A LIBERDADE NOS TEXTOS 'A NÁUSEA', 'O SER E O NADA' E 'O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO'

Por Andressa S. Silva | 20/02/2011 | Filosofia

"Liberdade é o que você faz
com o que tem sido feito para você"
Sartre

Nestas obras pode-se obter a teoria básica, o alicerce do existencialismo de Sartre. Estas três obras mostram que uma possível natureza humana não existe na realidade, assim sendo, não há uma definição do homem que seja prévia ao ato de existir. Em outras palavras: não há uma essência precedente, capaz de determinar aquilo que cada indivíduo vai ou deve ser.
Pudemos verificar que nos escritos de Sartre, o conceito de liberdade está associado à solidão, responsabilidade, angústia, conhecimento e escolha.
Faz-se mister estudar as obras ? O Existencialismo é um Humanismo, A Náusea e O Ser e o Nada ? com o propósito de averiguar com maior exatidão as bases do existencialismo e, por conseguinte, do conceito de Liberdade para Sartre.

1 A náusea
Na sua primeira novela (A Náusea), de 1937, Sartre busca destituir de suas bases tudo aquilo que possa emprestar um sentido à existência do homem; põe-se em dúvida o sentido da existência humana em geral, e também o sentido do outro ? de Deus, da história, das artes. A experiência da náusea, descrita em detalhes, mostra-se aos poucos uma força reveladora, neste texto.
Foi uma das primeiras formulações bem divulgadas do pensamento existencialista. Foi escrito sob a forma do diário de Roquetin, historiador que busca refúgio na cidade de Bouvilles, fictícia. Segundo Marcondes (2007), seria a cidade Le Havres, onde Sartre exerceu seus primeiros anos de magistério.
Roquetin escreve nesse refúgio a biografia de um nobre francês do século XVIII, o Marques de Rollebon. O decorrer do texto é, então, uma narrativa do cotidiano de Roquetin, fazendo-se caricaturas de personagens burgueses com quem tem a oportunidade de se encontrar no dia-a-dia em Bouvilles, e, ao mesmo tempo, sua tomada de consciência do vazio e do absurdo de sua existência ao mesmo tempo em que realiza pesquisas na biblioteca da cidade sobre o marquês.
Ao iniciar suas pesquisas, Roquetin passa a perceber que vem mudando do decorrer das pesquisas:

"Alguma coisa me acontece, já não posso mais duvidar. (...) não foram necessários mais do que três segundos para que todas as minhas esperanças fossem varridas." (Sartre, 1986, p. 168).

Fica aqui a informação de que Roquetin foi aos poucos percebendo a existência, sem saber que a é, e vendo como se dá a mudança pessoal, a partir dessa percepção.
No decorrer da narrativa, Roquetin percebe que as pessoas nem sempre podem perceber o absurdo das próprias existências, mas que ele, Roquetin, o percebe. E acrescenta alegando que o sentimento de absurdo seria a chave da consciência da própria existência, a saber:

"Éramos um monte de existências enfadadas, embaraçadas de nós mesmos, sem a menor razão para estarmos aí, nem uns nem outros; cada existente, confuso, inquieto, sentia-se demais em relação aos outros. (...) E eu ? fraco, enlanguecido, obsceno, digerindo, movendo mornos pensamentos ? eu também era demais (...) A palavra absurdo nasce agora sob a minha pena (...) E sem nada formula claramente , compreendi que havia encontrado a chave da existência, a chave de minhas náuseas, de minha própria vida. De fato, tudo o que consegui aprender em seguida se reduz a essa absurdidade fundamental." (Sartre,1986, p. 163-4)

Essa percepção do absurdo gera a náusea, um sentimento de repulsão, de ira e cólera que se manifesta contra esse absurdo, apenas para as pessoas que percebem esse absurdo inicial.

"Mas eu, há pouco, fiz a experiência do absoluto: o absoluto ou o absurdo. (...) Eu não estava surpreso, sabia que era o Mundo, o Mundo em sua nudez que se mostrava repentinamente, e eu sufocava de cólera contra esse grande absurdo." (Sartre, 1986, p. 170)

O sentimento da náusea é como a concretização da tomada de consciência do absurdo. Mas ao compreender o processo de absurdo pelo qual passa, ao viver a própria náusea de maneira intensa, Roquetin paradoxalmente encontra a sua liberdade. Essa tomada de consciência se descreve detalhadamente no final do romance.
Assim, no romance A náusea, a liberdade está associada ao conhecimento de si mesmo, bem como à angústia.

2 O Ser e o Nada
Obra complexa de Sartre, extensa, e que trata de assuntos diferentes. Não foi escrita como um romance ou uma novela, e sim como livro filosófico propriamente dito. Trata, no decorrer do texto, das teses fundamentais do existencialismo, da intersubjetividade e da liberdade.

2.1 teses fundamentais do existencialismo
Nesta obra Sartre aprofunda os conceitos de ser em-si e para-si. Reale e Anistieri (2006, p. 228), definem estes dois termos da seguinte maneira:

"A consciência é sempre consciência de algo, algo que não é consciência. O exame da consciência mostra-nos que desde o início o ser em-si, isto é, os objetos que transcendem a consciência, não são a consciência. Eu tenho consciência dos objetos do mundo, mas nenhum deles é minha consciência. (...) O que tem consciência é o para-si. A consciência que vem a ser a existência, ou o homem é, portanto, absolutamente livre. (...) A consciência não é um objeto. O ser é pleno e completo. (...) A consciência é liberdade."

Corrobora com a definição de ser para-si proposta pelo próprio Sartre:

"O em-si é pleno de si mesmo e não se poderia imaginar plenitude mais total, adequação mais perfeita do conteúdo ao continente: não existe o menor vazio no ser, a menor fissura por onde pudesse introduzir o nada." (Sartre, p. 116)

Entretanto, o homem é o ser que transmite o nada, que carrega o nada para o mundo. E esse nada se transmite para o mundo por meio da tomada de consciência, da percepção do absurdo que é a essência de nossa existência: "O homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo" (Sartre, p. 60).
Mas o homem, o ser para-si, consciente, também é definido como ser para os outros. O outro não é aquele que é visto por mim, mas aquele que me vê. Reale e Anistieri (2006, p. 229) comentam que:

"O olhar de outro me fixa e me paralisa, ao passo que, quando o outro estava ausente, eu era livre, isto é, era sujeito e não objeto. Quando aparece o outro, portanto, nasce o conflito."

Este conflito mostra que, pelo olhar de outros, a pessoa perde a autonomia, perde a liberdade. Assim, pode-se perceber que a liberdade está associada à solidão.
No livro O Ser e o Nada, Sartre afirma que a consciência de si mesmo é responsável por ela mesma, Mas não desconsiderando o outro ser, uma outra consciência:

" O para-si é responsável em seu ser por uma relação com o em-si ou, se preferir, ele se produz originariamente sobre o fundamento de uma relação com o em-si. (...) A consciência é um ser para o qual se trata, em seu ser, do problema de seu ser enquanto esse ser implica um ser outro que não ele." (Sartre, p. 220)

"A consciência nada tem de substancial, é uma pura ?aparência?, no sentido de que só existe na medida em que aparece." (Sartre, p. 23). E só pode aparecer na medida em que é vista por outras pessoas. Só mostramos nossa consciência por que outras pessoas nos vêem, e assim ela toma forma e aparência.

"O ser da consciência não coincide consigo mesmo em uma adequação plena... A característica da consciência é que ela é uma descompressão do ser. É impossível, com efeito, defini-la como coincidência consigo própria. Desta mesa, posso dizer que ela é pura e simplesmente esta mesa. Mas de minha crença (por exemplo), não me posso limitar a dizer que é crença: minha crença é consciência de crença." (Sartre, p. 116).

Assim, nesta obra, Sartre fala da necessidade da convivência com outros semelhantes, que possam nos mostrar nossa consciência, pois o em-si necessita do olhar de outros para perceber a própria consciência.

2.2 intersubjetividade
Complementando os conceitos de ser em-si e para-si, no livro O Ser e O Nada, Sartre fala da Intersubjetividade, de como o outro é importante na determinação da minha própria consciência. "O outro é, por princípio, aquele que me olha." (Sartre, p. 315), bem como "O olhar é, antes de mais nada, um intermediário que remete de mim a mim mesmo." (Sartre, p. 316), pois pelo olhar de outras pessoas pode-se refletir e pensar na própria existência. O olhar do outro mostra como cada um existe, cada ser para-si só pode perceber-se por meio do olhar de outro para-si.

"Quando sou visto, tenho, de repente, consciência de mim enquanto escapo a mim mesmo, não enquanto sou o fundamento de meu próprio nada, mas enquanto tenho o meu fundamento fora de mim. Só sou para mim como pura devolução ao outro." (Sartre, p. 318)

Na obra, Sartre comenta ainda a respeito da vergonha que um para-si sente ao perceber que está sendo observado por outro para-si, do incômodo que essa percepção traz:

"A vergonha é a vergonha de-si, ela é reconhecimento de que eu realmente sou esse objeto que o outro olha e julga. Só posso ter vergonha de minha liberdade enquanto ela me escapa para tornar-se objeto dado." (Sartre, p. 319)

2.3 liberdade
Na obra mais filosófica analisada neste trabalho, Sartre também deixou informações sobre o que seria o conceito de liberdade para ele. Começa afirmando que o que separa uma pessoa das coisas (o em-si do para-si) é apenas a liberdade:

"Somos separados das coisas por nada, apenas por nossa liberdade; ela é que faz que haja coisas com toda a sua indiferença, sua imprevisibilidade e sua adversidade, e que nós sejamos inelutavelmente separados delas, pois é sobre um fundo de nadificação que elas aparecem e que se revelam como ligadas umas às outras." (Sartre, p. 591)

Ainda refere-se à liberdade como resultado de escolhas que os homens são obrigados a fazer, onde "A natureza do passado é dada ao passado pela escolha original de um futuro" (Sartre, p. 578), ou seja, o passado só é passado porque escolhemos o futuro, e o passado não podemos alterar. E o tempo passado tem uma força intrínseca, que é o futuro, assim, o passado é forte na medida em que nele se localizam os acontecimentos que proporcionam a escolha do futuro, sendo que "A única força do passado lhe advém do futuro" (Sartre, p. 580).
Considerando que o passado não pode ser alterado, que nele realizaram-se as escolhas que torna o presente e o futuro reais, então, o conceito de liberdade neste texto está relacionado à escolha, responsabilidade e angústia: "A liberdade que é minha liberdade permanece total e infinita." (Sartre, p. 632), visto que um homem não tem capacidade de livrar-se da liberdade; sendo então obrigado a ser livre e exercer esta liberdade, o homem deve ter consciência de sua responsabilidade: "Eu sou responsável por tudo, salvo minha própria responsabilidade, por que eu não sou o fundamento de meu ser" (Sartre, p. 641). O homem não pode deixar de ser livre, o que gera a angústia.

"A liberdade é o único fundamento dos valores e nada, absolutamente nada, me justifica ao adotar tal ou tal valor, tal ou tal escala de valores. Enquanto ser pelo qual os valores existem eu sou injustificável. E minha liberdade se angustia de ser o fundamento sem fundamento dos valores" (Sartre, p. 76).

Assim, no livro O Ser e o Nada, Sartre associa o conceito de liberdade à angústia, responsabilidade e escolha.

3 O Existencialismo é um Humanismo
O título da obra O Existencialismo é um Humanismo justifica-se pela posição sartreana de que o existencialismo seria a única visão filosófica que deixa ao homem uma possibilidade de escolha. No início desta obra, Sartre afirma a existência de dois tipos de existencialistas, os cristãos e os ateus, assunto que já foi abordado neste trabalho. Então seria um humanismo por que auxilia o homem nesta caminhada em busca da própria elaboração como ser humano.
Para Sartre, o homem se constitui de angústia, que se manifesta na oportunidade de decisão, e não frente à morte, como anteriormente associado por outros filósofos. O homem não pode escapar das escolhas, pois se vê obrigado a esse compromisso. Assim então, já que o homem não pode escolher sobre a possibilidade de escolher ou não, sua escolha é exatamente a de não escolher. "Sou responsável por mim mesmo e por todos, e crio uma certa imagem do homem que eu escolho: escolhendo a mim, escolho ao homem" (Sartre, 1987, p. 27).
Nesta mesma obra (p. 24), temos o primeiro princípio do existencialismo, a saber:

"Se Deus não existe, há ao menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por algum conceito e que esse ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. (...) O que significa aqui que a existência precede a essência? Isso significa que, primeiramente, existe o homem, ele se deixa encontrar, surge no mundo, e que ele só se define depois. O homem tal como o concebe o existencialista não é definível por que, inicialmente, ele nada é. Ele só será depois, e ele será o que se fizer. Assim, não existe natureza humana, já que não há Deus para concebê-la. O homem é apenas não somente tal como ele se concebe, mas como ele se quer, e como ele se concebe após existir, como ele se quer depois dessa vontade de existir ? o homem é apenas aquilo que ele faz de si mesmo. Tal é o primeiro princípio do existencialismo."
(Sartre, 1987, p. 03).

Dizer que a existência precede a essência implicou na ocorrência de críticas. Mas Sartre esclarece o assunto:

"Que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem, antes de mais nada, é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no futuro (...) Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de por todo o homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem é o responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens."
(Sartre, 1987, p. 04).

Apesar de todas as críticas e dos sentimentos de angústia e orfandade declarados no decorrer da obra, Sartre termina o texto deixando uma mensagem de otimismo, em que demonstra acreditar num futuro mais claro e promissor à humanidade, decorrente da tomada de consciência do absurdo e das escolhas que somos obrigados a fazer.
Estas escolhas dizem respeito não só ao homem individualmente, mas a muitas pessoas em volta: "Nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela engaja a humanidade inteira." (Sartre, 1987, p. 26). Deve-se atentar para o fato de que, qualquer que seja a escolha feita, implica em inclusão de outras pessoas, as que estão em nossa volta, e às vezes alguns desconhecidos também. Se alguém opta por agir dentro das leis, seguindo todos os seus deveres de cidadão, por exemplo, então provavelmente não comprometerá a vida de nenhuma pessoa em sua volta. Entretanto, seguindo o mesmo exemplo, se alguém opta por transgredir alguma regra, e matar uma pessoa, por exemplo ? fato muito freqüente nas obras de Sartre ? então implica em sofrimentos para a família dessa vítima, aos amigos, e à consciência do assassino. Neste sentido, no da reflexão sobre as atitudes tomadas, Sartre refere-se à abrangência da responsabilidade que qualquer ação nossa possa cometer.
Ainda nesta obra, Sartre descreve o seu conceito de má-fé, sendo relacionado às desculpas que qualquer homem possa dar aos seus atos, ao não reconhecer sua liberdade, que é absoluta e necessária: "Todo homem se refugia na desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo é um homem de má-fé." (Sartre, 1987, p. 81). O homem é, então, responsável pelos seus atos, pelo uso que faz de sua liberdade, deve estar engajado no projeto do que faz com sua própria liberdade com sinceridade e afinco, pois só é homem, só é um ser para-si ao passo em que atua nos próprios projetos e neles acredita: "Cada vez que o homem escolhe seu compromisso e seu projeto com toda a sinceridade e com toda a lucidez, torna-se-lhe impossível preferir um outro." (Sartre, 1987, p. 79); "O homem é apenas seu projeto, só existe na medida em que se realiza, ele é tão-somente o conjunto de seus atos." (p. 55)
Desta forma, na obra O Existencialismo é um Humanismo, pode-se associar a liberdade aos conceitos de angústia, bem com o de responsabilidade.

REFERÊNCIAS:

JAPIASSÚ, H. e MARCONDES, D. Dicionário básico de Filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2006.
MARCONDES, D. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2007.
REALE, G e ANISTIERI, D. História da filosofia: de Nietzsche à Escola de Frankfurt. Tradução: Ivo Sorniolo. São Paulo: Paulus, 2006. (Coleção história da Filosofia, v. 6).
SARTRE, JP. O existencialismo é um humanismo. 3. ed. Trad: Rita Correia Guedes. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os pensadores).
____________. El Ser Y La Nada. Disponível em: HTTP://www.4shared.com. Acesso em 05 de junho de 2010.
___________. A Náusea. 6. ed., Trad: Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
SILVA, AS. O conceito de Liberdade segundo a teoria existencialista de Sartre. Monografia. Brasília: Universidade Católica de Brasília/UCBV, 2010. 42 p.