A LÍRICA DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA SOB OS PRÉSTIMOS GREGOS

Por Almir Gomes | 14/07/2011 | Literatura

Abro espaço nessas páginas que se seguirão para discutir um assunto muito caro à nossa tradição literária. Se trata de pensar, nos parâmetros árcades, a lírica de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). No entanto, a reflexão aqui delimita-se a relação entre a criação poética em Marília de Dirceu e a ancestralidade dos pressupostos criativos gregos como força propulsora da poiesis gonzaguiana.
Sabe-se que o movimento árcade, enquanto imputação de uma estética literária, esteve diametralmentre oposto ao barroco. Isto assegurou-lhe predicar contrariamente à exacerbação seiscentista a retomada de características presentes na antiguidade clássica. Deste modo, ao estilo greco-latino coube a função de servir de molde à poesia do arcadismo. Nesta retomada, codificada a uma nova conjuntura histórica, os ideais clássicos transportados para a nova estética repousaram numa aura bucólica, pastoril, que remonta, por seu lado, a região grega tomada pelos neoclássicos para nomear seu movimento. Por outro lado, a contraposição feita pelo neoclassicismo a corrente estética anterior pautou-se num desmembramento de uma linguagem extremamente figurada a favor de uma maior objetividade e de um maior senso descritivo da realidade circundante. Assim, havia naquela época "aberta apenas a porta da objetividade, da poesia exterior, descritiva" (DUTRA, 1997, p. 229), algo que denota que neste momento "o princípio da imitação impunha o realismo, inclusive o uso de elementos biográficos, em contraposição à poesia barroca, onde predominava o exercício lúdico, impessoal." (Idem, Ibidem) Há de se considerar, à guisa desta reflexão angular, como muitos historiadores da literatura afirmam, o forte determinante na escrita de Marília de Dirceu de uma paixão não concretizada na vida de Gonzaga, fator que assegurou muitos de seus versos nessa obra, ou o próprio fundamento de escrevê-la.
Afim ou além deste dado biográfico na escrita de Gonzaga, abre-se nestas linhas espaço para se sacar furtivamente a fundamentação do gênio artístico dos gregos em relação aos postulados normativos árcades sobreditos. Assim tem-se que a visão em relação aos grecianos é a de "liberdade e claridade de espírito; harmoniosa unidade de conteúdo e forma, de elemento sensível e intelectual, de natureza e espírito; plástica serenidade e sentimento de medida e proporção; sadio e puro objetivismo." (MONDOLFO apud CHAUI, 2002, p. 25) Pelo que se observa, tanto apreciadas as perspectivas artísticas gregas foram por aqueles que se encantavam por suas qualidades que sua retomada se tornou algo inequívoco, seja em quais dimensões de retorno elas tenham aparecido. Diante disso, fica evidente que o estabelecimento das condições de subsistência da estética árcade concretizou-se pelo fator de admiração a seus antecessores clássicos, aqueles que primavam pela objetividade.
Num contexto mais amplo, a vida visualizada na Grécia antiga, no tocante a região da Arcádia, era uma maneira encontrada para os neoclássicos realizarem o ideal de "fugere urbem" (fugir da cidade), ou seja, viver as potencialidades oferecidas pela vivência bucólica. Sendo assim, a natureza constituiria fonte de inspiração para a fruição poética, algo que as sobredeterminações políticas de agenciamento do espaço urbano tornavam impossível.
Em relação ao compósito poético Marília de Dirceu, e a estratégia estética afirmada no movimento no qual esta obra está enquadrada, Bosi (2003, p. 71-72) afirma que

as liras são exemplo do ideal de aurea mediocritas que apara as demasias da natureza e do sentimento. A "paisagem", que nasceu para arte como evasão das cortes barrocas, recorta-se para o neoclássico nas dimensões menores da cenografia idílica. Esta prefere ao mar e à selva o regato, o bosque, o horto e o jardim. A natureza vira refúgio (locus amoenus) para o homem do burgo oprimido por distinções e hierarquias. Todas as culturas urbanas do Ocidente, nos estágios mais avançados de modernização, acabam reinventando o natural e fingindo na arte a graça espontânea do Éden que os cuidados infinitos da cidade fizeram perder.

O que dá-se a observação é o receituário de uma vida contida no espaço campestre, fugindo-se, deste modo, da prevalência da ordem citadina.
Há de se perceber durante as liras em Marília de Dirceu um recurso recorrente de emprego dessa noção campesina de vida, bem como a menção da figura de pastor que conduz seu rebanho. Nota-se, na realidade, um disperso aparecimento da figura pastoril cunhada sob diversos matizes. Na Lira IV da primeira parte do livro, observa-se a utilização de tal figura num retorno dístico pelo qual o Eu lírico expressa sua devoção para com sua amada: "Marília, escuta/ Um triste Pastor". A recorrência desse dístico afirma tanto o sofrimento do Eu lírico em vista de ter um objeto de adoração e não poder alcançá-lo naquele momento, quanto o pertencimento a categoria de Pastor, homem do campo e da natureza fundamental.
Assim, ao mesmo tempo em que se ordena uma nova práxis ficam evidentes também as referências constantes ao mundo greco-latino. É perceptível o cuidado tipo por Gonzaga ao citar a cultura clássica, e isto se confirma com a forte presença de referências aos Deuses mitológicos. Apolo, Vênus, os cupidos, Vulcano são elementos constantes e sempre intricados a própria constituição da poética do autor. Por este viés, Faustino (2003, p. 120) assevera para que "não se irrite o leitor, em demasia, com as alusões mitológicas", pois são amplamente empregadas e um fundo de inspiração para o poeta.
Afora este traço místico, constitutivo da retomada dos modelos gregos, algo que admirava os neoclássicos era a racionalidade grega. Assim,

os gregos seriam o povo da luz, da unidade entre matéria e espírito, sensibilidade e intelecto, natureza e humano; seriam o povo da pura objetividade racional, da relação orgânica e perfeita entre forma e conteúdo; seriam o povo da simplicidade racional, capaz de descobrir e operar com um pequeno número de princípios racionais, sistemáticos e universais que seriam a totalidade do real (as coisas, as plantas, os animais, os homens, os astros e os deuses). (CHAUI, 2002, p. 26)

Atrelada ao culto da racionalidade grega estava o fator de que os neoclássicos tinham em sua disposição os ideais do Iluminismo, momento histórico que trazia um novo paradigma para a atividade intelectual. Isto significava a valoração da racionalidade humana como fonte última da ação sobre o mundo, interferindo em sua realidade por intermédio da atividade intelectiva.
No que se refere à arte, Bueno (apud Duarte, 2011, p. 45-46) diz que

a rigor, todo o ritmo da história da arte segue um movimento pendular entre uma tendência mais racional, mais contida, mais fria, e outra de maior desbordamento, de excesso, de utilização do irracional, ou seja, todas as formas de classicismo de um lado, do outro o Barroco, o Romantismo, o Surrealismo, e assim por diante.

Assim, ao se pensar nessa tendência da arte de alternar sua fonte criativa, entre o racional e o irracional, Duarte (2011, p. 46), se referindo a Nietszche, diz que

o pensador alemão interpreta a cultura clássica grega como um embate de impulsos: por um lado temos o dionisíaco, remetendo ao deus do vinho e representando a exarcebação dos sentidos, a desmedida das ações; por outro, temos o apolíneo, expressando a perfeição, a medida exata das formas e das ações baseadas no "logos".

O que se teria, na expressão artística e principalmente na poesia, é a alternância destas duas forças, uma prevalecendo num período distinto da prevalência da outra. Isto se afirma como especialmente frutífero na criação lírica, pois "o tempo da poesia pertence ao eterno retorno, o que não deixa de ser plausível numa cultura que valoriza a memória artística." (Idem, p. 45) Desta maneira, o neoclassicismo como um movimento com tendências mais racionais, contidas, é o retorno às fontes igualmente racionais e contidas dos gregos. O apolíneo seria, então, o determinante dessa corrente literária, tendo em vista que se


a antítese insuportável entre o dionisíaco e o apolíneo governaria o espírito dos gregos. Somente por terem sido conquistadores cruéis, escreve Nietzsche, senhores de escravos, dominadores de outros povos, animados pelo espírito agonístico da luta, da disputa e do jogo, movidos pelo impulso das desarmonias e da desmedida, divididos em suas cidades em dezenas de facções contrárias e sempre em guerra, puderam colocar como ideal inalcançável o apolíneo: a estatuária, a poesia lírica e épica e a filosofia exprimiriam a busca desse ideal de luz e serenidade, contrário à realidade brutal e sangrenta da vida grega. (CHAUÍ, 2002, p. 27)


Os laços se amarraram entre essa faceta grega e a poética árcade. Do mesmo modo, Gonzaga "tinha como clima a tranquilidade" (DUTRA, 1997, p. 231), e atuava em seu processo criativo nas condições de um busca pela serenidade, afinal esta é uma das características que retornam sob a forma da fuga para o campo, para o apaziguado bucólico.
Se por esse lado a poesia de Gonzaga se aproxima em essência dos gregos, por outro lado, segundo Faustino (2003, p. 119),

em Gonzaga, sim, já encontramos seguros sinais de romantismo, em luta contra os maneirismos do neoclassicismo rococó. Gonzaga é um individualista, um naturalista à maneira do século XVIII, um idealista burguês. E embora quase toda a sua poesia seja objetiva, segundo os dogmas do neoclassicismo, já desponta em muitos versos, em contraposição à temática dos clássicos, a interiorização, o subjetivismo romântico; a variedade dos metros, as muitas liberdades tomadas, eis outras marcas do romantismo que em Gonzaga já anuncia sua próxima chegada.


Como pode se observar, em Gonzaga encontra-se uma forte sobrevivência dos ideais neoclássicos, bem como germes da estética romântica. No entanto, a par dessa dupla abrangência de caracteres, considera-se aqui, como Faustino afirma, a elementaridade dos pressupostos árcades na escrita de Gonzaga, sendo, pois, uma volta as origens gregas a fim de que se cumpra a tarefa de realizar a ânsia do espírito da época. De tudo, o que não pode se deixar de mencionar quando se fala em Gonzaga, e em nosso caso em Marília de Dirceu, é a força de retomada e de recorrência da cultura clássica na forma de o poeta conduzir sua lírica e de perseguir os ideais estéticos em voga.


REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, SP: Cultrix, 41ª ed., 2003.
CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2002.
DUARTE, B. M. Alexei Bueno e a escrita de Uma história da poesia brasileira. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Sistema de Bibliotecas ? SIB, 2011.
DUTRA, Waltensir. O Arcadismo na poesia Lírica, Épica e Satírica. In: A literatura no Brasil: era barroca, era clássica. COUTINHO, Afrânio. (dir.), São Paulo, SP: Global Editora, 1997.
FAUSTINO, Mário. De Anchieta aos Concretos. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2003.
GONZAGA, T. A. Marília de Dirceu. VirtualBooks. Disponível em: http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/marilia_de_dirceu.htm. Acessado em: 20/06/2011.