A Lista do Trabalho Escravo

Por Denis Farias | 11/07/2009 | Direito

Há tempos que a Lei Áurea extinguiu a escravidão no Brasil. Contudo, não proporcionou alforria contra o preconceito e nem quebrou os grilhões da mentalidade escravocrata que perdura até hoje nos senhores de engenho do século XXI. Na pauta do Judiciário, nos deparamos com uma empresa, organizada na forma de sociedade anônima, produtora de álcool, açúcar, milho, soja e outros produtos. Está localizada em uma fazenda com área de aproximadamente 17.000 mil hectares, com produção de 300 mil litros de álcool por dia. Ainda conta com incentivos fiscais do Governo do Estado do Pará.

É ou não é um engenho moderno?

Como um engenho que se preze, não poderia deixar de usar a mão-de-obra escrava, ou modernamente falando, em condições análogas a de escravo. Em uma fiscalização da Superintendência do Trabalho do Pará, foram lavrados e julgados procedentes 21 autos de infração. Os fiscais e auditores do órgão constataram nessa fazenda, diversas condições degradantes de trabalho. Os Alojamentos eram superlotados, onde a única alternativa era dormir em redes. Era feita retenção intencional de salários. A jornada de trabalho era excessiva, com início às 4h30. Não era fornecida água potável. Os intervalos para repouso e alimentação dos trabalhadores eram menores que uma hora. Havia proibição expressa de que os trabalhadores pudessem parar para comer o lanche que eles mesmos levavam para frente de trabalho. Os recibos de pagamentos tinham valores zerados ou irrisórios. Não existiam instalações fixas ou móveis de vasos sanitários e lavatórios. Era latente a ausência de fornecimento e de utilização de equipamentos de proteção, adequados aos riscos da atividade, e falta de material necessário à prestação de primeiros socorros.

Os flagrantes e afrontas eram não somente às leis trabalhistas, mas, sobretudo ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, nos termos do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. A conclusão dos autos de infração na Superintendência Regional do Pará demorou tanto, que o próprio Ministro do Estado do Trabalho e Emprego, usando das prerrogativas do art. 638 da CLT, avocou para si todos os processos administrativos. Examinou e decidiu pessoalmente. Tal atitude deslocou toda e qualquer discussão da validade dos atos para os Tribunais Superiores, originariamente o Superior Tribunal de Justiça – STJ, nos moldes do art. 105, inciso I, alínea "b" da Constituição Federal.

O Ato do Ministro que acendeu a ira dos proprietários da empresa foi a determinação de inclusão, no cadastro de empregadores que matêm trabalhadores em condição análoga à de escravo, instituída pela Portaria 540/2004, do Ministério do Trabalho e Emprego. É que tal medida acarreta prejuízos de ordem econômica para o moderno engenho. O nome no cadastro ocasiona a suspensão dos contratos de compra e venda de álcool com as grandes distribuidoras de combustível, seus principais clientes. Tudo por conta da existência do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que proíbe que as empresas que aderiram ao mesmo, estabeleçam relações comerciais com os inclusos na lista dos escravocratas. Além disso, tem a consequência de perda de créditos em bancos comerciais públicos ou privados. Vale lembrar que outro grande temor é que a lista dos atuais senhores de engenho é repassada para a imprensa. Por conseguinte, para a sociedade, tornado-se público os atos degradantes e criminosos.

Para tentar evitar as perdas, a empresa moveu uma Ação de Mandado de Segurança n.º 14.017-DF, no STJ. O feito ficou sob os cuidados do Ministro Hernam Benjamim. As alegações mais contundentes, era de que a Portaria que criou a lista dos empregadores que mantêm trabalhadores em condições análoga a de escravo, é inconstitucional e que a inclusão do nome da mesma nesse cadastro, constituiria uma sanção antecipada, ferindo o princípio constitucional da presunção de inocência.

A concepção de legalidade e inocência presumida desse engenho é ultrapassada. Muitas normas constitucionais também têm status de normas jurídicas, delas podendo extrair efeitos diretos, sem que necessariamente precise de norma integradora ou mediação do legislador infraconstitucional. Portanto, defender a ideia de que um ato infralegal fere a legalidade porque encontra fundamento na Constituição é querer aplicar o Direito às avessas. Na verdade, a Portaria do n.º 540/2004, homenageia o princípio da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho. Prestigia os objetivos de construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza e reduzindo as desigualdades sociais e regionais. Logo, beira o absurdo sustentar a inconstitucionalidade da citada Portaria. Felizmente, o STJ julgou improcedentes os pedidos da empresa, forçando-a a se enquadrar nas exigências legais contidas na CLT e na Constituição Federal, sob pena de sofrer sanções legais e comerciais.

Denis Farias é advogado

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