A Liberalização de Serviços Financeiros proposta pela Organização Mundial do Comércio
Por Sérgio Santos | 02/05/2017 | EconomiaIntrodução
A internacionalização do sistema financeiro mudou o status das finanças mundiais, transformando-se em um dos grandes temas da agenda econômica, devido à importância das operações bancárias nos ciclos econômicos e aos processos de liquidez global.
Em dezembro de 1997, foi discutido na Organização Mundial do Comércio – OMC, em Genebra (Suiça), um acordo mundial para a liberalização de serviços financeiros. Com isso, completou-se a estratégia de liberalização dos principais setores de evolução da economia internacional para o século XXI que se iniciou com o acordo de informática e pelo acordo dos serviços de telecomunicações.
Quando foi proposto o primeiro acordo, os EUA preferiram o adiamento a ter um compromisso inadequado, alegando que a Ásia e a América Latina não tinham apresentado propostas satisfatórias.
Pretendeu-se que o Acordo de Genebra fosse aprovado para entrada em vigor antes da Rodada do Milênio (Seatle, 1999) para a liberalização de todo o setor de serviços. Porém, a Rodada resultou num inesperado fiasco pois não houve a tão esperada declaração que orientaria as negociações multilaterais sobre o comércio internacional (regras da globalização produtiva).
O Acordo de Genebra
O Acordo de Genebra visava atingir os setores de finanças de cada país que atualmente são dominados por instituições nacionais em proporções diferentes. Os países centrais pressionaram os países emergentes para que abram seus mercados para a participação estrangeira de serviços financeiros e de seguros, argumentando que um novo adiamento nas rodadas de negociação poderia provocar mais incertezas nos mercados financeiros internacionais e, dessa forma, conseguir um acordo para a abertura total do mercado financeiro mundial.
Os maiores alvos foram os países que impedem a participação do controle acionário nas instituições locais. Foram feitas cerca de 52 ofertas de liberalização dos 70 países que estavam presentes nas rodadas de negociação, entre eles, a Bolívia, Sri Lanka, Honduras, Paquistão, Turquia e Eslovênia.
Os estudos da OMC sobre serviços financeiros e estabilidade financeira mostra a diferença entre fluxo de capitais e comércio de serviços cross border, pelo qual um cliente local utiliza os serviços de um banco estrangeiro. No entanto, o fornecimento desse serviço exige a liberalização de fluxos de capitais.
O fato é que os serviços financeiros são essenciais nas economias modernas para o funcionamento do comércio externo e como valor agregado, atingindo 19% do PIB nos EUA e 10% do PIB na Suíça e 4,9% em termos médios no PIB dos paises da CEU.
Os 52 países que ratificaram o acordo representavam 90% do mercado mundial de serviços financeiros, visto que os haveres bancários atingem atualmente cerca de US$ 40 trilhões e de US$ 1 trilhão de transações diárias. Pela regra Most Favoured Nation - nação mais favorecida -, regra básica do comércio multilateral, não pode haver discriminação entre as nações, sendo obrigado um tratamento igualitário entre todos os países.
Embora vários países emergentes se queixaram do rolo compressor dos países industrializados, nenhum deles pretende manter seus respectivos sistemas fechados. As autoridades dos países emergentes estudam duas possibilidades: um sistema de taxação sobre os capitais que deixam o país ou cláusula de investidores mais favorecidos e com interesses de longo prazo com mais liberdade no movimento de capitais.
Existe a opinião de que o acordo de liberalização de serviços financeiros ficou comprometido diante das crises financeiras sistemicas. No entanto, esta é uma percepção equivocada pois não se está liberalizando o fluxo de capitais, mas a possibilidade de que as instituições estrangeiras atuem nas mesmas condições que as instituições nacionais.
As Crises Sistêmicas
Com a globalização e a proximidade virtual, via informática, os mercados ficaram mais integrados e acessíveis, tornando as instituições financeiras organizações de abrangência global. Como as crises sistêmicas derivam de choques inesperados que mudam as estruturas de risco, se tornou necessário ajustar os procedimentos de supervisão e regulamentação financeira para a crescente internacionalização dos agentes no mercado financeiro, criando mecanismos de proteção que possam ajudar as autoridades regulatórias a perceber qualquer tipo de turbulência (o que faltou justamente para a crise de 2008).
Por isso, a implantação de medidas de salvaguardas devido a fragilidade de sistemas financeiros cujos efeitos colaterais se espalham rapidamente por todo o ambiente econômico. É necessário, portanto, uma nova estrutura cujo objetivo seria dar condições para que as instituições supranacionais garantam as dívidas e títulos de países com problemas de liquidez, exigindo melhor transparência na divulgação de dados e o fortalecimento da regulação das instituições financeiras locais.
No entanto, não se pode permitir que os bancos centrais se transformem em seguradoras de créditos criando riscos morais, uma propensão para um comportamento cuja crença é de que sempre haverá socorro baseada na santa doutrina do to big to fail - grande demais para falir.
Crise Asiática
Por exemplo, a crise asiática do final dos anos 90 foi na verdade uma crise bancária de quatro países - Coréia do Sul, Tailândia, Indonésia e Malásia - causada pela possível inadimplência em empréstimos interbancários de curto prazo. Os governos desses países desenvolveram sistemas financeiros fechados e pouco transparentes de forma a levar adiante as metas nacionais concedendo empréstimos contra garantias inconsistentes cuja inadimplência atinge um montante equivalente a 13% do PIB total. Caso não houvesse uma abordagem direta para restaurar o setor bancário, o sistema econômico desses países poderia entrar em colapso, sendo necessário um grande esforço para assegurar que uma nova crise asiática não prejudicasse a economia mundial.
A China decidiu se antecipar propondo medidas de saneamento e modernização de seu sistema financeiro, reestruturando os bancos comerciais e o banco central, adotando um modelo similar ao banco central americano.
Taiwan e Singapura não apresentaram sinais de crise por possuírem uma legislação bancária mais eficiente, dívidas externas pequenas e grandes reservas em moeda forte.
O Japão, maior exportador de capitais, possui créditos inadimplentes de US$ 580 bilhões, sendo rico demais para solicitar ajuda externa, podendo resolver sozinho os seus problemas.
Diante desse quadro, o sistema financeiro asiático poderia adotar um processo de reestruturação com consequente etapa de fusões e liquidação de instituições financeiras.
Crise Americana
A crise de 2008 foi o pior período da crise econômica e acredita-se que essa foi pior do que a Grande Depressão, de 1929. Acreditou-se que as famílias não iriam abusar do crédito fácil e que os bancos não iriam abusar da falta de controle. Mas, no final, o que constatou-se é que esta era uma crença perigosa sem nenhuma comprovação empírica. Essa crise mostrou que a falta de regulamentação dos mercados é extremamente perigosa.
Por isso, o objetivo do discurso do então presidente G.W.Bush que “O mercado não está funcionando corretamente. Houve uma perda generalizada de confiança e grandes setores do sistema financeiro da América estão em risco", era explicar aos americanos o porquê do governo custear centenas de bilhões de dólares para socorrer bancos à beira da falência por conta de investimentos em títulos podres e que iria contra toda uma ideologia defendida pelos seus governantes durante décadas.
O Acordo na Ásia
A resistência para abrir os mercados financeiros vieram principalmente dos países da Ásia. Vejamos abaixo:
- Coréia do Sul - apresentou uma oferta de liberalização incompreensível;
- Malásia - impôs limites de 49% no controle acionário de suas instituições;
- Singapura - dado como o maior exemplo de liberalização financeira, restringiu a participação estrangeira nos bancos locais;
- Indonésia e Tailândia - mantiveram as estruturas familiares que dominam o sistema bancário;
- Índia e a África do Sul - não quiseram se comprometer com prazos para apresentação de ofertas uma vez que acham que já abriram demais seus mercados.
O Acordo na America Latina
No quadro financeiro da região há pequenas economias que são paraísos fiscais, grandes economias com sistemas financeiros fechados e economias abertas com sistemas tecnologicamente atrasados. A Argentina e o México acompanham os EUA na defesa de uma abertura total. Posição contrária assumida pelo Brasil, o Chile e a Colômbia que se utilizam de salvaguardas prudenciais para a abertura de seus mercados.
Com sistemas financeiros despreparados, os países latinos querem antes reforçar suas instituições para depois abrir seus mercados. Além disso, existe a dificuldade em compatibilizar as normas de abertura e funcionamento dos diversos sistemas financeiros de uma determinada região, principalmente na América Latina.
O Mercosul iniciou as discussões sobre temas relacionados com princípios de liberalização do comércio de serviços, prescritos no Tratado de Assunção. O CMC – órgão do Mercosul responsável pelo cumprimento dos objetivos e prazos estabelecidos no Tratado – aprovou o Protocolo de Montevidéu sobre o comércio de serviços do Mercosul, durante sua XIII reunião ocorrida em 1997.
Argentina, Paraguai e Uruguai apresentaram listas de pedidos de compromissos específicos, tendo em vista a visão de uma integração plena dos serviços financeiros em nível regional e a ampliação dos esforços para a superação das assimetrias existentes sobre capital mínimo, classificação de devedores, provisionamentos e limites de crédito.
Além disso, planeja-se a realização de uma supervisão global consolidada, o acompanhamento da evolução da regulação cambial e da movimentação de capitais e a possibilidade de inclusão de outros parceiros comerciais.
O Acordo no Brasil
O Brasil concordou em rever os novos compromissos de liberalização do setor financeiro após aprovada a regulamentação do artigo 192 da Constituição brasileira, que dispõe sobre o sistema financeiro nacional. Um desses compromissos era o de dispensar a necessidade de decreto presidencial para que instituições estrangeiras se estabeleçam no Brasil e sobre a eliminação do contingenciamento do número de agências de bancos estrangeiros, que era é uma exigência legal.
O Brasil também foi cobrado a especificar sua proposta de abertura de escritórios de representação de bancos estrangeiros que não necessitam de sanção presidencial porque não possuem presença comercial e, dessa forma, não podem exercer atividade bancária.
“Constituição Federal, Emenda Constitucional 40/2003)
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.
Art. 52. Até que sejam fixadas as condições do art. 192, são vedados:
I - a instalação, no País, de novas agências de instituições financeiras domiciliadas no exterior;
II - o aumento do percentual de participação, no capital de instituições financeiras com sede no País, de pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior.”
Parágrafo único. A vedação a que se refere este artigo não se aplica às autorizações resultantes de acordos internacionais, de reciprocidade, ou de interesse do Governo brasileiro.”
O governo brasileiro garantiu que as instituições estrangeiras poderiam ter presença com controle total do capital votante na área de resseguros e na abertura de novas atividades financeiras como factoring e administração de cartões de crédito. Apesar das pressões, o Brasil não concordou que o processamento de dados dos bancos estrangeiros seja feito fora do país.
O Brasil não tem a intenção de atrasar os compromissos assumidos mas precisa de tempo para montar uma regulamentação adequada e testar o seu impacto, criando capacidade institucional para lidar com a uma nova realidade. Antes tinha-se uma situação closure e agora uma realidade de mercado aberto, ainda que pela via de exceção. Essa realidade é demonstrada pelo aumento da participação estrangeira no sistema financeiro nacional que soma 155 instituições financeiras, de acordo com dados divulgados pelo BACEN em 2015 (26% do total de instituições, não incluidas as cooperativas de credito).
Em 1985, o sistema financeiro nacional possuía um tamanho de 12,4% do PIB, e atualmente a proporção é de 6% do PIB (IBGE, 2016). O processo de ajuste dos bancos brasileiros surgiu da percepção de que eram necessárias medidas para a transição do sistema financeiro nacional para um cenário de estabilidade, devido ao fim da receita inflacionária.
Além da constituição da Central de Risco, da formação de um fundo de garantia de créditos, do aumento da exigência de capital mínimo e do poder de intervenção e fiscalização do Banco Central, o Conselho Monetário aprofundou as medidas na direção de prevenção de crises com a maior transparência das demonstrações financeiras e a adoção de diretrizes de melhores práticas bancárias. Com isso, o Brasil colocou o sistema financeiro nacional em condições de enfrentar as turbulências globais.
Conforme previsto, o mercado brasileiro tem espaço apenas para dois tipos de bancos: os bancos de amplitude nacional e os bancos locais configurados na dualidade regionalização/segmentação com pouco espaço para bancos médios e, como resultado, a continuidade das fusões, aquisições e incorporações de instituições financeiras.
No entanto, um processo de fusão/incorporação somente se justifica se os ganhos de escala forem acompanhados pela amortização de custos fixos. A sobrevivência em ganhos de escala parece fácil em bancos de rede, mas essa não é uma verdade quando se trata de bancos pequenos ou médios sobre os quais não há respostas precisas.
O Brasil ratificou em 18/03/16 um protocolo de compromissos sobre serviços financeiros na Organização Mundial do Comércio (OMC), confirmando a abertura do mercado brasileiro para as resseguradoras estrangeiras, não podendo criar barreiras para além do limite já estabelecido à entrada de capital estrangeiro nesse setor (atualmente, as resseguradoras estrangeiras podem se estabelecer no Brasil como corretoras de seguros, mas sua presença é limitada a 50% do capital total da companhia e a 33% de seu capital votante). No setor bancário, permanece a regra de que de autorização do Banco Central do Brasil e de decreto do Poder Executivo.
Conclusão
A idéia de liberalizar o mercado financeiro mundial não está sendo exatamente abraçada pelas nações que, temerosas de perda de sua própria soberania, classificam-na de algo questionável, mas o diagnóstico sobre a necessidade de supervisão do sistema financeiro global contra a sua própria instabilidade dificilmente será contestado.