A LEI 9.614/98 (LEI DO ABATE) E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Por Luiza Damin Conrado | 13/11/2013 | Direito

A LEI 9.614/98 (LEI DO ABATE) E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

CONRADO, Luiza Damin¹

RESUMO

              Após uma breve análise acerca da Lei do Abate (9.614/98), constata-se que a mesma pode ser incompatível com alguns direitos fundamentais instituídos pela Carta Magna de 1988, por trazer em seu texto a possibilidade da implementação da pena capital ou de morte no Estado Brasileiro, quando dá a orientação de destruir uma aeronave em pleno vôo, na situação em que ocorre a não resposta desta aos meios de identificação, por esta ser considerada hostil à segurança nacional. Diante dessas considerações, depara-se com uma possível afronta aos direitos e garantias fundamentais, quais sejam o direito a vida, a presunção de inocência e o direito ao devido processo legal, todos amparados pela Lei Maior brasileira, sendo necessária a análise da constitucionalidade da Lei 9.614/98. Cumpre fazer um estudo em relação aos espaços de domínio do Estado, pois que, aplicando a lei do Abate, o Estado está defendendo a sua soberania. Ainda serão visto os direitos humanos, que também podem ser confrontados pela Lei do Abate. Para tal, faz-se uso de pesquisas bibliográficas, de cunho qualitativo e relativas ao assunto, com o objetivo de melhor elucidar o tema e solucionar o problema de pesquisa. O método utilizado é o dedutivo.

Palavras-chave: Lei do Abate. Soberania. Direitos Fundamentais. Direito à vida.

THE LAW 9.614/98 (SLAUGHTER LAW) AND FUNDAMENTAL RIGHTS PROVIDED IN FEDERAL CONSTITUTION OF 1988

ABSTRACT

              After a brief review about the Law of Abate (9.614/98), it appears that it may be incompatible with certain fundamental rights established by the 1988 Constitution, to bring in his text the possibility of the implementation of capital punishment or death the Brazilian State, when giving guidance to destroy an aircraft in flight, in the situation in which there is no answer to this means of identification, as this is considered hostile to national security. Given these considerations, faced with a possible affront to fundamental rights and guarantees, which are the right to life, the presumption of innocence and the right to due process, all backed by the highest law in Brazil, being necessary to analyze the constitutionality of the Law 9.614/98. Must do a study in relation to the space domain of the State, since, applying the law of Slaughter, the State is defending its sovereignty. Still be seen human rights, which can also be confronted by Slaughter Act. For this, use is made of bibliographical research, a qualitative and relative to the subject, in order to better clarify the issue and solve the research problem. The method used is deductive.

Keywords: Law of Abate. Sovereignty. Fundamental Rights. Right to life.

1 INTRODUÇÃO

            Todo país possui um território, e sobre este exerce domínio. O Estado é constituído por uma base territorial, uma comunidade de indivíduos e por uma forma de governo soberana (REZEK, 2000, p. 153).

            O Estado exerce domínio terrestre, marítimo e aéreo sobre seu território, em busca de defender esta soberania que lhe cabe, visto que este a exerce de forma completa e exclusiva.

            O objetivo do presente artigo é fazer uma verificação acerca da Lei 9.614/98, conhecida como Lei do Abate, a qual visa proteger o Estado de aeronaves transportadoras de drogas ilícitas e consideradas hostis à segurança nacional.

            O estudo se faz necessário pelo modo como é prevista a aplicação da referida lei, pois que, exercendo sua soberania em defesa do seu espaço aéreo, não são observados os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988.

            Os direitos fundamentais confrontados são: o direito à vida, que é um pressuposto para a existência dos demais direitos; o direito ao devido processo legal e a presunção de inocência, que objetivam, respectivamente, garantir o contraditório e a ampla defesa ao indivíduo e, a não condenação anterior ao transito em julgado de sentença penal condenatória e; a implementação da pena de morte no Brasil em tempos de paz, a qual é expressamente proibida.

            Passa-se, agora, a verificar se a lei do Abate respeita a Constituição Federal de 1988, no que diz respeito aos direitos fundamentais. Analisar os espaços do domínio do Estado e a soberania (domínio terrestre, marítimo e aéreo); verificar a Lei do Abate e a proteção do espaço aéreo brasileiro; analisar a teoria dos direitos humanos e dos direitos fundamentais previstos no artigo 5º. da Constituição Federal/88; verificar se a lei do Abate é compatível com a proteção dos direitos fundamentais, principalmente com o direito à vida, presunção de inocência e o direito ao devido processo legal.

            Este trabalho tem como base principal pesquisas bibliográficas, tendo cunho qualitativo relativas ao assunto, com o objetivo de melhor elucidar o tema e solucionar o problema de pesquisa. O método utilizado é o dedutivo.

2 DOMÍNIO DO ESTADO

            Todo país possui um território, que apresenta aspectos físicos diferentes, conhecidos como domínios do Estado. Este domínio estatal engloba o domínio terrestre, o domínio marítimo e o domínio aéreo. Antes de adentrar em cada um desses domínios, cabe, porém, proceder a conceituação dos elementos do Estado para que se possa analisar com mais embasamento o campo do domínio estatal das esferas relativas ao presente estudo.

           

2.1 ELEMENTOS DO ESTADO

            Conforme ensinamento de Rezek (2000, p. 153), o Estado é constituído por três elementos: uma base territorial, o território; uma comunidade de indivíduos nacionais e estrangeiros que habitam o território, a população e; uma forma de governo que não se subordina a qualquer outra autoridade, a soberania.

            O elemento território corresponde à porção da superfície terrestre onde o Estado exerce seu domínio, sua soberania. No que diz respeito à população, o termo engloba não somente a nação (que compreende os nacionais do país), mas também indivíduos estrangeiros que moram no país. O elemento soberania tem o significado de que, dentro do seu território o Estado impõe regras segundo a sua vontade (MAZZUOLI, 2009, p. 439).

            A soberania é fundamento do conceito de Estado, visto que é prevista no art. 1º, inciso I, da CF/88, que traz o seguinte texto:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-seem Estado Democráticode Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

            A soberania é uma característica essencial do Estado e se apresenta de forma suprema, em que o país não reconhece nenhum outro poder dentro de seu território e, de forma independente, pois não se sujeita a nenhum outro acima de si, não devendo submissão a qualquer órgão ou poder internacional (SILVA, 2008, p. 104).

2.2 DOMÍNIO TERRESTRE, MARÍTIMO E AÉREO

            Em relação ao elemento do Estado denominado território, que corresponde à  proporção de seu domínio terrestre, salienta-se que esse espaço engloba o solo e o subsolo, onde o país exerce autonomia plena, devendo, os outros Estados, respeito aos seus limites territoriais. Estes limites territoriais podem ser estabelecidos de duas maneiras distintas: a primeira se refere a elementos artificiais, determinados por convenções humanas através da latitude e da longitude e, a segunda, a elementos naturais, onde os limites territoriais são fixados por rios, lagos, divisores de águas ou quaisquer acidentes geográficos do solo. O Estado possui o direito de marcar territorialmente os seus limites (VARELLA, 2010, p. 201).

O direito exercido pelo Estado sobre o seu território é exclusivo, ou seja, nenhum outro Estado pode ter atuação sobre o território, a não ser que haja o consentimento do primeiro (SILVA e ACCIOLY, 2000, p. 109).

            O segundo domínio do Estado é denominado domínio marítimo, o qual se estende ao mar territorial, a zona contígua, a zona econômica exclusiva e a plataforma continental. Este domínio é exercido conforme a finalidade do interesse do Estado. O direito de passagem inocente é concedido obrigatoriamente pelo Estado somente aos navios que trafegam de forma contínua e rápida (VARELLA, 2010, p. 207-213).

            O direito de passagem inocente corresponde a um direito costumeiro que foi positivado pela Convenção de Montego Bay, de 1982. O seu conceito é restrito e em favor do Estado que permite a passagem, esta “que não é prejudicial à paz, ao bem ou à segurança do Estado costeiro” (VARELLA, 2010, p. 213-214), não existindo direito de passagem inocente nas águas internas do Estado e no espaço aéreo brasileiro.

            O mar territorial compreende o leito do mar, o subsolo e o espaço aéreo sobrejacente; a zona contígua é uma faixa adjacente e de igual largura ao mar territorial, onde a soberania estatal somente é exercida acerca da fiscalização sanitária, alfandegária e a imigração; na zona econômica exclusiva, também faixa adjacente ao mar territorial, há soberania para a exploração, conservação, aproveitamento e gestão de recursos e, na plataforma continental, o Estado exerce soberania exclusiva referente à exploração de recursos (SILVA, 2002, p. 174-175).

            O terceiro domínio do Estado é chamado de domínio aéreo, sendo constituído pelo espaço aéreo e pelo espaço aéreo extra-atmosférico. Entende-se como espaço aéreo todo o território nacional, incluindo o mar territorial. O Estado detém absoluta soberania em relação aos direitos em seu espaço aéreo, não existindo qualquer norma que garanta o direito de passagem inocente, devendo autorizar a aviação de outros países em seu território, que se dá mediante celebração de tratados ou permissão avulsa (MAZZUOLI, 2009, p.726).

            As aeronaves devem possuir uma nacionalidade apenas, que é determinada por sua matrícula ou registro e, sinais de identificação, que podem ser o prefixo do Estado ou as cores nacionais, em lugar visível, a marca da matrícula, a certidão e demais papéis de bordo. O princípio que rege atualmente “exige a nacionalidade do proprietário da aeronave para efeito do registro, isto é, somente pode ter aquela qualidade quem for nacional do Estado onde se fez o registro” (MAZZUOLI, 2009, p. 728).

            A condição jurídica das aeronaves no Brasil, segundo Mazzuoli (2009, p.729), se resume da seguinte forma:

a) aeronaves públicas brasileiras (ou a serviço oficial do Brasil): aplica-se-lhes a lei brasileira, onde quer que se encontrem (...)

b) aeronaves privadas brasileiras (ou estatais que se destinam à atividade privada): aplica-se a lei brasileira se estiverem em território nacional ou em sobrevôo em alto mar (...)

c) aeronaves públicas estrangeiras (ou a serviço oficial do governo estrangeiro): estão amparadas pela lei do seu país de origem, não se lhes aplicando a brasileira (...)

d) aeronaves privadas estrangeiras: aplica-se-lhes a lei brasileira quando em território nacional (em solo, nos aeroportos, ou em sobrevôo pelo território brasileiro), e a lei estrangeira quando em vôo ou em solo de país estrangeiro, salvo se este país não julgar o crime (CP, art. 7º, inc. II, alínea c), quando então a lei brasileira será aplicada.

            O espaço extra-atmosférico é também conhecido como cósmico ou sideral e constitui um prolongamento do espaço aéreo, sendo um patrimônio comum da humanidade, e, conforme Varella (2010, p. 215) “corresponde às regiões que não estão sob o domínio de Estado algum e cuja preservação é de interesse de toda a humanidade”.

            Cada Estado tem completa e exclusiva soberania sobre o espaço aéreo acima de seu território. Porém o direito de defesa e conservação não é um direito absoluto, sendo limitado pelo direito dos indivíduos à existência e conservação dos demais membros da comunidade internacional (SILVA e ACCIOLY, 2000, p. 108).

2.3 NORMAS INTERNACIONAIS SOBRE O DOMÍNIO AÉREO

            A Convenção de Paris, de 1919, foi o primeiro instrumento internacional a regular normas relativas ao espaço aéreo, onde afirma que o Estado exerce soberania plena e exclusiva sobre o domínio aéreo atinente à ele, instituindo o direito de passagem inocente da aeronaves de outros Estados. Precedendo esta, a Convenção da Aviação Civil Internacional, conhecida como Convenção de Chicago, de 1944, reforçava a tese da soberania absoluta do Estado sobre o seu espaço aéreo, porém, o direito de passagem ficaria pendente de autorização prévia do Estado soberano na região sobrevoada (MAZZUOLI, 2009, p. 725-726).

            Após eventos trágicos, que envolviam desde sequestros até tomadas de aeronaves civis, onde houve uma mobilização a nível internacional acerca da proteção do espaço aéreo, o que deu origem a diversos tratados relativos ao assunto (REZEK, 2000, p. 321).

            Dois tratados merecem destaque pela matéria, o primeiro, uma Convenção de 1963, que foi celebrada em Tóquio, disciplina as infrações que são praticadas a bordo de aeronaves e, o Protocolo de Montreal, firmado em 1984, que visava à proteção do tráfego aéreo dos abusos do Estado na preservação da segurança nacional, onde ficou estipulado que, qualquer Estado poderia interceptar e obrigar as aeronaves, no caso de civis ou comerciais, que adentrassem seu espaço aéreo, a pousarem forçadamente, porém, jamais poderiam abatê-las (MAZZUOLI, 2009, p. 729-730).

            O Protocolo de Montreal sobreveio de uma “comoção generalizada”, quando um avião foi abatido pela aviação militar soviética em 1983, quando sobrevoava o território destes (SILVA, 2002, p. 172-173), sendo que o avião abatido era um comercial coreano, e tinha 269 pessoas a bordo.

  Contudo, atualmente, no direito internacional, não se reconhece o direito de passagem inocente no espaço aéreo dos países, sendo necessária a autorização (por meio de tratados ou autorização avulsa) para qualquer sobrevoo nesse domínio do Estado, que é absoluto (REZEK, 2000, p. 317). Ou seja, o Estado não está obrigado a suportar a passagem de aeronaves (mesmo que rápida e contínua) em seu domínio aéreo, como ocorre nas águas territoriais. É somente no domínio marítimo que se reconhece o direito de passagem inocente, que compreende a obrigação do país costeiro de aceitar a passagem rápida e contínua de embarcações estrangeiras, sem a sua autorização.

2.4 ALEI DO ABATE A PROTEÇÃO DO ESPAÇO AÉREO BRASILEIRO

            A Lei 9.614/98, que alterou o Código Brasileiro de Aeronáutica- CBA é uma lei ordinária, que foi regulamentada somente em 2004, através do Decreto nº 5.144. Com nomenclatura de Lei do Tiro de Destruição, conhecida popularmente como Lei do Abate Aéreo, a norma foi criada com o intuito principal de proteger o Estado de aeronaves consideradas hostis à segurança nacional e possivelmente transportadoras de drogas e entorpecentes (GONÇALVES, 2012).

            A Lei do Abate modificou o art. 303 do CBA (Lei 7.565/86), onde introduziu ao mesmo o parágrafo segundo, que contém a seguinte redação:

Art. 303

(...)

§ 2º Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita a medida de destruição, nos casos dos incisos do caput desse artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada.

            Dessa forma, mesmo estando exercendo sua soberania e domínio sobre o espaço aéreo, não poderia o Estado atentar contra a vida de indivíduos sem a certeza de que se trata de uma aeronave hostil, e, caso utilizasse a lei do abate em seu grau extremo, e incorresse em erro, nada poderia fazer a respeito dos direitos do até então suspeito, privados à este, pois, sem o seu justo julgamento, não tem a certeza de se tratar ou não de uma aeronave com intuito de hostilidade (GONÇALVES, 2012).

            A defesa da soberania do Estado cabe às Forças Armadas, especificamente ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica. A proteção do espaço aéreo brasileiro é realizada pela Força Aérea Brasileira- FAB, que tem como missão “manter a soberania no espaço aéreo nacional com vistas à defesa da pátria”, impedindo que o espaço aéreo brasileiro e exterior seja usado para a prática de atos hostis ou que influenciem a contrariedade dos interesses nacionais.

            Com relação ao que cerne à defesa do Estado, a Constituição Federal estabelece, no art. 142, o que segue:

Art. 142 As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exercito e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (destaca-se)

            É certo que cada país pode proteger e defender seu espaço aéreo, como expressão da sua soberania, mas é preciso verificar os reflexos dos direitos humanos na seara da defesa do território do Estado.

3 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS

 

            Os direitos humanos e os direitos fundamentais são diferenciados de forma simples e clara, visto que os primeiros são os que estão positivados no plano internacional, por meio dos tratados internacionais; já os direitos fundamentais dizem respeito aos direitos humanos positivados na Constituição Federal de 1988. O conteúdo é praticamente o mesmo, a diferença se dá ao plano que consagra cada um deles.

            Para Ramos (2012. p. 30), os direitos humanos correspondem a um “conjunto mínimo de direitos necessário para assegurar uma vida do ser humano baseada na liberdade, igualdade e na dignidade”. Tais direitos asseguram ao indivíduo uma vida digna, onde se tenham adequadas condições de existência.

3.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DOS DIREITOS HUMANOS

            O surgimento dos direitos humanos de forma codificada vem do Código de Hammurabi de1960 a.C., podendo ser este o primeiro a estabelecer os direitos de igualdade, família, propriedade, honra e direito a vida. A concepção religiosa do cristianismo e a crença em igualdade de todos os homens veio a fortalecer os direitos fundamentais e o surgimento de novos códigos, como a Lei das doze tabuas, trazidas pelos romanos ao qual estabeleceu os direitos individuais em relação aos arbítrios estatais. O grande desenvolvimento dos direitos fundamentais surgiu na idade média, com a limitação dos poderes do estado e o fortalecimento dos direitos humanos, acarretou na Magna Charta Libertatum, outorgada por João sem terra em 1215 na Inglaterra, que previa o devido processo legal, o direito a liberdade de locomoção e livre entrada e saída do país, livre acesso a justiça, restrições tributarias e proporcionalidades entre delitos e sacões (MORAES, 2011, p. 06-07).

            A Revolução dos Estados Unidos da América teve especial participação para a história dos direitos humanos, pois, posterior a ela vieram a Declaração de Direitos de Virgínia, Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, ambas em 1776 e Constituição dos Estados Unidos da América, em 1787 (MORAES, 2011, p. 08).

            A Declaração de Direitos da Virgínia defende o direito à vida, à liberdade e à propriedade logo em sua primeira seção, trazendo adiante, entre os demais, o princípio da legalidade e do devido processo legal (MORAES, 2011, p. 09).

            A Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia foi a primeira declaração de direitos fundamentais no sentido moderno, e consubstanciava a base destes direitos, tais como: todos os homens são por natureza igualmente livre e dependentes e, é assegurado o direito de defesa nos processos criminais, bem como o julgamento por júri imparcial (SILVA, 2008, p. 154).

            Aprovada em1787, aConstituição dos Estados Unidos da América não continha uma declaração de direitos fundamentais, o que foi acrescentado, por meio de Emendas Constitucionais, no ano de 1791 (SILVA, 2008, p.155).

            As Emendas Constitucionais pretendiam limitar o poder estatal, separando os poderes estatais e estabelecendo diversos direitos humanos fundamentais: “liberdade religiosa; inviolabilidade de domicílio; devido processo legal; julgamento pelo Tribunal do Júri; ampla defesa; impossibilidade de aplicação de penas cruéis ou aberrantes” (MORAES, 2011, p. 09).

            Coube a consagração normativa dos direitos humanos à França, quando em 1789 foi promulgada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, onde se destacam os princípios da igualdade, da liberdade, da propriedade, da segurança, da resistência a opressão, da associação política, da legalidade, da reserva legal e anterioridade em matéria penal, da presunção de inocência, da liberdade religiosa e da livre manifestação de pensamento (MORAES, 2011, p. 9).

            O texto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, segundo Silva (2008, p. 158) “é de estilo lapidar, elegante, sintético, preciso e escorreito, que, em dezessete artigos, proclama os princípios da liberdade, da igualdade, da propriedade e da legitimidade e as garantias individuais liberais que ainda se encontram nas declarações contemporâneas”.

Depois dessas Declarações e Constituições americanas e francesas, vários países fizeram constarem suas Constituiçõesnacionais normas consagrando direitos do homem, proclamando que todos os homens são livres e iguais em dignidade e em direitos (FERREIRA FILHO, 2011, p. 24).

3.2 GERAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS

            A doutrina moderna classifica os direitos humanos em primeira, segunda e terceira gerações, tendo como base a ordem histórica cronológica em que estes direitos foram reconhecidos constitucionalmente (MORAES, 2011, p. 25).

            A primeira geração engloba os direitos de liberdade, propriedade, intimidade e segurança. São direitos de defesa com caráter de distribuição de competências entre o Estado e o individuo (denominados direitos civis e políticos). O Estado pode ser passivo protegendo a autonomia do indivíduo e ativo quando exige ações para a garantia da segurança publica (RAMOS, 2012, p. 72).

            A segunda geração de direitos humanos trata dos direitos sociais, e visa o Estado com um papel extremamente ativo, necessário para a proteção dos direitos da primeira geração pois, para a garantia de liberdade e igualdade, viu-se necessária a inserção do Estado para garantir o bem estar social. Cabe ao Estado estender ao individuo direitos sociais como saúde, educação, previdência social, habitação entre outros, que demandam prestações positivas do estado com a parte mais miserável da população (RAMOS, 2012, p. 73).

            Os direitos humanos de terceira geração, segundo Ramos (2012, p.74), têm como titulares a comunidade, e correspondem ao direito ao desenvolvimento, à paz, à autodeterminação e ao meio ambiente equilibrado. São chamados de direitos da solidariedade ou fraternidade.

            A classificação dos direitos humanos no direito internacional se fez de forma diferente, são então divididos em cinco espécies de direitos: os civis, os políticos, os econômicos, os sociais e os culturais. Tal classificação adveio de dois tratados, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (RAMOS, 2012, p. 76-77).

3.3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O ARTIGO 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

            A Constituição Federal de 1988 prioriza os direitos fundamentais, diferenciando-se das Constituições passadas, onde as normas relativas à estrutura do Estado e aos seus Poderes eram as mais importantes. Consagrou então as liberdades públicas em seus primeiros dispositivos, rompendo a praxe de deixar a enunciação dos direitos fundamentais para momento posterior (BULOS, 2011, p. 532). Os direitos fundamentais estão previstos na Constituição brasileira, sobretudo no artigo 5º, mas podem ser encontrados em diversos dispositivos constitucionais.

            O legislador constituinte classificou os direitos e garantias fundamentais em cinco espécies do gênero, sendo eles: direitos individuais e coletivos, ligados ao conceito de pessoa humana, como por exemplo, a vida, a dignidade, a honra e a liberdade; direitos sociais, caracterizados pelas liberdades positivas e com a finalidade de melhorar as condições de vida aos hipossuficientes e visando concretizar a igualdade social; direitos de nacionalidade, vínculo que liga o indivíduo à determinado Estado, exigindo proteção e sujeitando-se a cumprir deveres impostos; direitos políticos, que são formas de atuação da soberania popular e; direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos, que assegura aos indivíduos a liberdade de atuação para concretizar o sistema representativo (MORAES, 2011, p. 23-24).

Ferreira Filho (2011, p. 91) nota que uma das formas de proteção dos direitos fundamentais está consubstanciada na exigência da constitucionalidade dos atos legislativos. Como os direitos fundamentais estão previstos na Constituição e considerando-se a lógica da hierarquia das leis, deve-se deduzir que as normas inferiores não podem contrariar tais direitos, sob pena de inconstitucionalidade. Assim sendo, as normas infraconstitucionais não podem contrariar os direitos fundamentais previstos na Constituição.

4 A APLICAÇÃO DA LEI DO ABATE E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

 

            Com base na teoria dos direitos humanos e tendo em vista os direitos fundamentais previstos na Constituição brasileira, cabe verificar se a Lei do Abate se compatibiliza com os direitos do homem previstos no art. 5º da CF/88, sobretudo no que diz respeito às penas proibidas no Brasil, ao devido processo legal e à presunção de inocência. Inicialmente é necessário analisar como se dá a aplicação da Lei do Abate.

4.1 AAPLICAÇÃO DA LEI DO ABATE

Os procedimentos para a aplicação da Lei do Abate estão previstos no Decreto nº 5.144/04, que regulamenta a referida lei. Tais procedimentos devem ser seguidos em relação a aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins, pois estas podem apresentar ameaça à segurança pública.

            De acordo com o artigo 2º do Decreto 5.144/04, são consideradas suspeitas de tráfico de drogas e entorpecentes as aeronaves que: adentrarem o território nacional sem plano de vôo aprovado, oriunda de regiões que são reconhecidas como fontes de produção ou distribuição de drogas e as que omitirem informações necessárias à sua identificação aos órgãos de controle de tráfego aéreo ou, as que não cumprirem as determinações do mesmo órgão quando se encontrar em rota utilizada para o tráfico de drogas ilícitas.

            Se a aeronave se enquadrar nas situações acima descritas, ocorre a medida de averiguação, que visa determinar ou confirmar a identidade de uma aeronave, assim como acompanhar o seu comportamento. Assim ocorre a aproximação da aeronave de interceptação afim de tentar comunicação via rádio ou sinais visuais com a aeronave interceptada (art. 3º, § 1º, Decreto 5.144/04).

            O segundo procedimento é a medida de intervenção, que compreende a determinação à aeronave suspeita para que modifique sua rota, forçando seu pouso em local determinado para que possa ser submetida ao controle no solo (art. 3º, § 2º, Decreto 5.144/04).

            Se a aeronave não pousar, a aplica-se a medida de persuasão, que consiste no disparo de tiros de aviso (ou tiros de advertência), os quais não devem atingir a aeronave interceptada mas, ficar visível a esta, de maneira a forçar a obediência às ordens impostas (art. 3º, § 3º, Decreto 5.144/04).

            Os procedimentos acima expostos são executados consecutivamente, e não atendendo a eles, a aeronave suspeita de tráfico de drogas ilícitas será classificada como hostil e estará sujeita à medida de destruição (art. 4º, Decreto 5.144/04).

            A medida de destruição consiste no disparo de tiros a fim de provocar danos na aeronave, assim como impedir o prosseguimento do vôo. Este é o último recurso a ser utilizado. As comunicações ou imagens de sua aplicação devem ser gravadas, a medida deve ser executada sobre áreas não povoadas e que sejam utilizadas para o tráfico de drogas, sendo necessária a autorização do Presidente da República ou da autoridade por ele delegada (art. 5º e 6º, Decreto 5.144/04). Desta forma, com a medida de destruição, indivíduos podem ser mortos em decorrência da aplicação do Lei do Abate, pelo Estado brasileiro.

4.2 O DIREITO A VIDA E A PENA DE MORTE

            De todos os direitos previstos no art. 5º da Constituição Federal/88, o direito a vida é o mais importante. Sendo o bem mais precioso da pessoa humana, o direito à vida é constitucionalmente amplo por se conectar diretamente com outros direitos. É um pressuposto para o exercício dos direitos fundamentais (FACHIN, 2012, p. 251).

            O direito a vida tem extrema importância por ser pré-requisito para a existência dos demais direitos, assim, cumpre assegurar a todos os indivíduos o direito de continuar vivo simplesmente, continuar existindo até a interrupção da vida por causas naturais (TAVARES, 2010, p.569).

            O mesmo princípio constitucional que assegura o direito a vida também veda a adoção da pena de morte. Para Bullos (2011, p. 536) a “pena de morte é a pena capital consistente em tirar a vida de criminoso pelo seu alto grau de periculosidade ou gravidade do delito praticado”.

            Acerca disso, Lenza (2011, p.872) entende que nem mesmo “o poder constituinte originário poderia ampliar as hipóteses de pena de morte, tendo em vista o princípio da continuidade e proibição ao retrocesso”; isto é, os direitos fundamentais que já foram conquistados não podem retroceder.

            Com a autorização e regulamentação da lei do abate, foi, de certo modo, instituída no Brasil a pena capital ou de morte, que no ordenamento jurídico brasileiro, é expressamente vedada em tempos de paz, sendo permitida em única exceção no caso de guerra declarada, artigos 5º, inciso XLVII, alínea “a” e 84, XIX, da CF/88.

            Em relação a pena de morte, Fachin (2012, p. 254) faz uma importante consideração quando afirma  que “a pena de morte é irreversível: uma vez executada, não poderá ser revista, na hipótese de descobrir-se que o condenado é inocente”.

            O Código Penal Militar prevê, em seu art. 56, que a pena de morte seja executada por fuzilamento. A pena de morte também é prevista nos artigos 707 e 708 do Código de Processo Penal Militar, que dispõem que:

Art 707 O militar que tiver de ser fuzilado sairá da prisão com uniforme comum e sem insígnias, e terá os olhos vendados, salvo se o recusar, no momento em que tiver de receber as descargas. As vozes de fogo serão substituídas por sinais.

§1º O civil ou assemelhado será executado nas mesmas condições, devendo deixar a prisão decentemente vestido.

§2º Será permitido ao condenado receber socorro espiritual.

§3º A pena de morte só será executada sete dias após a comunicação ao Presidente da República, salvo se imposta em zona de operações de guerra e o exigir o interesse da ordem e da disciplina. (destaca-se)

Art 708 Da execução da pena de morte lavrar-se-á ata circunstanciada que, assinada pelo executor e duas testemunhas, será remetida ao comandante-chefe, para ser publicada em boletim.

            Percebe-se, desta forma, que a prévia condenação à morte que a Lei do Abate contempla, não é sequer executada da maneira prevista na legislação. A Lei do Abate contém portanto, condenação e execução inconstitucionais e ilegais.

            A proibição é justificada por inúmeros motivos, e Bulos (2011, p. 537) traz os seguintes: a existência da possibilidade de erro judiciário, que não trará a vida de volta se reconhecido, sendo um erro irreparável; a pena capital não diminui em nada a criminalidade, existindo comprovações estatísticas para tal afirmação e reiterados protestos internacionais para extinção definitiva da mesma e; a mais importante das justificativas é o respeito aos princípios humanitários, visto que em qualquer relação humana o valor maior é a vida, não podendo o Estado interromper o ciclo vital de quem quer que seja.

            A respeito disso, também é importante considerar o art. 60, § 4º, inciso IV da CF/88, que estabelece que:

Art.60 AConstituição poderá ser emendada mediante proposta:

(...)

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

(...)

IV- os direito e garantias individuais.

            No Brasil, tem-se discutido a hipótese de ser adotada a pena de morte por meio de uma emenda à Constituição, mas acredita-se ser impossível, já que o direito à vida faz parte dos direitos elencados no rol de cláusulas pétreas, portanto não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional no que tange a modificar os direito e garantias individuais (BULOS, 2011, 537-538).

4.3 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

            Elencado no inciso LIV, art. 5º da CF/88, o princípio do devido processo legal objetiva assegurar aos acusados que estes disponham das garantias do contraditório e da ampla defesa, possibilitando ao indivíduo opor-se à acusação feita a si, com igualdade de condições e com a possibilidade de trazer ao processo a sua versão dos fatos. Tal princípio é uma garantia constitucional que se destina a todos os litigantes (BECHARA, CAMPOS, 2005).

            Conforme entendimento de Lenza (2011, p. 922):

Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Corolário a esse princípio, asseguram-se aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

            Já o princípio da presunção de inocência, também conhecido como princípio da não culpabilidade, esculpido no inciso LVII, art. 5º da CF/88, assevera-se que “ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória”.

            São três as exigências que decorrem da previsão constitucional deste princípio, segundo Moraes (2011, p. 312), correspondendo a primeira ao ônus da prova dos fatos constitutivos da pretensão penal cabíveis exclusivamente à acusação, sem que se possa ser exigida tal produção por parte da defesa; a segunda exigência trata da necessidade de que a colheita de provas seja feita perante o órgão judicial competente e observado o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa e, a terceira exigência nada mais é do que a independência absoluta do magistrado, quando da valoração livre das provas.

            Com isto, percebe-se uma ligação entre o princípio da presunção de inocência, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, visto que somente após a análise detalhada destes atos processuais, que deverão sempre ser realizados perante uma autoridade judicial competente para tal ato, serão obtidas todas as provas necessárias para uma decisão que afastaria de vez a presunção de inocência do acusado (MORAES, 2011, p. 312).

            Nesse sentido, Bechara e Campos (2005), anotam que “melhor denominação seria princípio da não culpabilidade. Isso porque a Constituição Federal não presume a inocência, mas declara que ninguém será considerado culpado antes de sentença condenatória transitada em julgado”.

            Constata-se assim que, a Lei do Abate representa violação ao princípio da presunção de inocência, pois pode impor uma pena ao indivíduo sem ter absoluta certeza de que não se trata de uma pessoa inocente. Além disso, a pena prevista na referida lei é a de morte, que é uma pena vedada pelo ordenamento brasileiro, salvo em caso de guerra declarada. Resta assim dizer que a vida é um bem irreparável, e, mesmo sendo deveras inocente, não havia possibilidade de reavê-la.

4.4 ALEI DO ABATE E O DIREITO PENAL DO INIMIGO

           

            O Estado, por ser soberano, pode proteger seus diversos domínios territoriais, podendo responsabilizar judicialmente os acusados de violar suas normas legais. Contudo, o direito de punir deve ser utilizado de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, de forma a preservar os direitos e garantias fundamentais.

A aplicação da lei do abate na íntegra, com a derrubada de aeronaves, implica em negar diversos direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição brasileira, configurando a aplicação do chamado Direito Penal do Inimigo.

O Direito Penal do Inimigo é uma teoria criada pelo doutrinador Gunter Jakobs, que pretende a prática de um direito penal que separaria os delinquentes dos criminosos de maneira que, os delinquentes continuariam a ter status de cidadãos e, mesmo que infringissem a lei teriam direito a um julgamento dentro do ordenamento jurídico, podendo voltar a ajustar-se à sociedade.  Já aos criminosos, deveriam ser considerados inimigos do Estado, adversários que representariam o mal, cabendo a eles um tratamento rígido (PARENTONI, 2007).

 Luiz Flávio Gomes (2010, p. 1) explica que para o direito penal do inimigo, os inimigos são criminosos econômicos, delinquentes organizados e quem pratica infrações penais perigosas. Eles não devem ser tratados como cidadãos, não podendo usufruir dos benefícios do conceito de pessoa, não sendo um sujeito processual e não podendo contar com direitos processuais. O sujeito é punido pelo que é e não pelo que fez.

De acordo com a teoria de Jakobs, o Estado pode proceder de dois modos contra os delinqüentes: pode concebê-los como pessoas que delinqüem ou como indivíduos que apresentam perigo para o próprio Estado.  Haveria dois Direitos Penais: um é o do cidadão, que deve contar com todas as garantias penais e processuais; para ele vale na integralidade o devido processo legal; o outro é o Direito Penal do inimigo, que trata o delinquente como fonte de perigo, podendo haver cortes de direitos e garantias processuais fundamentais (GOMES, 2012, p. 2).

A derrubada de aeronaves no contexto de aplicação da Lei do Abate representa um tratamento diferenciado ao delinquente, já que as pessoas envolvidas nessa situação não tem direito ao devido processo legal e demais garantias processuais. A própria pena aplicada (pena de morte) compreende um tratamento diferenciado, o que é típico do direito penal do inimigo.

Porém, de acordo com Antônia Elúcia Alencar (2010), não se pode pretender o acolhimento do Direito Penal do Inimigo no Brasil, que é um Estado Democrático de Direito, que reconhece direitos fundamentaisem sua Constituiçãoe deve garantir princípios como o da dignidade da pessoa humana, legalidade, proporcionalidade e sobretudo os de caráter processual penal, como o de presunção de inocência, devido processo legal, contraditório e ampla defesa e outras garantias do imputado em um processo penal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Todo Estado é constituído por uma base territorial, uma população e uma forma de governo soberana. Esta soberania é característica essencial do Estado, prevista na Constituição Federal de 1988, e é exercida de forma exclusiva sobre os espaços de domínio estatal, que correspondem ao espaço terrestre, marítimo e aéreo.

            No que diz respeito ao espaço aéreo brasileiro, a fiscalização, proteção e a defesa da soberania são realizadas pela Força Aérea Brasileira.

            A Lei 9.614/98, com nomenclatura de Lei do Tiro de Destruição modificou o Código Brasileiro de Aeronáutica e foi criada com o intuito de proteger o Estado de aeronaves consideradas hostis a segurança nacional ou possivelmente transportadora de drogas ilícitas ou afins. O dispositivo alterado corresponde ao art. 303, §2º, e, autoriza a derrubada da aeronave classificada como hostil, quando esta não responder aos meios de reconhecimento e comunicação.

            Dessa forma, foi adotada a pena de morte no estado brasileiro, expressamente proibida em tempos de paz, pois quando autorizada a derrubada destas aeronaves, o piloto e os tripulantes, se houverem, incorrerão nesta pena, visto que é praticamente impossível que sobrevivam a destruição da aeronave.

            Mesmo sendo soberano, não pode o Estado privar alguém da própria vida por uma simples consideração de que talvez a aeronave, até então suspeita, trará algum perigo à segurança nacional.

            Percebe-se ainda, que na hora da aplicação da Lei 9.614/98, também não são observados outros direitos fundamentais do homem, como o direito à vida, ao devido processo legal e a presunção de inocência, mostrando-se em desconformidade com o texto legal da Constituição Federal.

            O princípio do devido processo legal e o da presunção de inocência deveriam ser observados pelo legislador, pois nenhum indivíduo será considerado culpado sem que antes possa defender-se das acusações, ou sem o transito em julgado de uma sentença condenatória, princípios estes garantidos pelo texto legal e negados pela Lei do Abate. A situação fica ainda mais grave quando esta traz a possibilidade de implementar a pena capital, negando assim o direito a vida, bem maior do ser humano; lembrando que a pena de morte é proibida no Estado brasileiro, salvo no caso de guerra externa declarada, e, com esta pena, caso ocorra um erro, a vida do indivíduo não poderá ser recuperada. Mesmo exercendo soberania e domínio sobre o seu espaço aéreo, não pode o Estado atentar contra a vida de indivíduos de forma a negar aos mesmos o direito de defesa, podendo dessa maneira, cometer erros gravíssimos.

            Pode-se dizer que a Lei do Abate usa do direito penal do inimigo na hora de sua aplicação, visto que trata o indivíduo como inimigo e não oferece os direitos processuais garantidos pelo ordenamento jurídico brasileiro. Porém, o país, como um Estado democrático de Direito, não acolhe o direito penal do inimigo, quando reconhece e garante os direitos fundamentais já vistos.

            Cumpre salientar que, uma vez editada qualquer lei, esta deve estar em harmonia com o texto constitucional e principalmente com os princípios constitucionais, não podendo contrariar o que foi determinado anteriormente pela lei maior. A Lei que não se harmoniza com a Constituição pode ser considerada como inconstitucional, perdendo assim os seus efeitos jurídicos.

 

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