A literatura no Ensino Médio: o panorama actual e os desafios de ensino nas escolas moçambicanas

Por Dércio Benhe | 21/07/2023 | Educação

A literatura no Ensino Médio: o panorama actual e os desafios de ensino nas escolas moçambicanas [1]

Dércio Benhe

derciobenhe01@gmail.com

 

Introdução 

A literatura é inserida nos currículos escolares com o objectivo de formar leitores, isto é, desenvolver nos alunos competências de interpretação de textos e fomentar-lhes o gosto e o hábito de leitura (Cândido, 1976; Coelho, 2012). Entretanto, estudos recentes apontam que nas aulas de literatura, as actividades de interpretação e compreensão de textos têm sido relegadas ao segundo plano (Serôdio, 2000; Almeida, 2014; Fumo, 2019), ou seja, não se tem ensinado a ler.

No mesmo contexto, nas últimas décadas pesquisadores têm denunciado que a camada jovem não tem hábitos de leitura (Buse, 2011; Fumo, 2018), o que significa que a literatura não tem conseguido alcançar o principal objectivo do seu ensino, isto é, a formatação leitores. Os estudos anteriormente citados emitem críticas às práticas dos professores, apontando-as como sendo uma das razões do crescente desinteresse pela literatura. No contexto moçambicano, os professores depara-se com alguns obstáculos que condicionam a implementação de práticas desejáveis no trabalho com a literatura.

Neste âmbito, o presente ensaio foi produzido com o objectivo de reflectir sobre os desafios que os professores enfrentam no ensino da literatura. Em termos específicos, o ensaio busca: (i) descrever o panorama actual no ensino da literatura, em geral, e em Moçambique, em particular; e (ii) apontar os desafios enfrentados pelos professores no ensino da literatura no contexto moçambicano;

Ao discorrer sobre os desafios enfrentados pelos professores no ensino da literatura, espera-se produzir conhecimentos que possam ser usados para promover mudanças no sentido de criar-se condições favoráveis para um ensino mais produtivo. Ademais, o conhecimento produzido pode ser útil aos professores em formação, e não só, na medida em que consciencializa sobre os desafios que vão enfrentar nas escolas. Deste modo, cria-se possibilidades de melhor preparo para lidar com esses desafios

O panorama actual no ensino da literatura 

Estudiosos são consensuais em apontar a formação de leitores como o principal objectivo do ensino da literatura (Cândido, 1976; Coelho, 2012; Dionísio, 2005). Formar leitores significa dotar os alunos de estratégias que lhes possibilitem interpretar e compreender textos, bem como fomentar-lhes o gosto e o hábito de leitura.

Decorre, entretanto, que actualmente os adolescentes e jovens não têm hábitos de leitura (Buse, 2011; Zafalon, 2013; Fumo, 2018). Além disso, os alunos revelam dificuldades de leitura, até mesmo no Ensino Superior (Fumo, 2019). Actualmente, tem-se verificado, sobretudo na camada jovem, um crescente desinteresse pela literatura. Os jovens geralmente não lêem, nas poucas vezes que o fazem, é por obrigação, isto é, no estudo dos conteúdos escolares, e não por puro deleite.

O facto de, em Moçambique, em particular, e no mundo, em geral, ler-se pouco, significa que o ensino da literatura não tem conseguido alcançar o seu objectivo, ou seja, durante os anos de escolaridade no Ensino Médio, os alunos não desenvolvem competências de leitura, tampouco uma cultura literária. Isto se deve, a nosso ver, ao uso que se tem dado ao texto literário nas aulas de literatura. Ou seja, nas aulas de literatura as actividades de interpretação/compreensão de textos têm sido relegadas ao segundo plano (Fonseca, 2000; Buse, 2011; Fumo, 2019).

Fonseca (2000) aponta que o estudo da literatura tem enfocado na aprendizagem dos aspectos estéticos e estruturais dos textos, da história literária, da metalinguagem e da gramática. Na mesma linha de pensamento, Buse (2011) revela que nas aulas de literatura não há espaço para a exploração dos diversos sentidos que o texto literário propicia. Segundo a autora, os professores tende a impor a sua própria interpretação dos textos, isto é, não envolvem os alunos em actividades que lhes permitam construir por si mesmos os sentidos dos textos. Sendo assim, como pode o aluno desenvolver o hábito de leitura se não é ensinado a ler?! 

No contexto moçambicano, este cenário é atestado por Fumo (2019) que constatou que “Nas aulas de literatura, geralmente, não são realizadas actividades que envolvem estratégias de leitura e operações de análise, interpretação e discussão e compreensão de textos”. Estas constatações denotam que, no trabalho com a literatura, os professores não propiciam aos alunos momentos de interacção com o texto, interpretação do seu sentido, discussão das suas temáticas, reflexão e posicionamento do aluno sobre o que leu.

Este cenário influência, sem dívidas, para o baixo índice de leitura recreativa que se tem vindo a verificar nos últimos tempos. Sem actividades frequentes de leitura interpretativa dos textos na sala de aulas, os alunos acabam ganhando a concepção de que o texto literário serve apenas para a aprendizagem da metalinguagem, estudo da gramática, bem como para análise da estrutura e dos aspectos estéticos dos textos.

Neste sentido, com este panorama não é difícil compreender as motivações que levam os alunos a distanciarem-se cada vez mais de livros. Não há como os alunos adquirirem hábitos de leitura enquanto o estudo dos aspectos formais dos textos suplantar a leitura nas aulas de literatura, sendo que a leitura dos textos devia ser fulcral nas aulas. Tal como aponta Fumo (2018), nas escolas é onde menos se vê livros e menos se lê. Sendo assim, como pode o aluno ganhar o gosto pela leitura?!

Ao emitir críticas ao facto de o estudo dos aspectos formais, estruturais e estilísticos dos textos suplantar a realização de actividades de leitura textual, não se pretende defender a ideia de que o estudo destes aspectos deva ser renegado, mas sim, que devia constituir mecanismo para facilitar a leitura e compreensão dos textos. Todas as actividades realizadas com o texto literário devem visar a leitura e compreensão dos mesmos.

O panorama actual do ensino da literatura em nada contribui para formar leitores, muito menos para fomentar nos alunos o gosto e o hábito de ler. É, por essa razão, que Dionísio (2005) afirma que o leitor formado através das práticas actuais, sobretudo as previstas nos manuais, não existe enquanto construtor de sentidos, é apenas um assimilador de sentidos apresentados por outros. No contexto moçambicano, o cenário actual pode dever-se, em parte, a desafios que os professores, geralmente, enfrentam nas suas actividades lectivas. 

 

Desafios no ensino da literatura nas escolas moçambicanas 

Em Moçambique, o ensino, em geral, e o ensino da literatura, em particular, impõe diversos desafios. Nas suas actividades lectivas, os professores enfrentam constrangimentos que, de certo modo, condicionam a implementação de práticas desejáveis. 

Em primeiro lugar, importa fazer referência ao Plano Curricular do Ensino Secundário Geral e aos Programas da Disciplina de Português que, de acordo com Fumo (2019), não explicitam claramente o que se espera que decora no trabalho com a literatura, quer as finalidades, quer os enfoques, quer as orientações metodológicas e o papel do professor. Sem que estes aspectos estejam bem definidos, a possibilidade de os professores alcançarem sucesso nas suas actividades é bastante baixa.

Sabe-se que, normalmente, os documentos orientadores de ensino são como a bíblia que regula as actividades dos professores, pois neles encontram os fundamentos para as suas actividades. A falta de clareza nestes documentos (programas da disciplina e manuais de ensino) pode levar a um uso inespecífico e abusivo do texto literário, como o descrito na secção anterior, ou seja, embora se defina como objectivo formar leitores, nas aulas enfoca-se nos aspectos formais dos textos e não na leitura.  

 Segundo, a vastidão dos conteúdos dos programas configura um constrangimento às práticas dos professores, na medida em que se vêem obrigados a cumprir com a leccionação de todos os conteúdos previstos nos programas, respeitando os prazos estabelecidos. Por exemplo, por mais que o professor sinta que a matéria em estudo não esta ainda consolidada, ou seja, que precisa de mais tempo para sua consolidação, vê-se obrigado a avançar para outros conteúdos, de modo a cumprir a programação de aulas, no tempo estipulado. A vastidão dos conteúdos concorre para que não se dedique tempo adequado à leitura dos textos, que acaba sendo superficial. O facto de os conteúdos serem muitos pode levar os professores a preocuparem-se mais com cumprimento das metas e dos prazos do que com o desenvolvimento das competências visadas. 

Ainda sobre o cumprimento dos programas, por mais que os professores considerem que as obras propostas nos programas não se adequam às capacidades cognitivas dos seus alunos, têm na mesma de as ensinar, pressionados pelos testes províncias, os exames finais e pelo controlo efectuado pela supervisão do Ministério da Educação. Fumo (2019) refere que os professores posicionam-se criticamente em relação aos livros didácticos e aos programas, dizem que impõem limitações. No entanto, de acordo com o autor, os professores seguem, quase à letra, as propostas das sequências de aulas dos livros didácticos. Justificam esta postura devido à obrigação institucional de cumprir as orientações dos documentos oficiais orientadores do ensino.

 Terceiro, a falta de livros e de bibliotecas nas escolas é, também, um grande obstáculo. Fumo (2018) faz referência à escassez de livros como uma das razões da falta de hábitos de leitura nos jovens. De facto, a falta de livros nas escolas é uma realidade no nosso país. Uma visita a três bibliotecas de escolas secundárias da cidade de Maputo permitiu constatar que são abastecidas, normalmente, por livros relativos às disciplinas curriculares, portanto, pouco se investe em livros de literatura ou de outros géneros. Mesmo sobre os livros das disciplinas escolares, não os há em número suficiente para responder à demanda. Nas bibliotecas há poucos livros e, assim, os alunos têm de usá-los em grupos, o que torna a leitura menos produtiva. 

Neste âmbito, por mais que o professor consiga, com a leitura dos excertos de obras literárias na sala de aula, cativar os alunos a lerem a obra na íntegra, depois fica a questão: onde e como os alunos podem ter acesso ao livro? Pensar na opção de compra de livros não é muito viável, pois a realidade actual nos mostra que poucas famílias possuem condições para adquirir livros. 

Por fim, o excesso do número de alunos por turma é, também, um grande constrangimento. O professor encontra dificuldades em envolver todos alunos na aula. Com o excessivo número de alunos por turma, normalmente acima de 60, é difícil o professor dar a oportunidade de cada aluno ler o texto, expor a sua opinião sobre o que leu e debater com os colegas. As aulas acabam sendo expositivas, consequentemente, os alunos não têm como desenvolver o pensamento crítico. 

Os constrangimentos apontados neste ensaio podem ser uma das causas que influenciam o professor a assumir a tarefa de explicar o texto e o seu sentido, o que afasta o aluno da tarefa de ler e interpretar os textos e, consequentemente, como explica Serôdio (2000), esta postura impossibilita que os alunos desenvolvam o gosto e o hábito de leitura, bem como impossibilita o desenvolvimento de uma potencial competência literária, pois esta, de acordo a autora, é adquirida, sobretudo, através do contacto com diversos textos.

É importante frisar que ao expor estes desafios não se pretende justificar a postura actual dos professores, isto é, o facto de dedicarem pouco tempo, ou quase nenhum, a ensinarem os alunos a ler e interpretar textos. A falta de profissionalismo ou o despreparo dos professores para ensinar literatura também justifica o panorama crítico em que o ensino da literatura se encontra. Pretendeu-se, sim, dar a conhecer os desafios que os professores enfrentam, de modo que se encontrem mecanismos mitigá-los. Além disso, estes conhecimentos possibilitam que os professores em formação conheçam a realidade que vão vivenciar nas escolas e possa preparar-se em função disso.  

Considerações finais 

Com a realização deste ensaio, pretendeu-se (i) descrever o panorama actual no ensino da literatura e (ii) apontar os desafios que os professores enfrentam. Quanto à prossecução do primeiro objectivo, ficou evidente que o ensino da literatura não atravessa um bom momento. Nas aulas de literatura, a leitura textual não é o “prato principal”. Pelo contrário, tudo indica que tem sido apenas “ a sobremesa”. Neste sentido, as práticas dos professores não contribuem para desenvolver nos alunos competências de leitura, assim como para incutir-lhes o gosto e o hábito de leitura, que é o principal fundamento do ensino da literatura.

Quanto à prossecução do segundo objectivo, ficou evidente que os professores enfrentam desafios que condicionam a implementação de práticas desejáveis. Percebe-se que, por um lado, os desafios estão enraizados nas próprias políticas educativas (falta de clareza nas orientações oficias para o ensino da literatura, a falta de bibliotecas e de livros, o excessivo número de alunos por turma). Por outro lado, os professores podem estar a acomodar-se às condições actuais, uma vez que, como vimos, mesmo que imitam críticas aos programas e aos manuais didácticos, seguem-nos na plenamente, conforme constatou fumo (2019). 

 Neste contexto, o ensino da literatura no Ensino Médio em Moçambique precisa ser revisto. Impõem-se a necessidade de actualização dos programas no que tange aos objectivos, os métodos e o papel do professor no ensino da literatura, definindo-os claramente, conforme sugere Fumo (2019). Impõem-se, igualmente, a necessidade de investir na formação de professores, no sentido de capacitá-los para saberem lidar com as reais condições de ensino nas escolas.

É igualmente importante que se investa na construção de espaços para leitura e que se crie condições para os livros serem facilmente acessíveis, isto é, apetrechar as bibliotecas com livros de diversas áreas do saber, quer as escolas, quer as dos demais dos demais lugares públicos, bem como encontrar mecanismo de reduzir os custos do livro no mercado.

Neste texto, fez-se apenas a apresentação dos desafios enfrentados pelos professores no ensino da literatura. Para trabalhos futuros, propõe-se discutir e sugerir estratégias de mitigação.

Referências bibliográficas 

Almeida, M. P. (2014). Literatura e ensino: perspectivas metodológicas. Disponível em: http://www.unirios.edu.br/revistarios/media/revistas/2014/8/literatura_e_ensino_perspectivas_metodologicas.pdf. Acesso em: 10 de Outubro de 2020

Buse, B. (2011). A disciplina de literatura no Ensino Médio e a (de) formação do leitor. VI Colóquio: Ensino Médio, história e cidadania. São Paulo, Brasil Disponível em: file:///C:/Users/ev/Downloads/2343-Texto%20do%20artigo-5410-1-10-20110829.pdf. Acesso em:15 de Novembro de 2020

Cândido, A. (2012). A literatura e a formação do homem. Remate de Males, Campinas, SP. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8635992. Acesso em: 01 de Novembro de 2020

Coelho, J. (2012). Como ensinar literatura. In Ao Contrário de Penélope (pp.45-71). 10ª Ed. Porto: Figueirinha.

Costa, L.G. (2012). O desenvolvimento de competências de leitura em alunos do Ensino Secundário: o labirinto dos conhecimentos prévios (Relatório do Estágio de Mestrado). Universidade do Minho, Braga: Portugal.

Dionísio, M. L. (2005). Literatura, Leitura e Escola. Uma hipótese de trabalho para a construção do leitor cosmopolita. In: PAIVA, Aparecida et al. (orgs.). Leituras literárias: Discursos Transitivos. (pp. 71-83). Belo Horizonte: Ceale; Autêntica

Fonseca, F. (2000). Da inseparabilidade entre o ensino da língua e da literatura. In Didáctica da língua e da literatura (pp. 37-45). Coimbra: Almedina.

Fumo, O. A. (2019). O Ensino de literatura e a formação de leitores: práticas didáctico-pedagógicas nas aulas de português em Moçambique (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, Brasil. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/334025/1/Fumo_OscarAlexandre_M.pdf. Acesso em: 29 de Maio de 2020

Fumo, O., Timbane, A. (2019). Práticas de leitura de géneros académicos: entre os discursos dos docentes e as concepções dos estudantes na Universidade Eduardo Mondlane. Cadernos de África Contemporânea, vol.2. Nº3. (pp.128- 139). Disponível em: https://itacarezinho.uneb.br/index.php/cac/article/view/14306. Acesso em 13 de Junho de 2020

Rouxel, A. (2013). Aspectos metodológicos do ensino da literatura . In Dalvi et all, Leitura de Literatura na Escola (pp-33-45).São Paulo:Parábola

Serôdio, C. (2000). O ensino da literatura: concepções e práticas. In: Diáctica da Língua e da Literatura (pp. 468-473). Coimbra: Almedina.

 

[1] Ensaio produzido no âmbito da disciplina de Português V, do curso de Licenciatura em Ensino de Português, ministrado na Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique.

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