apesar de concordarmos a respeito do treinamento militar ser muito rígido e rigoroso, em várias partes do mundo e em períodos históricos diferentes, os nazistas levaram ao extremo este segmento, visto que, a manutenção do exército era tido como de vital importância para os planos expansionistas de Hitler. Mas neste documentário foi possível perceber a mecanização do corpo humano, tanto no exército em suas marchas, quanto nas pessoas comuns na chamada saudação nazista, que causou uma modificação tanto nos modos de se cortejar uma pessoa, quanto nos movimentos de caminhar e na maneira dos soldados se locomoverem, como por exemplo, na já citada marcha tradicional do exército e no repetitivo "passo de ganso". Com as várias análises deste documentário, começamos a entender o "porquê" dos soldados, tanto do exército quanto das temíveis SS, executavam as ordens por mais cruéis e absurdas que lhe fossem solicitadas, sem se quer algum questionamento. Os soldados eram tão disciplinados que não pensavam duas vezes ao executar alguma ordem e, como Roy Porter diz em sua obra "as relações mente/corpo não são inatas, mas dependem da cultura", no caso a cultura nazista soube impor muito bem esta questão. Neste filme também é demonstrado claramente até onde os seres humanos foram manipulados a ponto de seus corpos se tornarem máquinas, aguardando um oficial apertar o botão do "play" para que eles obedeçam suas ordens! As pessoas que estiveram presentes no filme praticando suas funções cotidianas, nos dão o parecer de que estes seres humanos são desprovidos de alma e vontade própria, nos trazendo a idéia de máquinas esperando a manipulação de seu programador.
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