A LEITURA E SEU CAMPO DE COMPLEXIDADES
Por Williani Almeida Carvalho | 05/08/2010 | EducaçãoRESENHA
A LEITURA E SEU CAMPO DE COMPLEXIDADES
JOUVE, Vincent. A leitura. Trad. Brigitte Hervot. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
O autor Vincent Jouve, linguista da Universidade de Reims, França, apresenta-nos em seu livro "A leitura", um universo de possibilidades hermenêuticas com relação ao ato de ler. Em sua obra, Jouve propõe a análise de teorias relacionadas à leitura, teorias estas que organizaram e sistematizaram o sentido da leitura para o leitor. A partir de um reconhecimento acurado de tais teorias, sua obra é direcionada tanto aos pesquisadores quanto para os leitores leigos que queiram se aprofundar na análise sobre o que acontece quando alguém imerge no universo da leitura, seja ela dos mais variados estilos.
Na parte introdutória do livro, Jouve destaca a força da leitura e seu impacto na vida dos leitores, e o processo evolutivo que as teorias ganharam ao longo dos tempos. Num primeiro momento, o autor menciona a insuficiência do estruturalismo na leitura. O estruturalismo era um tipo de abordagem restrita da leitura que reduzia o texto a uma série de formas, o que comprometia a essência da leitura, uma vez que um estudo limitado de estruturas produzia modelos demasiadamente generalizados e uma abstração que não permitia entender as particularidades de um texto.
Nos anos 70, a linguagem era considerada como um processo de informação era o chamado campo tradicional dos estudos referentes à leitura, a partir dos anos 80, os estudos apontavam a importância da linguagem como ação sobre o interlocutor. Jouve mostra a possibilidade de compreender a realidade ou de penetrar nos mais recônditos de nossa mente. Ler, portanto, é como uma tentativa de resgatar uma realidade e não de se distanciar dela, o que permite-nos entender o leitor não como um mero objeto passivo ou recebedor de uma mensagem, mas como alguém que possui uma infinito potencial diante do que lê.
No capítulo primeiro intitulado "O que é leitura"? Jouve destaca a complexidade do ato de ler quando menciona as várias facetas da leitura, apontando os caminhos de identificação entre leitor e leitura. Dentre tais caminhos, ele destaca as teorias sobre a leitura e suas dimensões. Como um processo neurofisiológico, Jouve faz menção da tese de François Richaudeau que demonstra um subjetivismo quanto ao ato de ler na medida em que propõe que ler significa um processo de memorização entre frases longas e curtas, o que reduz a capacidade do leitor de desvendar a leitura uma vez que a coloca no campo da percepção neurosensorial.
Dentro do campo cognitivo, a leitura se torna um processo de decifração de signos e de entendimento desses signos, engajada no campo da progressão e da compreensão, a leitura se reduz ao campo da competência, onde o leitor deve possuir um mínimo de "saber" a fim de prosseguir e acompanhar a leitura em suas nuances e pressuposições.
Este é tão somente uma das várias sendas que Jouve nos conduz, onde ele demonstra o processo afetivo, argumentativo e legítimo da leitura. Esses processos mostram a relação que existe entre sujeito e o ato de ler como parte da capacidade receptiva do leitor, assim, ele pode embrenhar-se num caminho pela leitura que o desperte às mais variadas sensações, seja no campo das emoções, seja no campo da argumentação, o importante é que se destaque o que deve ser retido ou não por aquele que lê. Enfim, o autor destaca o caráter específico que cada leitura admite e que permite uma relação de sentido para quem lê das mais variadas formas, assim, tentar teorizar o leitor como as diversas escolas de pensamento fizeram se torna tarefa impossível.
No segundo capítulo, sob o título "Um quebra-cabeça teórico: o leitor é pensável?", Jouve ressalta o caráter multifacetado do leitor, onde são destacadas as várias tipologias entre a instância textual e o narrador, tais como: narrador autodiegético, homodiegético e heterodiegético. Nessas abordagens, Jouve destaca o autor de um texto como instância produtora e o narrador como pertencente à instância textual. Mas, o que é interessante considerarmos na análise do autor é que o leitor de um texto não se constitui numa figura una, mas sim, oscila entre um leitor que é real e virtual. O leitor por seu turno de leitura subdivide-se em narratário intradiegético e extradiegético. O primeiro seria o narratário-personagem e narratário-interpelado, e o segundo seria o narratário oculto. Cada um dos autores que distinguem tecnicamente as terminologias com relação aos tipos de leitores têm uma concepção única acerca do termo, como por exemplo, Genette considera o leitor virtual como narratário oculto, Iser o chama de ?leitor implícito? e Eco de ?leitor modelo?, etc. Mas, Picard distingue o leitor concreto que se situa fora do texto e afirma que sua existência independe deste, e propõe uma outra subdivisão em que ele denomina de ?ledor?, que seria o indivíduo que segura o livro e mantém contato com o mundo externo, também o ?lido? que seria o inconsciente do leitor que reage à influencia do texto e, finalmente, o ?leitante?, uma instância crítica que se interessa pela complexidade da obra.
Jouve chama a atenção para o fato de que essas diferentes abordagens estabelecem um limite entre o "mundo do texto" e o "mundo fora do texto". Tal análise permite-nos entender duas partes quanto ao campo da leitura, a primeira diz respeito ao leitor que é inscrito no texto e a segunda, um leitor concreto, que segura nas mãos o livro. Entre o que é real e o que é imaginário, Jouve tenta definir as relações entre leitor abstrato e o concreto, segundo ele, um não pode ser pensado sem o outro, ou seja, estão intrinsecamente ligados. A título de conclusão do capítulo, o autor afirma que o que importa é a capacidade de influência que um texto exerce sobre o leitor e sua capacidade de construção, seja ela no mundo concreto ou no imaginário.
A partir dos pressupostos teóricos abordados no capítulo três intitulado: "Como se lê? Jouve mantém o nível de discussão do segundo capítulo e resgata as teorias de Iser e Eco, onde ressalta não ser possível desconsiderar a contribuição do leitor em seu trabalho de reconstrução de sentidos de um texto, uma vez que o universo do mesmo é estruturalmente incompleto. Jouve lança mão da teoria de dois autores Hamon, que fala sobre o ?legível e o ilegível? na leitura de um texto e de Otten que demonstra ?os espaços de certeza? e os ?espaços de incerteza?, quando se trata de analisar o que existe de explícito e subentendido numa obra.
A partir dessa análise, Jouve discorre sobre a dimensão dependente do leitor e amplia as discussões da teoria de Otten sobre os ?espaços de incerteza? e a de Hamon sobre o ?ilegível? ao mencionar a centralidade nos espaços de indeterminação, que na abordagem de Iser, na obra "O ato da leitura" (1976), seria o que chamaríamos de ?vazio? e ?negação?. Jouve ainda destaca o trabalho de previsão do leitor, quando postula que no ato da leitura, o leitor pode antecipar o conteúdo narrativo, por meio da formulação de hipóteses e previsões, o que permite uma simplificação no entendimento de um texto. O trabalho de ?previsão? está na importância da descoberta do leitor no decorrer da leitura, em que ele pode confirmar, refutar ou confirmar as possíveis hipóteses abarcadas na leitura de um texto. Segundo Jouve "o trabalho de previsão está na origem dessa redescoberta de si, que é um dos efeitos essenciais da leitura" (p. 77). Sem essa dinâmica, a leitura torna-se algo frio e sem sentido para quem a ela se submete.
Na discussão do capítulo quatro, Jouve relata os níveis de leitura, apontando os vários sistemas interpretativos postulados ao longo da história. Um desses exercícios é o que diz respeito ao da exegese bíblica, que tem como pressupostos teóricos e interpretativos quatro níveis de sentido: o literal (o texto como está escrito), o alegórico (o anúncio do Novo Testamento no Antigo), o Tropológico (conteúdo ético da narrativa) e o anagógico (valor da mensagem bílblica para o ser humano). Tais aspectos são importantes, pois neles o autor destaca a questão do efeito do texto na vida do leitor.
Segundo Jouve, o fato de uma pessoa ler um texto pode fazer com que o leitor proponha com essa leitura uma infinidade de significações, o que propicia a uma variação nos níveis de sentido de acordo com o texto. Diante dessa gama de possibilidades de sentido que um determinado texto pode apresentar, o autor destaca o trabalho da hermenêutica, que significa interpretar um texto, mais particularmente os princípios que regem um texto a fim de que haja a compreensão a partir de uma leitura centrípeta, ou seja, uma interpretação centrada e racionalizada que procura aceitar a complexidade de um texto tendo como ferramenta a hermenêutica na arte de interpretá-lo.
Em suma, o que Jouve tenta nos mostrar a partir dos capítulos finais, é justamente os possíveis efeitos suscitados pela obra. Para tanto, ele aponta-nos as leituras que exercem uma influência concreta e as que existem com o intuito de recrear e divertir o leitor. Jouve também enfatiza o efeito global e particular da leitura de uma obra para o indivíduo, quando menciona Jauss e Iser, pois no primeiro caso, há o impacto da leitura sobre a coletividade e no segundo, o impacto da leitura no campo pessoal. O que há de se levar em consideração é que essas maneiras de apreender os efeitos de uma obra podem fazer diferença no que se refere à apreensão e aplicação do conhecimento seja no âmbito individual ou coletivo.
Conclusão
A obra de Vincent Jouve representa uma sistematização sobre as teorias relacionadas à recepção e percepção da leitura e se constitui numa ferramenta básica para aqueles que desejam entender o universo de perspectivas teóricas que se abre a partir da leitura de um texto. Vale ressaltar que a obra representa um contributivo para os estudos referentes à amplitude de significações da leitura na vida do leitor, principalmente, para aqueles envolvidos com a área da Educação.
O livro se constitui numa compilação imprescindível para as descobertas do campo hermenêutico e possibilita uma compreensão entre a relação texto-leitor como algo dinâmico, receptivo e ativo ao mesmo tempo. Lançar mão da obra de Jouve é entender que um texto é evento de comunicação que pretende transmitir uma mensagem, mas também apresenta, entre outros fatores, a intensidade da leitura, a experiência de vida, onde o leitor tem a oportunidade de atribuir às palavras o sentido por ele conhecido e de estabelecer conexões entre o que se lê e a própria experiência subjetiva.