A legitimação do Direito Penal do Brasil contemporâneo a partir da reconstrução do conceito de bem jurídico nascido da Constituição Federal de 1988

Por eder jose spavier | 21/12/2013 | Direito

FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS         
EDER JOSÉ SPAVIER         
LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL DO BRASIL CONTEMPORÂNEO A PARTIR DA RECONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE BEM JURÍDICO NASCIDO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988               
POUSO ALEGRE – MG 2013
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EDER JOSÉ SPAVIER                
LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL DO BRASIL CONTEMPORÂNEO A PARTIR DA RECONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE BEM JURÍDICO NASCIDO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988    
Trabalho de conclusão de curso, apresentado como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito no Curso de Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas.   
Orientador: Prof. Dr. Edson Vieira da Silva Filho         
FDSM – MG 2013
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EDER JOSÉ SPAVIER      
LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL DO BRASIL CONTEMPORÂNEO A PARTIR DA RECONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE BEM JURÍDICO NASCIDO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.     
FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS     
Data da Aprovação: ___/___/____     
Banca Examinadora     
____________________________________ Prof. Dr. Edson Vieira da Silva Filho – Orientador     
____________________________________ Prof.(a) Dr.(a): Instituição:     
____________________________________ Prof.(a) Dr.(a): Instituição:    
Pouso Alegre - MG 2013
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RESUMO    
SPAVIER, Eder José. Legitimação do direito penal do Brasil contemporâneo a partir da reconstrução do conceito de bem jurídico nascido da Constituição Federal de 1988. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Faculdade de Direito do Sul de Minas. Graduação, Pouso Alegre, 2013.  
  O presente trabalho trata da legitimação do direito penal brasileiro de acordo com a teoria do bem jurídico à luz da Constituição de 1988. O bem jurídico é o tema central do Direito Penal, seja no Brasil ou fora dele, devendo ser tutelados os bens jurídicos mais fundamentais e presentes na constituição. Assim, o bem jurídico traz uma limitação ao legislador para que não tutele bens não importantes e também que ele não seja omisso ao não tutelar aqueles bens fundamentais para o indivíduo e a sociedade. O trabalho tem como pressuposto inicial a origem do bem e seu estudo, demostrando que é algo valioso do indivíduo e da sociedade. Em seguida discorrerá sobre evolução conceitual do bem jurídico, sendo este, o bem a ser tutelado pelo Estado. Dentro do estudo do bem jurídico penal, trataremos de suas funções demonstrando o porquê de ser o centro do Direito Penal. Por fim, trataremos do direito penal do risco, demonstrando que este não deve operar na atualidade pela sua abstração e que o direito penal deve estar de acordo como o princípio da subsidiariedade, sendo a ultima ratio.    
Palavra chave: Direito Penal, Bem, Bem Jurídico, Constituição.  
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ABSTRACT    
SPAVIER, Eder José. Legitimization of criminal law in contemporary Brazil from the reconstruction of the concept of legal good born of the 1988 Federal Constitution.  Work of Ending Course (Graduation) - Faculdade de Direito do Sul de Minas. Graduação, Pouso Alegre, 2013.   
This paper deals with the legitimacy of the Brazilian criminal law in accordance with "theory of well legal" compared to the 1988 Constitution. The "theory of well legal" is the central theme of the Criminal Law, in Brazil or elsewhere, shall be protected in accordance with fundamental rights in the constitution. Thus, the "theory of well legal" brings a limitation to the legislature to formulate laws. The focus of the study is the "theory of well legal" demonstrating that it is valuable to the individual and to society. Then will discuss the conceptual evolution of the legal interest protected by the State. In the study of "theory of well legal penal", we will discuss its function demonstrating why it is the center of the Criminal Law. Finally demonstrate how the criminal law takes care of the risk, demonstrating that this should not operate at present for its abstraction and that criminal law must conform to the principle of subsidiarity, understanding this as ultima ratio.   
Key Words: Criminal Law, Well, Well Legal Constitution.  
   
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Dedico este trabalho a minha mãe, Lourdes Maria da Costa Spavier, que com muito carinho, amor e dedicação me ajudou a chegar até aqui, mostrando os caminhos corretos da vida;  Dedico também à minha esposa, Tânia Márcia Naves Dias Spavier, que muitas vezes abriu mão dos conquistar seus objetivos, para ajudar a alcançar os meus e também por ter tido muita paciência nos meus dias de irritabilidade.
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AGRADECIMENTOS    
Ao meu orientador Edson Vieira da Silva Filho, que prontamente aceitou me auxiliar na realização desta monografia, tendo não só paciência, como também dedicação em disponibilizar seu tempo para me orientar neste trabalho. Grato ainda por mostrar que às vezes o caminho mais longo e trabalhoso também é o mais satisfatório. Como também, aos demais Mestres e Doutores da Faculdade de Direito do Sul de Minas que durante esses anos lançaram seus conhecimentos e experiências com tamanha dedicação, priorizando nossos aprendizados, como também nos apoiando dia a dia para o crescimento profissional. Agradeço a minha família por todo apoio e carinho que deram durante todos esses anos, não só por terem acreditado na minha capacidade, mas também por terem depositado toda confiança em mim. A minha mulher, que fez parte desta história, incentivando meu crescimento profissional e ajudando a superar todos os obstáculos existentes. E por fim, a todas as pessoas, que alguma maneira tornaram-se especiais pra mim, que mesmo estando longe ou perto, me apoiaram, me incentivaram me deram forças para ir até o fim.  
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“É muito melhor lançar-se em busca de conquistas grandiosas, mesmo expondo- se ao fracasso, do que alinhar-se com os pobres de espírito, que nem gozam muito nem sofrem muito, porque vivem numa penumbra cinzenta, onde não conhecem nem vitória, nem derrota.”  
 Theodore Roosevelt
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SUMÁRIO    
INTRODUÇÃO......................................................................................................... 10 1 DO BEM................................................................................................................ 12 1.1 O que é bem?.................................................................................................... 12 1.1.1 Definições na língua portuguesa.................................................................... 12 1.1.2 Definição jurídica a partir do Direito Civil........................................................ 13 1.1.3 Definições filosóficas...................................................................................... 14 1.1.4 Estudo Axiológico........................................................................................... 16 1.1.4.1 Teorias subjetivistas da valoração............................................................... 16 1.1.4.2 Teorias objetivistas da valoração................................................................ 17 2 CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO DO BEM JURÍDICO................................................... 21 2.1 Evolução histórico-conceitual da noção de bem jurídico................................... 22 2.2 Teorias negativas.............................................................................................. 24 2.3 Teorias sociológicas.......................................................................................... 25 2.4 Teorias constitucionais...................................................................................... 27 3 O BEM JURÍDICO-PENAL E A CONSTITUIÇÃO............................................... 29 3.1 O conceito de bem jurídico................................................................................ 29 3.2 Bem jurídico-penal e bem jurídico-penal constitucional.................................... 34 3.2.1 Funções do bem jurídico-penal...................................................................... 35 3.2.1.1 Função de garantia ou de limitar o direito de punir do estado ou político- criminal..................................................................................................................... 36 3.2.1.2 Função crítica.............................................................................................. 37 3.2.1.3 Função teleológica ou interpretativa ou exegética...................................... 37 3.2.1.4 Função sistemática...................................................................................... 38 3.2.1.5 Função individualizadora ou de critério de medição da pena...................... 38 3.2.2 Sistema social e sistema jurídico-constitucional............................................. 39 3.2.3 Direito penal subsidiário ou ultima ratio ou intervenção mínima.................... 41 3.2.4 O direito penal do bem jurídico e a sociedade de risco.................................. 44 3.3 A perda (ou a necessidade do resgate) da essência do bem jurídico penal em uma doutrina penal que se afasta do modelo constitucional de 1988............... 48  
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CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 56 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 59  
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INTRODUÇÃO    
 Este trabalho visa discutir que a adoção da teoria da proteção aos bens jurídicos deve ser utilizada no Direito Penal Brasileiro. O tema é amplamente discutido atualmente e não há consenso entre os doutrinadores. Diante do grande número de tipos penais existentes e dos que são criados com muita frequência, o presente trabalho expõe o problema e vem validar o Direito Penal Brasileiro de acordo com a Constituição Federal de 1988. O bem jurídico tem a finalidade de indicar a que fim se prestará a qualificação de determinadas condutas como crimes e com que objetivo se está a assim qualificá-las e, ulteriormente, puni-las com uma sanção penal. Com efeito, entende-se que o Direito Penal cuida da repressão dos atos que lesionam ou exponham a perigo bens jurídicos. Amplamente debatido, seja no Brasil ou fora dele, o bem jurídico é o elemento central do direito e há inúmeros trabalhos publicados sobre o tema.   Para falar do bem jurídico constitucional, o qual deverá dar validade ao sistema jurídico penal nacional, temos que partir do princípio, ou seja, do estudo do bem. Este é algo valioso para o indivíduo, que, compartilhados por muitos, passa a ser um bem comum. Mas é somente quando o estado passa a tutelar esse bem comum que se torna bem jurídico.  O bem jurídico surge para o direito penal como fundamento de sua existência e limite de sua atuação. Trata-se de uma construção teórica afeita à teoria dos direitos fundamentais e aos contornos de um direito penal garantista que atenda aos princípios dos Estados Democráticos de Direito ocidentais. Com efeito, diz-se que o direito penal serve à proteção de bens jurídicos, de sorte que apenas podem ser tutelados por esta via os bens assim definidos. Não são todos os bens jurídicos que merecem proteção penal, mas somente aqueles bens fundamentais, embasados materialmente na constituição e validados pelo princípio da subsidiariedade.
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 O trabalho não pretende criar um rol de bens que deverão ser tutelados pelo direito penal, mas demonstrar que este deve ser a ultima ratio e não a prima ratio para criação de tipos penais.  Vemos uma crescente tipificação, que já é excessiva, de condutas de risco abstrato, interferindo, o Estado, de maneira indevida, na liberdade pessoal, tutelando um risco que apenas possui probabilidade de ocorrer, contrariando a premissa que o crime lesa ou ameaça de lesão concretamente o bem jurídico. Tutelar o risco é o mesmo que tutelar a intensão, um pensamento, não se pune o resultado, pune-se os atos preparatórios do iter criminis.  Da mesma forma, tornou-se frequente tutelar condutas morais e religiosas, afastando com isso, a teoria do bem jurídico, tornado a regra inconstitucional.  O trabalho trata ainda dos limites impostos ao legislador através das funções do bem jurídico, sendo preciso discutir a omissão do Estado perante alguns bens que deveriam ser tutelados e não são e o excesso do Estado na tutela de outros bens que não deveriam receber a proteção penal. Por fim, pretende-se com os tópicos relacionados acima, trazer parâmetros para escolhas dos bens jurídicos e não criar um rol fechado, já que a sociedade muda no decorrer do tempo. Assim, pretende-se que a teoria do bem jurídico possa validar o Direito Penal do Brasil de acordo com a Constituição Federal de 1988, pois é ela que forma o Direito Penal.             
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1  DO BEM    
1.1  O que é Bem?   
Para melhor compreensão do presente trabalho, busca-se primeiramente definir o que é bem a partir da língua portuguesa, passando pelos conceitos jurídico, filosófico e de outras ciências. A conceituação é diferente dependendo da área de estudo, ora teremos o conceito como bem, ora como valor, ora como cultura, entre outros.  É importante expor esses conceitos, para que, na abordagem do estudo, quanto a bens tutelados pelo direito penal e Constituição, não ocorra interpretações diversas daquelas pretendidas.   
1.1.1  Definições na língua portuguesa   
Na língua portuguesa, a palavra Bem vem do latim, bonum, e possui várias facetas, definindo-a de forma ampla, como:   
1. Qualidade atribuída a ações e obras humanas, e que lhes confere um caráter moral. 2. Austeridade Moral; virtude. 3. Felicidade, ventura. 4. Favor, benefício. 5. Vantagem, proveito. 6. Pessoa muito amada. 7. Econ. Mercadoria ou serviço que pode satisfazer uma necessidade humana. Adv. 8. Muito; bastante. 9. Convenientemente. 10. Com saúde. 11. Com perfeição. Pron. Indef. 12. Muito, bastante. [...]1 (grifo do autor)  
 Como podemos ver, usamos diariamente a palavra bem de várias formas, para designar uma qualidade moral, um sentimento, uma ação aceita por toda sociedade, um termo técnico de alguma ciência, um estado da pessoa, uma qualidade da pessoa ou objeto, como demonstrativo de qualidade e quantidade,
                                                           1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. 8. ed. Curitiba: Positivo, 2010. p. 99.
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além de várias outras formas de emprego. Esse conhecimento da língua e do conteúdo contido na palavra estudada é importante, pois, é pelo contexto em que será utilizada que se transmitirá corretamente as informações ao receptor.   
1.1.2  Definição jurídica a partir do Direito Civil   
 Definido no vernáculo o primeiro sentido da expressão bem, temos o necessário para o próximo passo do trabalho, a definição jurídica do bem, extraído a princípio do bem comum chegando ao bem jurídico. Uma das facetas de bem se amolda ao Direito Civil, como abaixo:  
Bem. Direito Civil. 1. Coisa material ou imaterial que tem valor econômico e pode servir de objeto a uma relação jurídica. Nessa acepção, aplica-se melhor no plural. Para que seja objeto de uma relação jurídica será preciso que apresente os seguintes caracteres: a) idoneidade para satisfazer um interesse econômico; b) gestão econômica autônoma; e c) subordinação jurídica ao seu titular. 2. Tudo aquilo que pode ser apropriado. 2 (grifo do autor)  
Em outras palavras, pode significar: o que é propriedade de alguém; possessão, domínio.3  É importante verificar que o direito se ocupa de termos técnicos, que são empregados nas leis em geral e doutrinas, sendo que a definição acima é usada em todo o sistema jurídico nacional. No Brasil, os bens podem ser considerados das seguintes formas, segundo o Código Civil Brasileiro4: em sua própria natureza; reciprocamente; e em relação às pessoas. Ainda traz o Capítulo I, do Título Único do livro II, quais são os bens considerados em si mesmo: imóveis e móveis; fungíveis e infungíveis; consumíveis e inconsumíveis; divisíveis e indivisíveis; simples e compostos; materiais e imateriais; e singulares e coletivos.
                                                           2  DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 469. 3  SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 44. 4  BRASIL. Código Civil, de 10 de janeiro de 2002. Lívro II, Título Único, Capítulos I – III.
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Já o Capítulo II do Código traz a divisão quanto aos bens reciprocamente considerados, dividindo-os em principais ou acessórios. Os bens acessórios dividem-se em frutos, produtos e benfeitorias. Em relação às pessoas, jurídicas e naturais, os bens serão públicos ou particulares, conforme pertençam a pessoas jurídicas de direito público ou a pessoas jurídicas de direito privado, conforme o Capítulo III. Como visto, a definição jurídica de bem, amoldada ao Direito Civil, passa a ser usada por todo o sistema jurídico brasileiro.   
1.1.3  Definições Filosóficas   
 A filosofia também se ocupou do que vem a ser bem, partindo de uma abordagem geral até a específica.   Primeiramente, por ser plurissignificativo, bem possui várias definições e pode ser estudado como um termo (expressão), que gera uma definição semântica (verificando as mudanças de significado durante nossa história), como um conceito, obtendo uma definição de ideia de bem ou como uma entidade, que gerará uma definição real de bem. 5 Para esta última, “É mister, portanto, perceber se se entende o bem como um ente ou como um ser; como uma propriedade de um ente - ou de um ser - ou como um valor”. 6  Em geral, bem significa “tudo o que possui valor, preço, dignidade, a qualquer título. Na verdade, B. [bem] é a palavra tradicional para indicar o que, na linguagem moderna, se chama valor [...]” 7 (grifo do autor) Do geral, retiramos o significado mais específico no qual a palavra em estudo se refere ao domínio da moralidade, ou seja, da conduta, dos comportamentos. Esse entendimento encontra-se no significado de ética. 8
                                                           5 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 17. 6  MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 7 ALBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. ed. ampl. e rev. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 121-123. 8  Ibidem, p. 121-123.
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Ao longo da história, vários filósofos ocuparam-se em buscar o significado da palavra bem, surgindo correntes de pensamentos ou pontos de vista fundamentais, sendo: a teoria metafísica e a teoria subjetivista. A primeira, que tem como modelo a teoria de Platão, na qual o bem “é realidade perfeita e é desejado como tal”.  Essa corrente teve muitos seguidores, dentre eles Santo Tomás de Aquino, que coloca Deus como perfeito e que será bom aquele que for semelhante a ele. Já a segunda, tem base aristotélica e é o inverso da primeira, ou seja, o bem “não é desejado por ser perfeição e realidade, mas é perfeição e realidade por ser desejado”. 9 É subjetivo porque parte da pessoa a ação que transforma o bem em perfeição. Seguem essa linha: Thomas Hobbes, John Locke e Immanuel Kant. A partir de Kant, o conceito de bem passa a ser dimensionado axiologicamente, ou seja, pelo estudo dos valores. A noção de valor tende a levar vantagem sobre a noção de bem nas discussões morais e passaram a ser uma forma alternativa entre o entendimento objetivista e o subjetivista. Essa modificação não é absoluta e vários filósofos contribuíram para o resgate da ideia de bem, como:   
[...] filósofos intuicionistas, como G. H. Moore (que identificou o problema moral com o do Bem, mesmo chegando à conclusão de que ele é racionalmente indefinível), os filósofos de orientação clássica e cristã (que, inspirando-se no modelo greco-tomista, vêem no Bem uma epifania do ser e, nas categorias de valor e fim, as duas manifestações co-essenciais dele) e os estudiosos (como os seguidores do neo-aristotelismo prático) que acreditam em alguma forma concreta [...] de Bem e de “bem-estar”. 10 (grifo do autor)  
 Ainda, há vários opositores do retorno do bem à filosofia contemporânea, que buscam deixar em segundo plano o estudo de bem, como:   [...] todos os que (dos neocontratualistas ao teóricos da ética do discurso), pressupondo a “prioridade da democracia sobre a filosofia” (Roty), consideram que a principal tarefa da ética não é impor determinada concepção de Bem (inevitavelmente ligada a determinada visão metafísico- religiosa do mundo e limitada a contextos geográfico-culturais específicos), mas em lutar pela garantia das condições básicas (liberdade, justiça) para que cada indivíduo ou grupo possa focalizar e perseguir seu próprio modelo de Bem e de bem-estar. Modelo que não é pensado como algo não modificável, mas segundo o critério de um construto passível de ser
                                                           9  Ibidem, p. 121-123. 10  Ibidem, p. 121-123.
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publicamente discutido e eventualmente modificado e refutado. 11 (grifo do autor)  
 Seguindo a linha Axiológica, discutem-se alguns pontos relevantes sobre o estudo do bem, agora visto como valor.  
  1.1.4  Estudo Axiológico   
Existe um grande número de teorias sobre o assunto, mas prevalece a divisão em duas grandes tendências-limite, uma que estuda o valor de forma subjetiva e outra objetiva, mas todas buscam saber como e porque os valores tem valor.   
1.1.4.1  Teorias subjetivistas da valoração   
 A teoria subjetivista de cunho psicológico, foca no indivíduo em seus desejos e prazeres e nas palavras de Miguel Reale,  
[...] reunindo várias “teorias psicológicas da valoração”, como, por exemplo, a de tipo hedonista, desenvolvida desde Aristipo e Epicuro até Bentham e Meinong (valioso é o que nos agrada, causando-nos prazer) ou a de tipo voluntarista, como a que, desde Aristóteles até Ribot e Ehrenfels, liga o problema do valor à satisfação de um desejo, de um propósito, a uma base sentimental-volitiva (valioso é o que desejamos ou pretendemos). 12 (grifo do autor)  
 Na mesma linha, Paulo Nader cita alguns autores que defendem a teoria subjetivista:  
[...] defendida por Ortega y Gasset, Meinong, Chistian Von Ehrenfels, entre outros, sustenta a tese de que os valores não têm validade por si, visto que o sujeito atribui significado às coisas de acordo com a reação positiva ou negativa que lhe provocam. Para Ortega, o sujeito confere dignidade ao objeto, atribuindo-lhe valor conforme o prazer ou agrado que lhe traz.
                                                           11  Ibidem, p. 121-123. 12  REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 195.
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Ehrenfels pensa que um objeto é valioso na medida em que o desejamos. 13 (grifo do autor)  
Essas teorias se completam e chegam à conclusão de que valioso é o que nos causa prazer, provocando o nosso desejo.  A análise individual traz problemas, pois os desejos, prazeres e preferências individuais são incertos e variáveis além de intransferíveis, trazendo problemas quanto à análise de preferência de grupos ou coletividade. Também, torna impossível saber quais desejos e prazeres são bons ou maus e distinguir desejos atuais com possíveis. Ainda, os valores continuariam existindo mesmos com o término do desejo ou quando estes não são satisfeitos. Somando-se a isso, não explica a força e pressão social que os valores representam. Há o predomínio da segunda tendência ou explicações objetivistas que veremos adiante.   
1.1.4.2  Teorias objetivistas da valoração   
O objetivismo busca explicar que a existência dos valores independe do sujeito, pois prescindem de estimativa ou conhecimento. Os valores existem em si e por si.  Das teorias que tentam explicar o valor de forma objetiva, destacam-se apenas a sociológica, a ontológica e a histórico-cultural. 14 A teoria sociológica busca estudar o valor, não perante o indivíduo, mas sim perante a sociedade com um todo, assim nos “estudos sociológicos de Durkheim (1858-1917) e de seus continuadores, é de importância primordial a teoria de uma consciência coletiva irredutível e superior à consciência dos indivíduos componentes”. Durkheim, traz ainda o conceito de consciência coletiva “repositório de valores, daí tirando a conclusão de que os valores obrigam e enlaçam nossa vontade, porque representam as tendências prevalecentes no todo coletivo,
                                                           13  NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 49. 14  REALE, Miguel. loc. cit., p. 197
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exercendo pressão ou coação exterior sobre as consciências individuais”. 15 (grifo do autor) Há restrições que possam ser feitas a estes estudos, mas foi de grande contribuição à explicação da objetividade dos valores, mostrando a razão pela qual os valores se impõem aos indivíduos, muitas vezes contrariando frontalmente seus desejos.
Qualquer explicação puramente sociológica dos valores coloca-nos, porém, diante de uma dificuldade de ordem filosófica, dificuldade esta que surge toda vez que se quer buscar uma explicação meramente empírica e causal para o mundo axiológico, ou, mais particularmente, para o mundo moral.  
Mostrar-nos como os valores nascem e se desenvolvem não é desvendar as razões de sua obrigatoriedade objetiva, como faz a Psicologia social e a Sociologia dos valores. Essa obrigatoriedade, que nasceria apenas da consciência coletiva, não explicaria atos dos mártires e heróis que se contrapõe a esse valor coletivo. Dai concluímos que a opinião da maioria não traz verdade absoluta, traz indício de verdade ou validade A segunda teoria que merece ser estudada é o ontologismo axiológico. Mas não há acordo entre os filósofos quanto à situação dos valores quanto a ontologia, alguns pensadores dão autonomia ontológica, outros já negam essa autonomia. O que é comum é o fato delas oporem-se a quaisquer explicações puramente empíricas dos problemas dos valores.  Paulo Nader traz seguidores dessa teoria e seus ensinamentos preponderam:   Para Hermann, os valores são essências que integram a ordem do ser ideal, existem autonomamente e possuem o caráter de princípios, não dependendo assim de realização. Segundo Max Scheler, os valores independem da variedade de formas de projeção e continuam existindo ainda que as coisas se modifiquem. [...] Para Scheler e Hartmann, os valores formam uma ordenação hierárquica absoluta e imutável, que pode ser intuída em um conteúdo apriorístico. [...] Tal. Concepção à luz do Direito, foi criticada por Heinrich Henkel, pois a intuição certeira e a hierarquia absoluta levariam à elaboração de sistemas jurídicos homogêneos, mas bastaria um breve estudo comparatista das ordenações jurídicas para se constatar a diversidade das valorações. 16   
                                                           15  Ibidem, p. 198 16  NADER, Paulo. loc. cit., p. 49.
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 Miguel Reale também traz a importância dos autores para esse estudo:  
[...] Segundo Scheler e Hartmann, os valores não resultam de nossos desejos, nem são projeção de nossas inclinações psíquicas ou do fato social, mas algo que se põe antes do conhecimento ou da conduta humana, embora podendo ser razão dessa conduta. Os valores representam um ideal em si e de per si, com uma consistência própria, de maneira que não seriam projetados ou constituídos pelo homem na História, mas "descobertos" pelo homem através da História. 17
  Analisando o proposto, chegamos à conclusão que valores são ideais a serem atingidos existentes antes de qualquer processo histórico, ou seja, esses valores seriam descobertos ao longo da história e são singulares. Assim, há a separação do problema do valor e o da história.  Outra teoria que vamos estudar é a histórico-cultural que possui várias tendências de acordo com os pensadores, mas o que as unifica é não ser possível compreender o problema do valor fora do âmbito da História.  Essa teoria tenta explicar que a natureza de certa forma se repete obedecendo a leis naturais com previsão estatística, mas o homem é que modifica essa natureza, usando as próprias leis naturais para instaurar novas formas de viver e de ser, dando a isso o nome de espírito. Essas modificações acabaram criando um novo mundo sobre o mundo já existente, natural, que nas palavras de Miguel Reale, “[...] é o mundo histórico, o mundo cultural, [...]. Esse novo mundo, baseia-se no homem como um ser espiritual, que projeta o espírito humano sobre a natureza criando os valores”. 18  Há divergência quanto ao que se move na realização histórica, porém as teorias concordam que é o espírito o único capaz de modificar a natureza para os fins do homem. Os valores representam o próprio homem e é por isso que o obrigam como se fosse uma autoconsciência espiritual. A atuação do espírito nas gerações cria o que chamamos de civilizações ou ciclos culturais.  Da mesma forma, Hegel denominava de espírito objetivo essa projeção do espírito para fora da de si no plano da Historia, “é, em suma, o mundo da cultura, ou o mundo histórico-cultural”. 19
                                                           17  REALE, Miguel. loc. cit., p. 203. 18  Ibidem, p. 205. 19  Ibidem, p. 207.
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 Um valor não é um modelo ideal estático, não é o real, pois, se o fosse exauria-se. É mais que isso. Sua essência é a de superar sempre a realidade graças à qual se revela e na qual jamais se esgota.  Portanto, a noção de bem ou valor para o nosso estudo é voltado para o homem individualmente ou coletivamente, dando mais ênfase nesta última, já que o bem coletivo é que se busca para ser tutelado pelo direito penal virando um bem jurídico. Essa escolha do bem é que veremos mais adiante.  Encerrando esse capítulo, diante das várias definições de Bem, deve-se estudar o que é bem jurídico fora e dentro do direito penal, sobretudo do constitucional.                         
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2  A CRIAÇÃO E EVOLUÇAO DO BEM JURÍDICO    
A sociedade se molda a partir de valores, mas nem todos eles são compartilhados com todos os indivíduos da sociedade da qual fazem parte. Vários mecanismos de controle fora da esfera estatal são capazes de dar validade de tornar os valores exigíveis, como por exemplo, as regras morais e religiosas.  Isso é feito numa perspectiva de conveniência, de preservar um modo pacífico de coexistência. É possível afirmar, que o bem jurídico vem do conceito de bem, evoluindo para aquilo que é bom, valioso e desejável, até que entra na esfera pública conseguindo o status de bem jurídico. Devemos levar em conta que a definição de bem jurídico varia no tempo e espaço, de acordo com o conceito público e privado, com a forma de governo e com a sociedade.  Como já dito, a sociedade é formada por valores que devem ser defendidos para que o sistema se sustente. Os valores são formados na sociedade a partir das necessidades individuais, que quando compartilhadas pela maioria, tornam-se valores culturais, podem ser defendidos tanto pela própria sociedade com regras morais, religiosas e outras, como o estado pode protegê-los através de leis.20 Ainda, dentro dessa proteção, alguns bens jurídicos precisarão de proteção ainda mais forte através do direito penal, por serem fundamentais para a coexistência pacífica. Cabe a aqueles que estão na parcela minoritária da sociedade se a adequar aos valores ou em caso de descumprimento sofrerem sanções estatais ou sociais. Isso se constrói ideologicamente de acordo com época histórica, com a necessidade, com a conveniência da sociedade e do modelo de estado, mas geralmente estará presente a valorização do empreendedorismo, da compaixão, do altruísmo, da independência etc. Nas palavras de Nilo Batista,   
Quem quiser compreender, por exemplo, o direito assírio, o direito romano, ou o direito brasileiro do século XIX, procure saber como assírios, romanos
                                                           20 LAMPE, E. J. Rechtsgut, Kultureller Wert und individuelles Bedürfnis. In: Festschrift für Hans Welzel zum 70. Geburtstag. Berlin: Walter de Gryter, 1974, p. 151 et seq. apud PRADO, Luiz Régis., op. cit., p. 41.   
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e brasileiros do século XIX viviam, como se dividiam e se organizavam para a produção e distribuição de bens e mercadorias; [...] 21  
Então surge a pergunta, como construímos nossas opções? No direito, as nossas opções nascem de valores constitucionais, já que o Estado Moderno se funda em um Pacto Social22 e este pacto é uma metáfora que cria o estado, ordena instituições, dinâmicas, procedimentos etc. Tudo isso é necessário para existência e sustentabilidade desse modelo de sociedade. Com o advento da Constituição de 1988, o Brasil viu-se diante de grandes mudanças, carta maior trouxe os princípios que norteiam as ações do Estado e da sociedade. Os valores migraram da esfera do bom, do moral, do correto para o socialmente aceito e não socialmente imposto. O presente trabalho traça, primeiramente, contornos históricos do conceito de bem jurídico, passando pelas teorias que o identificam e o fundamentam. Por que, desde que os indivíduos se pautam por valores até o momento em que eles são reconhecidos juridicamente, existe um caminho necessário a ser seguido. Não é fácil definir bem jurídico, corre-se sempre o risco de focar-se em algumas características e deixarmos outras características tão ou mais importantes de lado.  É importante frisar que no presente trabalho os conceitos podem variar de acordo com a época e o local da apresentação das ideias pelos autores, exigindo do leitor uma perspectiva histórico-social ao qual se vinculam as ideias.  Não podemos, imprudentemente, tentar determinar um conteúdo fechado, nítido e seguro do bem jurídico que supra todas as dúvidas para se chegar ao que deva ou não ser objeto de criminalização.   
2.1  Evolução histórico-conceitual da noção de bem jurídico   
 O homem, antes dos pensamentos iluministas, tratava o ilícito penal com uma visão teológica ou privada, não conseguindo distinguir as regras de Deus e as
                                                           21 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007.  p. 19.   22 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2010. p. 25-56.  
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dos Homens, sendo o crime um atentado contra a vontade divina, um pecado. A associação do Soberano com a Igreja permitiu que ele conseguisse o reconhecimento do povo quanto ao seu direito divino ao poder e ele podia impor-se como Deus. Neste momento histórico existiam muitas penas capitais ou de exclusão social (religiosa). 23  Posteriormente, com contribuições do Cesare Bonesana o Marquês de Beccaria,24 Francisco Carrara e A. J. Carmignani,25 surgiu o Movimento Iluminista  motivador da Revolução Francesa. Surgem desse movimento as ideias liberais que se refletem também no direito penal, trazendo o uso da razão na condução da vida em sociedade e tratando o crime de forma desvinculada da ética e religião. Assim, tornando o crime uma violação do contrato social, cuja pena tinha caráter de medida preventiva. Isso ocorreu com a ascensão da burguesia ao poder que buscou justificar a sociedade pelo critério liberal, baseado na racionalidade, deixando fora do poder a Igreja e os Soberanos. 26   No momento seguinte, Johann Anselm Ritter Von Feuerbach, traz o ensinamento de que “o núcleo material do delito surge, portanto, a partir da lesão de direitos subjetivos”. 27 Esses direitos lesados pertenceriam à pessoa ou ao Estado. O direito subjetivo emerge desse modo, como o instrumento mais eficaz para garantir a liberdade individual na esfera pessoal.  Pode-se notar que havia um nítido objetivo de limitar o legislador penal, pois no momento histórico anterior, havia uma criminalização excessiva, característica do absolutismo.  O primeiro a conceituar o bem jurídico, sem usar essa nomenclatura, foi Johann Michael Franz Birnbaum, o qual preconizou que o direito penal deveria ter como objeto somente bens jurídicos materiais (objeto material), e a eles se limitando. O ilícito viola um “bem” e não um “direito”. 28 O autor, ainda, trazia um
                                                           23 VON LISZT, Franz. Tratado de Derecho Penal. Tradução de Luís Jimenez de Asúa. 3. ed. Madrid: Reus, t. 2, p. 19. Cf. PRADO, Luiz Régis., loc. cit., p. 26.  24 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: Introdução e parte geral. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 24-27, v. 1. e CAPEZ, Fenando. Curso de Direito Penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 326, v. 1. 25  NORONHA, E. Magalhães., op. cit. 24-27, v. 1. e CAPEZ, Fenando., op. cit., p. 326-327, v. 1. 26 PRADO, Bitencourt. Elementos do Direito Penal: Parte geral. São Paulo: RT, 1995. p. 20 et sec. apud PRADO, Luiz Régis., loc. cit., p. 27.   27 BECHARA, Ana Elisa Liberatore S.. O rendimento da Teoria do Bem Jurídico no Direito Penal Atual. Revista Liberdades, São Paulo, n. 1, mai./ago. p.18, 2009. 28 LUISI, Luiz. Direito Penal. Bens constitucionais e criminalização. Disponível em: <http://www. uniaraxa.edu.br/ojs/index.php/juridica/article/download/98/89.>. Acesso em 09 de julho de 2013.   
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conteúdo individualista, identificando o bem jurídico como interesses primordiais do indivíduo (vida, corpo, liberdade e patrimônio).29  Karl Binding definiu bem jurídico formalmente como sendo aquilo que o legislador selecionasse como tal e que a lesão ao bem seria uma ofensa ao próprio Estado. Já Luigi Ferrajoli critica essa teoria entendendo que se trata de um retrocesso, pois o bem jurídico é tal “aos olhos do legislador”.30 No mesmo sentido, leciona Prado: “O que realmente importa é a resolução legislativa de proteger juridicamente um bem”. 31 Para Bechara, Não importava, assim, o real interesse social em sua proteção, e sim a mera escolha do legislador, que podia ser, até mesmo, aleatória e arbitrária.32  Von Liszt traz a teoria inversa de Karl Binding, pois o legislador, através da norma, não cria o bem jurídico, este já existe no meio social por ser um bem da vida do indivíduo ou da comunidade, mas ganha o status com a normatização. 33 Com isso há uma função restritiva ao legislador.   
2.2  Teorias negativas    
 Em meados do século XX, algumas teorias negaram a noção do bem jurídico, deixando este de ser a essência do conceito de delito, o qual tonou-se apenas uma violação da norma ou a um dever ser. 34 O maior nome desta posição foi Richard Honig, o qual afirmava o bem jurídico estava vinculado à ideia de ratio legis da norma jurídica, transformando-o em um método interpretativo.35 Os adeptos dessa orientação acabam por confundir o bem jurídico com o fim da norma incriminadora. 36  
                                                           29 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais: a doutrina geral do crime. 1. ed. brasileira, 2. ed. portuguesa. São Paulo: Revista dos Tribunais; Portugal: Coimbra Editora, 2007. p. 115. 30 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 375.   31  PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 31.   32  BECHARA, Ana Elisa Liberatore S., loc. cit., p. 18.   33 GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 77-78. Serie as ciências criminais no século XXI, v. 5.   34  GOMES, Luiz Flávio., loc. cit., p. 79 e  PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 32.   35  PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 34-35.   36  LUISI, Luiz., loc. cit., p. 90.   
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 Nesse período histórico, a noção de bem jurídico, por se vincular exclusivamente a ratio legis, não revela a essência do delito. O crime passa a ser uma infração à lei e não ao bem jurídico. Por exemplo: o homicídio é uma violação a norma que proíbe matar e não uma violação ao bem tutelado pelo estado, a vida. 37  Hanz Welzel propôs a teoria finalista, que também está relacionada a este tópico, já que relativizou a noção de bem jurídico, quando defendeu que a proteção do bem é um meio para se chegar a uma proteção ético-social. Ainda, Günter Jakobs, em sua ideia de funcionalismo sistêmico, afirma que o Direito Penal protege a norma, não o bem jurídico. 38  As teorias que negaram ou que obscureceram a noção de bem jurídico vieram numa época que coincidia com as formas de governo socialistas e nacionalistas, as quais utilizavam o direito para validar o formato de estado. O ponto comum é que se vinculava o bem jurídico à ratio da lei. Após a 2ª guerra, particularmente após os anos 60, renovam-se os debates sobre o bem jurídico, mesmo na Alemanha, cujo projeto Alternativo do Código Penal de 1966 chegou-se a incluir um parágrafo estabelecendo que “as penas e medidas se destinam à proteção dos bens jurídicos”. 39  Passada essa fase, muitas outras teorias de concepção moderna surgiram, algumas das quais serão alvo de nosso estudo, sendo: teorias sociológicas e teorias constitucionais.   
2.3  Teorias sociológicas   
 Apesar da reintrodução do bem jurídico ter ocorrido realmente com as teorias constitucionais a partir dos anos 70 do século passado, as teorias sociológicas ajudaram muito o estudo do tema, mesmo não fossem claras quanto ao conceito de bem jurídico e quanto à definição de crime.
                                                           37  GOMES, Luiz Flávio., loc. cit., p. 79-80.   38 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da insignificância no Direito Penal: Análise a luz das leis 9.099/95 (Juizado Especiais Criminais), 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) e da jurisprudência atual. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 110-111.   39 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 18. e GOMES, Luiz Flávio., loc. cit., p. 80-81.   
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 A primeira teoria a ser estudada é a de Winfried Hassemer, o qual entende que a seleção dos bens jurídicos deve ser de acordo com uma hierarquia de valores e com as concretas necessidades da sociedade e, ainda, que o legislador está vinculado a essa escala de valores. O autor vai contra a proteção do sistema social pelo direito penal sem considerar os indivíduos que a integram. 40 Por isso, sua doutrina é tida como realista, com bases político-criminais de ordem racional. Ele, ainda, classifica as teorias sociológicas pela função crítica ou sistemática de cada uma. As primeiras defendem que o bem jurídico vai além do Direito Penal, já sistemáticas afirmam que é uma criação do legislador. 41   Outra orientação é a defendida por Knut Amelung, o qual coloca o conceito de bem jurídico no centro da teoria sistêmica e o substitui pela nomenclatura “danosidade social”. 42 O direito seria um dos subsistemas com a função de garantir o sistema como um todo. Desse subsistema jurídico, o Direito Penal seria o mais importante, pois garantiria a conservação do sistema contra fatos de nocividade social, tendo como arma a pena.43 Günter Jakobs é outro seguidor da orientação funcionalista sistêmica.  A crítica à orientação sistêmica se dá porque ela se amolda a qualquer modelo econômico, ideológico e político, aceitando qualquer ordem jurídica sem levar em conta, de forma valorativa, o seu conteúdo. Outra crítica é quanto ao conceito de danosidade social por ser muito aberto. Calliess traz a terceira corrente, acompanhado por Mir Puig, que coloca o bem jurídico dentro da estrutura social, vinculado ao Estado.   
“Bens jurídicos, assim, são condições necessárias de um correto funcionamento dos sistemas sociais e sempre que tais condições se traduzem em concretas possibilidades de participação do indivíduo nos processos de interação social”. 44 (grifo do autor)
   Por fim, concluímos que as teorias sociológicas pecaram ao não conseguir formular um conceito material preciso a respeito do bem jurídico, delimitando-o (o que uma conduta delitiva lesiona e por que uma sociedade criminaliza um
                                                           40  GOMES, Luiz Flávio., loc. cit., p. 82.   41  PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 37-38.    42  GOMES, Luiz Flávio., loc. cit., p. 82.   43  LUISI, Luiz., loc. cit., p. 91. 44 PUIG, Santiago Mir, Introducción as las bases del derecho penal. Barcelona: Bosch. 1982. p.140. apud GOMES, Luiz Flávio., loc. cit., p. 85.   
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comportamento e outro não juridicamente e de forma satisfatória quanto ao seu conteúdo.  Certo é que surgiram as teorias constitucionalistas para tentar suprir essa deficiência conceitual.  É importantíssimo deixar claro que o direito não se constitui a partir de um movimento de razão pura, abstrata, gerada a partir de um homem médio que nasce na modernidade, o modelo do direito reflete e formata circularmente o social, o que devemos ser e o que somos. Nilo Batista cita Aníbal Bruno,   
sabemos como as sociedades humanas se encontram ligadas ao Direito, fazendo-o nascer de suas necessidades fundamentais e, em seguida, deixando-se disciplinar por ele, dele recebendo a estabilidade e a própria possibilidade de sobrevivência.45  
É nesse contexto que a Constituição vai disciplinar a sociedade atual e o direito infraconstitucional. O bem jurídico fundamental retirado da Constituição é que deve ser alvo do Direito Penal.   
2.4  Teorias Constitucionais   
 Saindo da realidade das teorias sociológicas, buscou-se uma definição de bem jurídico constitucionalmente materializado, que limitaria o legislador ordinário na criação do ilícito penal, nas palavras de Luisi “é na Constituição que o direito penal deve encontrar os bens que lhe cabe proteger com suas sanções”. 46 Quando o bem jurídico está positivado na constituição, “opera-se uma espécie de normatização de diretivas político-criminais”. 47  Essas teorias podem ser reunidas tomando por norte a forma de vinculação à norma constitucional, sendo: teorias constitucionais gerais e teorias constitucionais estritas. 48
                                                           45  BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v.1, t.1, p. 11.  apud BATISTA, Nilo., loc. cit., p. 22.   46  LUISI, Luiz., loc. cit., p. 92. 47  PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 51. 48  LUISI, Luiz., loc. cit., p. 93. e PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 51.
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 A teoria constitucional geral, com contribuição de Rudolphi e Roxin, vincula a criação do ilícito penal aos princípios fundamentais existentes na organização do estado e contidos na constituição, a partir dos quais se molda o sistema punitivo estatal. Para o primeiro doutrinador, o objetivo do direito penal é proteger as funções sociais e os mecanismos de proteção contra danos e perturbações à sociedade. 49 O segundo entende que o objetivo penalístico é garantir uma vida de paz em sociedade ao indivíduo, protegendo o bem jurídico (tido como pressupostos imprescindíveis para a existência comum, como a vida, a integridade física, a liberdade ou a propriedade) e ainda garantir as prestações públicas (como a assistência social) necessárias à existência do indivíduo. 50   Nas teorias de sentido estrito, o que se entende é que o legislador ordinário é obrigado a orientar-se pelo texto da Constituição, localizando nela os bens jurídicos e a forma de atuação na política criminal. Para Bricola,  
ao definir o delito como um fato previsto de forma taxativa na lei e idôneo para oferecer um valor constitucionalmente significativo, sustenta a legitimidade da sanção penal somente diante da presença de uma violação de um bem que, ainda que não tenha o grau de relevância da liberdade pessoal que é sacrificada, está ao menos dotada de significação constitucional. Disso se conclui que o ilícito penal pode concretizar-se exclusivamente em uma intolerável lesão a um valor constitucionalmente relevante. 51  
 Sintetizando as teorias constitucionalistas, vemos a positivação de normas programáticas nas Leis Fundamentais, as quais serão diretivas de política criminal para buscar o estabelecimento do Estado Democrático de Direito e, ainda, uma imposição de limites ao Estado para a eleição de quais bens serão merecedores de tutela, servindo (as normas positivadas) como suporte valorativo para essa imposição. As teorias orientam-se no sentido de usar a Constituição para delimitar a faculdade de criar crimes, partindo de uma forma de Estado formatada constitucionalmente.     
                                                           49  LUISI, Luiz., loc. cit., p. 93. 50  LUISI, Luiz., loc. cit., p. 93. e PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 51. 51 BRICOLA, Franco. Teoria generale del reato. Scritti di diritto penale. Dottrine generali. Teoria del reato e sistema sanzionatorio. Milano: Giuffrè, 1997. p. 565. v. 1, t. 1. apud GOMES, Luiz Flávio., loc. cit., p. 89.   
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3 O BEM JURÍDICO PENAL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988    
É necessário o resgate do bem jurídico constitucional na construção do direito penal em um movimento de criminalização e de descriminalização, fazendo assim, uma filtragem do que se tem como objeto de tutela do estado ou não. O bem jurídico é algo de valor reconhecido na ordem jurídica e por isso recebe uma tutela especial. Cabe-nos salientar que esses valores não surgem do nada, de forma abstrata, surgem do meio social levando em conta o local e tempo e o tipo de vínculo com o Estado.  Adiante, será abordado o bem jurídico-penal seguindo progressivamente até chegar ao conteúdo do bem jurídico-penal constitucional, o qual é pautado nos direitos fundamentais e no princípio da subsidiariedade, funcionando o direito penal como ultima ratio.   
3.1  O conceito de bem jurídico   
 Há grande dificuldade em conceituar o bem jurídico devido à falta de clareza do seu significado e ausência de precisão do seu conceito, mas há concordância dos doutrinadores apenas quanto a inexistência de um conceito material preciso que vincule o legislador em sua atividade de criminalização. 52  É possível dividir as teorias em formais e materiais. A tendência da doutrina nacional e estrangeira é de identificar o bem jurídico como o bem protegido pela norma penal, seguindo uma caracterização formal do conceito de bem jurídico. O que se busca atualmente é um conceito material de bem jurídico, o qual deve delimitar a atividade legislativa criminalizadora e que sirva de base crítica para as leis existentes.
                                                           52  GOMES, Luiz Flávio., loc. cit., p. 108. e PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 41.
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De acordo com os ensinamentos de Lampe, já citados anteriormente, o bem jurídico tem como fundamento valores culturais criados de necessidades individuais que são tutelados pelo estado quando socialmente dominantes e necessitados de proteção estatal. As teorias são as mais variadas, alguns autores entendem que o bem jurídico seria valores culturais, outros valores-éticos, bens vitais, interesses, além de outras definições que nos ocuparemos adiante. 53 Welzel entende que o bem jurídico é um “bem vital da comunidade ou do indivíduo, que por sua significância social é protegido juridicamente” .54   Francisco Muñoz Conde conceitua o bem jurídico como “os pressupostos que a pessoa necessita para sua auto realização na vida social”. 55 Hassemer entende que a missão do Direito Penal é tutelar bens jurídicos e para isso deve-se proteger valores éticos da ação que sejam os mais elementares. 56 Com isso, os bens jurídicos realizam funções sociais. Para Miguel Polaino Navarrete, é o   
bem ou valor merecedor da máxima proteção jurídica, cuja outorga é reservada às prescrições do Direito Penal. Bens e valores mais consistentes da ordem de convivência humana em condições de dignidade e progresso da pessoa em sociedade. 57  
Ranieri afirma que “o bem ou interesse protegido por uma norma de Direito Penal e que resulta lesionado pelo delito ao ser violada a norma que o protege”. 58 Rudolphi entende que são “conjuntos funcionais valiosos constitutivos da nossa vida em sociedade, na sua forma concreta de organização”. 59 Bettiol diz que o bem jurídico “é a posse ou a vida, isto é, o valor que a norma jurídica tutela, valor que jamais pode ser considerado como algo de material, embora encontrado na matéria o seu ponto de referência”. Ainda afirma que “é                                                            53  BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. loc. cit.,  p. 95.   54 WELZEL, Hanz. Direcho Penal Alemán: P. G. Tradução de bustos Ramírez e Yáneza Pérez. Santiago: Jurídica de Chile, 1970. p. 15. apud PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 42. 55 CONDE, Francisco Muñoz. Introducción al Derecho Penal. Barcelona: Bosch, 1975. p. 48. apud PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 43. 56 HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Tradução de Muñoz Conde e Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p 102. apud PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 42. 57 NAVARRETE, Miguel Polaino. El bien jurídico em el Derecho Penal. Sevilha: Public de la Universidad, 1974. p. 34. apud PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 43. 58 RANIERI, Silvio. Diritto Penale, P. G. Milano: Ambrosiana, 1945. p. 88. apud PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 44. 59 RUDOLPHI, Hans-Joachim. Die verschiedenen Aspekte des Rechetsgutsbegriffs. In: Festschrisft für Ricard M. Honig, p. 151.  apud PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 43-44.
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precisamente por esta razão que falamos, a propósito do bem jurídico, termo mais apropriado para exprimir a natureza ética do conteúdo das normas penais, ao passo que interesse é o termo que exprime uma relação”. 60 Em sentido diverso, Battaglini afirma “nada mais é do que a norma penal contrariada pelo crime (objeto jurídico formal)” e “é constituído pelo interesse que a norma protege (substancial)”. 61 Zaffaroni diz que o bem jurídico penalmente tutelado   
é a relação de disponibilidade de uma pessoa com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante normas que proíbem determinadas condutas que as afetam, aquelas que são expressadas com a tipificação dessas condutas. 62  
Roxin entende que os bens jurídicos são   
pressupostos imprescindíveis para a existência em comum, que se caracterizam numa série de situações valiosas, como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade de atuação, ou a propriedade, que toda a gente conhece, e na sua opinião, o Estado social deve também proteger penalmente [...].63  
A doutrina brasileira também traz opiniões diferentes para conceituar bem jurídico. Para Nelson Hungria, “bem é tudo aquilo que satisfaz a uma necessidade da existência humana (existência do homem individualmente considerado e existência do homem em estado de sociedade)”. 64 Aníbal Bruno, afirma que o bem jurídico é [...] tudo o que pode satisfazer uma necessidade humana e, nesse sentido, é tutelado pelo Direito. São interesses fundamentais do indivíduo e da sociedade, que, pelo seu valor social, a consciência comum do grupo ou das camadas nele dominantes elevam à categoria de bens jurídicos, julgando-os merecedores de tutela do Direito, ou, em particular, da tutela mais severa do Direito Penal. Interesses de valor permanente, como a vida,
                                                           60  BETTIOL, G. Direito Penal. Tradução de José da Costa Junior e Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, v.1. p. 229-231. apud PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 44. 61  BATTAGLINI, Giulio. Direito Penal: Parte Geral. Tradução de Paulo José da Costa Júnior; Armida Bergamini Miotto e Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 1973. v. 1, p. 156-157. apud PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 44. 62  ZAFARONI, Eugênio Raúl. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 1982. v3. p. 238. apud PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 45. 63 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luis Natscheradetz. Lisboa: Vega, p. 27-28. apud PRADO, Luiz Regis., loc. cit., p. 45. 64 HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal, 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1978, v. 1, t. 2, p.10.
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a liberdade, a honra; ou variável, segundo a estrutura da sociedade ou as concepções de vida de determinado momento. 65  
Heleno Cláudio Fragoso, diz que bem jurídico:  
[...] é o bem humano ou da vida que se procura preservar, cuja natureza e qualidade dependem, sem dúvida, do sentido que a norma tem ou que a ela é atribuído, constituindo, em qualquer caso, uma realidade contemplada pelo direito. Bem jurídico é um bem protegido pelo direito: é, portanto, um valor da vida humana que o direito reconhece, e a cuja preservação é disposta a norma jurídica. 66  
Já Magalhães Noronha, entende como “Bem é o que satisfaz às necessidades da existência do homem, seja de natureza material ou imaterial: vida, honra etc. Interesse é a relação psicológica em torno desse bem, é sua estimativa, sua valorização.” 67  A doutrina tradicional, com contribuições de Nelson Hungria, Heleno Fragoso, Aníbal Bruno e Magalhães Noronha, não reconheceu qualquer função crítica ou político-criminal ao conceito de bem jurídico. E para Greco, “no Brasil, a doutrina tradicional, a rigor, nem sempre utiliza as palavras „bem jurídico‟, preferindo por vezes o termo objetivo ou objetividade jurídica”. 68 Continua Greco, que só recentemente a doutrina pátria “começou a propor um conceito de bem jurídico como diretriz para o legislador” 69 e compara a situação do Brasil com a Alemanha onde é utilizado o bem jurídico como “um mecanismo que mais e mais serve de base para legitimar a expansão do Direito Penal”. 70 Atualmente, procura-se legitimar materialmente os bens jurídicos na Constituição. Levando em conta a divisão didática em material e formal, a vertente material coloca um conteúdo básico no conceito de bem jurídico que seja capaz de limitar o legislador na criação de delitos e servir de critério crítico da legislação vigente.  
                                                           65  ANÍBAL, Bruno. Direito Penal: parte geral: introdução, norma penal, fato punível. 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 1, p. 5-6. 66  FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 16. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 330. 67  NORONHA, Eugênio Magalhães. Direito penal: introdução e parte geral. 29. ed. atual. Por Adalberto José Q. T. Camargo Aranha, São Paulo: Saraiva, 1991, v. 1, p. 112. 68 GRECO, Luís. “Princípio da ofensividade” e crimes de perito abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 49, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, jul./ago. 2004, p. 93. 69  Ibidem, p. 93. 70  Ibidem, p. 93.  
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Ainda didaticamente, podemos reunir em dois grupos os defensores do conceito material de bem jurídico, sendo que uns entendem que o bem jurídico é externo ao ordenamento jurídico, é um bem da vida, independentemente da vontade legislativa; outros entendem que o bem jurídico é determinado juridicamente pelo Direito Constitucional e não pelo Penal. Pode-se afirmar que essa última orientação tem prevalecido. Sabe-se, agora, que os bens jurídicos recebem proteção do estado não só pelo direito penal como também pelas outras áreas do direito como a administrativa, cível, trabalhista, ambiental etc. Existe polêmica na seleção de quais categorias do bem jurídico serão merecedoras de tutela e ainda quem são os titulares do bem jurídico. Os bens jurídicos também podem ser classificados de várias formas devido à variedade de categorias existentes, como individuais e supra individuais, físico e morais, materiais e imateriais entre outras. 71 Dentre essas, a classificações que merece uma diferenciação é dos bens jurídicos individuais e supra individuais, pois estes influenciarão, mais a frente, no estudo de quais bens jurídicos serão tutelados pelo direito penal, passando pelo crivo do princípio da subsidiariedade e quando aos direitos fundamentais. Levando em conta a titularidade, são individuais os bens jurídicos pertencentes às pessoas físicas, singulares, como: a vida, a saúde pessoal, a liberdade, a propriedade, a honra etc. Já os supra individuais, sendo das mais diferentes espécies, subdividindo-se em bens públicos ou gerais ou institucionais, como: aqueles que pertencem ao Estado, órgãos ou entidades públicas ou à sociedade, como maior exemplo a segurança do Estado e os interesses de administração da justiça; e difusos, sendo aqueles pertencentes a um grupo determinável (é possível determinar, mas não é preciso) ou determinado (obrigatória a determinação) de pessoas, como: meio ambiente, segurança pública, direitos dos consumidores etc.  A polêmica que existe sobre a titularidade do bem jurídico traz posições contrárias - de um lado temos Binding que afirma o valor social do bem, sendo este de titularidade da sociedade e do estado e do outro Von Liszt, que diz ser de titularidade das pessoas todos os bens jurídicos existentes – e não dá
                                                           71  BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. loc. cit.,  p. 95.   
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solução para o problema de quais merecem proteção jurídico-penal. Daqui surgem novas teorias como a monista e dualista. 72 Para encerrar esse tópico, busca-se uma definição de bem jurídico construída numa longa evolução, mas que não seja fechada, límpida e segura, pois ainda existem dúvidas a serem respondidas e controvérsias a serem superadas. Pela impossibilidade de um conceito fechado sobre o tema, concorda-se com a definição de Dias,   
expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso. 73  
Passamos por várias teorias para conceituar bem jurídico, mas o que podemos afirmar, é que se faz necessário buscar na constituição quais bens são merecedores de proteção. Essa necessidade de vinculação à Carta Mágna, justifica- se para limitar o legislador na eleição, dentre os bens jurídicos, quais deverão sofrer tutela penal.  No próximo tópico, falaremos sobre o bem jurídico penal, demonstrando que este deve ser retirado da constituição e tutelar bens jurídicos fundamentais passando pelo princípio da subsidiariedade.   
3.2  Bem jurídico-penal e bem jurídico-penal constitucional   
Dos bens jurídicos possíveis, alguns deles, os mais especiais, fundamentais, que merecem proteção diferenciada, são tutelados pelo direito penal. Daí surge a pergunta, por que? Porque o Direito Penal é mais violento, só usado em último caso quando esgotarem as outras formas de resolver o problema.  
                                                           72 “Para a concepção dualista do bem jurídico, „junto aos valores individuais existem outros comunitários e públicos, a essência do bem jurídico não só será individual ou individualista, senão também social, pública e comunitária, que gerará autênticos bens jurídicos (valores), independentes dos individuais, e dignos de proteção e tutela penal‟. Para as teorias monistas, ou se concebe o bem jurídico desde o ponto de vista do Estado (concepção monista estatal) ou se o concebe desde o ponto de vista da pessoa.” GOMES, Luiz Flávio. loc. cit., p. 140-142.   73  DIAS, Jorge de Figueiredo. loc. cit., p. 114.
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Gomes, citando Palazzo, Arroyo Zapatero, García-Pablos de Molina e Rodrígues Mourillo, diz: [...] Os bens jurídicos não devem receber uma proteção absoluta e uniforme do Direito, senão seletiva e fragmentária: “O Direito penal só protege os bens mais valiosos para a convivência; o faz, ademais, exclusivamente frente aos ataques mais intoleráveis de que possam ser objeto (natureza „fragmentária‟ da intervenção penal); e mesmo assim quando não existem outros meios eficazes, de natureza não penal, para salvaguardar aqueles (natureza „subsidiária‟ do Direito penal)”.74  
O Sistema Penal é apenas uma das soluções possíveis para a garantia da ordem social. O controle social primário pode ser feito através da família, da educação, da religião, dos meios de comunicação etc. Já o controle social penal só atuaria quando falhassem as outras formas de controle.  No pensamento jurídico moderno, a doutrina do bem jurídico, guiada pelos princípios fundamentais proclamados no Estado Democrático de Direito é fundamental para o estudo da problemática penal, limitando o legislador e evitando a arbitrariedade do Estado.  Sabendo que o crime deve ser combatido para manter a coexistência pacífica entre os integrantes da sociedade, o Estado lança mão do Direito Penal para manter o sistema funcionando. Mas quais bens devem ser protegidos por essa esfera do direito? Responderemos essa pergunta ao final dos próximos tópicos, sem, contudo, fazer de forma fechada, acabada, já que a sociedade é mutável e por consequência o bem jurídico. O que faremos é traçar parâmetros para responder a essa pergunta.   
3.2.1  Funções do bem jurídico-penal   
 Tratou-se diversas vezes sobre a importância de limitar a intervenção estatal e para isso o bem jurídico possui fundamental importância. Além desta, são diversas as funções do bem jurídico, sendo que vários doutrinadores se ocuparam de estudá- las.
                                                           74  GOMES, Luiz Flávio. loc. cit.,  p. 135-136.   
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 Von Liszt trouxe em seu estudo a função limitadora. Cobo del Rosal e Anton Vivès trazem as funções de garantia, sistemática e exegética. Mir Puig entende existir as funções sistemática, interpretativa, limitadora da pena e político-criminal. Octavio de Toledo contribui com as funções dogmática ou garantidora, política e de segurança.75 Nilo Batista traz as funções axiológica, sistemático-classificatória, exegética, dogmática e crítica.  Em todos eles a função de garantia traz a limitação à atividade de punir do Estado. 76  Dentre todas, as funções de garantia, crítica, interpretativa, sistemática e individualizadora são as mais importantes para a seleção dos bens merecedores de tutela penal.   
3.2.1.1  Função de garantia ou de limitar o direito de punir do estado ou político- criminal  
   Partindo da premissa que o delito lesa ou ameaça concretamente um bem jurídico,77 é plenamente justificável a pretensão do poder estatal castigar a conduta que ameaça um bem jurídico relevante socialmente 78   Essa função garantista não deve ser exagerada para não considerar como bem jurídico, de forma pervertida, interesses de grupo ou de classe dominante, estes sem valor fundamental para o restante da comunidade.79 Então, o legislador deve tipificar apenas condutas mais graves, que lesionem ou coloquem em perigo os bens jurídicos fundamentais. Essa limitação impede uma formulação de crimes sem critério de seleção, tendo um caráter político-criminal. 80 Essa restrição configura uma garantia ao indivíduo, pois o bem jurídico delimita a norma e a sua criação.  Não podemos esquecer que o bem jurídico só terá força limitadora enquanto validado pela constituição, visto ser esta a fonte maior de valores a serem tutelados pelo direito penal.  Em decorrência, tem-se a função crítica do bem jurídico.                                                            75 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. op. cit., p. 129-130.   76  BATISTA, Nilo., op. cit., p. 96 - 97.   77  PRADO, Luiz Régis., op. cit., p. 28.   78  GOMES, Luiz Flávio., op. cit., p. 139. e LOPES, Maurício Antonio Ribeiro., op. cit., p. 129. 79  GOMES, Luiz Flávio., op. cit., p. 139.  80  PRADO, Luiz Régis., op. cit., p. 48.
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3.2.1.2  Função crítica   
Esta função aparece a partir da identificação do bem jurídico e remete a seguinte pergunta: qual o motivo da escolha legislativa de determinado bem jurídico e não de outro? Assim, gera-se uma crítica do Direito Penal como um todo. Em outras palavras, Nilo Batista na sua classificação das funções diz:   
[...] a indicação dos bens jurídicos permite, para além das generalizações legais, verificar as concretas opções do legislador, criando, nas palavras de Bustos, oportunidade para “a participação crítica dos cidadãos em sua fixação e revisão”[...]81   
No mesmo sentido Gomes, “[...] uma função crítica do sistema penal no sentido de mantê-lo submetido a uma permanente revisão.” 82 Lopes cita Muñoz Conde, “tem o penalista que elaborar um conceito material, e não formal, de bem jurídico, que, comparado com as concepções extrajurídicas, lhe permita uma função crítica dos bens jurídicos protegidos pelo legislador.” 83  E o próprio Lopes ensina,   
A função crítica de bem jurídico, de início, determina o que o legislador estima que deva ser protegido pelo Direito Penal e se relaciona nesse sentido com a função hermenêutica das normas penais enquanto exame do conteúdo da proibição, de tal modo que a concepção que se mantenha do bem jurídico como fundamento geral incidirá no processo imperativo. 84  
 Haverá uma função crítica do bem jurídico quando este for retirado da constituição, pois é nela que residem os bens jurídicos fundamentais que precisam de proteção penal.   
3.2.1.3  Função teleológica, interpretativa ou exegética  
                                                           81  BATISTA, Nilo., loc. cit., p. 96-97. 82  GOMES, Luiz Flávio., loc. cit., p. 139. 83 MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción al derecho penal. Barcelona: Bosch, 1989. p. 43. apud LOPES, Maurício Antonio Ribeiro., loc. cit., p. 131. 84  LOPES, Maurício Antonio Ribeiro., loc. cit., p. 131.
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 É a função de interpretar os tipos e dar a eles sentido e fundamento, lembrando que o bem jurídico é protegido pela lei penal e por isso “é o elemento central do preceito.” 85 Nesse sentido Prado cita Jescheck, “é o conceito central, em torno do qual giram os elementos objetivos e subjetivos e, portanto, um importante instrumento de interpretação.” 86  Lopes diz que essa função não atua separada das demais funções e lembra, especialmente, da função limitadora do bem jurídico e cita Mir Pug, “o converte em pedra angular para a interpretação da norma penal, dirigida em sua última ratio a proteger a sociedade.” 87  Assim, determina-se qual o bem jurídico a ser protegido em cada tipo penal e daí excluem-se as condutas que não afetem concretamente o bem jurídico, pois “faltaria [...] a antijuricidade material da conduta.” 88 Ainda, deve-se verificar a ratio legis da norma que será também um guia para a interpretação. 89   
3.2.1.4  Função sistemática   
 Essa função classifica a parte especial do Código Penal formando grupos de tipos penais derivados dos bens jurídicos. Essa organização sistemática facilita a estruturação da punição. Cada bem jurídico corresponde a um capítulo do Código Penal, dentro do qual se encontram as tipificações. Por exemplo: para o bem jurídico vida tutelado no Capítulo I do Título I do Código Penal Brasileiro, temos os tipos penais do Art. 121 - Homicídio; Art. 122 - Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio; Art. 123 - Infanticídio; Formas de aborto dos Artigos 124 a 128. 90    
3.2.1.5  Função individualizadora ou de critério de medição da pena
                                                           85  BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte geral. op. cit. p. 16. apud BATISTA, Nilo., loc. cit., p. 96. 86 JESCHECK, H. Tratado de Derecho Penal: P. G. Tradução de Mir Puig e Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, v. 1, p. 9 et seq. apud PRADO, Luiz Régis., loc. cit., p. 48. 87 MIR PUIG, Santiago. Bien jurídico y bien jurídico-penal como limites del ius puniendi, in Estudios pnales y criminológicos, Universidade de Santiago de Compostela, t. XIV, 1991, p. 205.  apud LOPES, Maurício Antonio Ribeiro., loc. cit., p. 130. 88  LOPES, Maurício Antonio Ribeiro., loc. cit., p. 130. 89  GOMES, Luiz Flávio., loc. cit., p. 138 - 139. 90  BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Título I, Capítulos I.
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 Essa função atua como critério de dosimetria da pena de acordo com a gravidade da lesão ao bem jurídico e da importância deste. 91  Temos como exemplo o Art. 59 e Art. 66 ambos do Código Penal:   
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:  I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.  
Art. 66 - A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei. 92  
 Resumindo todas as funções expostas: a limitadora atinge o legislador no momento de criar tipos penais; a sistemática reúne os tipos da parte especial do código de acordo com o bem jurídico tutelado; a individualizadora traz a quantidade de pena de acordo com a conduta lesiva; a interpretativa busca no bem jurídico o sentido e fundamento do tipo penal; e a crítica objetiva verificar se o bem jurídico escolhido é o mais correto e se está sendo protegido pela norma criada.    
3.2.2 Sistema social e sistema jurídico-constitucional   
Na tentativa de conceituar bem jurídico penal, impõe-se condições mínimas para sua legitimação, tais como: possuir conteúdo material para servir ao conceito material de crime; ser um padrão crítico de normas constituídas ou que venham a ser, para legitimar o processo de criminalização ou descriminalização, surgindo com uma noção transcendente ao sistema penal; e ter orientação político-criminal dentro do sistema jurídico-constitucional. 93  Dessas ideias surge a tentativa de se colocar no conceito de bem jurídico penal todos esses requisitos, uns partindo para o sistema social (tendência                                                            91  PRADO, Luiz Régis. loc. cit., p. 49. 92  BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Título V, Capítulos III. 93  DIAS, Jorge de Figueiredo. loc. cit., p. 116-117.
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imamentista) e outros para o sistema jurídico-constitucional (tendência transcendentalista). 94 Existem aqueles que buscam por uma funcionalidade do sistema jurídico, como Amelung que tenta colocar na base do conceito material de crime a noção de dano social. No mesmo sentido ainda temos Jakobs e Augusto Silva Dias. 95   Para essas teorias funcionalistas penais o que é posto em questão, no trato da noção de bem jurídico, em maior ou menor grau, é a estabilidade da norma penal como instrumento adequado à manutenção do sistema social e em segundo plano, a realização individual do cidadão. Assim, os delitos sistêmico-funcionais revelam uma razão sistêmica, de lesões de meros interesses funcionais, tendo como consequência inconstitucionalidade material. 96 São impróprias, para validação jurídico-penal, as construções do sistema social, pois esvaziam o conteúdo do bem jurídico e a sua função crítica, cumprindo apenas funções interpretativas e sistemáticas. Isso ocorre porque as formulações são formais e abstratas e o bem jurídico passa a ser uma pura categoria valorativa. 97  As tendências transcendentalistas tratam o bem jurídico fora do sistema normativo, preexistente a este, e não como uma decisão do legislador. Diferentemente da noção anterior, na qual o sistema social é o legitimador e produtor dos bens jurídicos, as teorias transcendentalistas requerem que “os bens do sistema social se transformam e se concretizam em bens jurídicos dignos de tutela penal (em bens jurídico-penais) através da ‘ordenação’ axiológica jurídico- constitucional”.98 (grifo do autor)  Essa ordem deve ser um quadro obrigatório de referência e um critério regulativo do setor punitivo do Estado, ou seja, o bem jurídico constitucional protegido pelo direito penal deve ser a concretização de valores constitucionais expressos ou implícitos ligados aos direitos e deveres fundamentais (direito penal de
                                                           94 “[...] tendências transcendentalistas (que admitem, como pioneiramente concebeu com Von Liszt, que o bem jurídico tem origem e está além do sistema jurídico positivo) e as imamentistas (que concebem o bem jurídico dentro do sistema jurídico, como fruto da norma) [...]”. GOMES, Luiz Flávio. loc. cit., p. 109. 95 DIAS, Augusto Silva, tentou uma legitimação jurídico-penal ao tentar “definir bem jurídico como objeto de valor que exprime o reconhecimento intersubjetivo e cuja proteção a comunidade considera essencial para realização individual do cidadão participante.” DIAS, Augusto Silva, “Delicta in se” e “Delicta mere prohibita”: uma Análise das Descontinuidades do Ilícito Penal Moderno à Luz da Reconstrução de uma Distinção Clássica, 2003. p. 655 et seq.  apud DIAS, Jorge de Figueiredo. loc. cit., p. 118. 96  Ibidem, p. 118. 97  GOMES, Luiz Flávio. loc. cit., p. 109. 98  DIAS, Jorge Figueiredo. loc. cit., p. 119.
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justiça ou primário ou clássico) e à ordem social, política e económica (direito penal administrativo ou secundário ou extravagante). 99  Por fim, temos que, nas palavras de Gomes,   
Se de um lado é certo que a teoria do bem jurídico, no Direito penal, não se desenvolveu (ainda) o suficiente para nos oferecer um catálogo “fechado” dos bens jurídico-penais, de outro não menos correto é que (ao menos) já se conseguiu delinear uma gama enorme de critérios deslegitimadores da atividade legislativa, consistente na seleção dos bens jurídicos que podem (e devem) compor o quadro do Direito penal do Estado Constitucional e Democrático de Direito. 100
   A partir dessa afirmação, continuaremos a impor critérios de escolha do bem jurídico digno de tutela penal.   
3.2.3  Direito penal subsidiário ou ultima ratio ou intervenção mínima   
 Temos a muito falado sobre o Direito Penal ser o último recurso a ser empregado para punir o infrator. Este deve ser subsidiário, protegendo apenas bens jurídicos fundamentais e deve ser mínimo nessa criminalização. Aqui, todas as expressões são tratadas como sinônimos apesar de haver posições diversas.  Esse princípio surgiu com o movimento social da ascensão da burguesia que ia contra o Sistema do absolutista, cujo direito penal era muito abrangente e com excessiva criminalização. Para a evolução histórica do princípio, tivemos contribuições diversas como: Montesquieu, Beccaria, Tobias Barreto, Roxin, Quintero Olivares, Cunha Luna e outros. 101  A formulação atual do princípio da subsidiariedade, parte do pressuposto que existem outros mecanismos jurídico-estatais de intervenção na esfera da liberdade pessoal do indivíduo e também de punição (imposição de pena), especialmente a via administrativa, de forma que o direito penal apenas tem                                                            99 O direito penal primário é aquele que visa proteger a esfera de atuação pessoal, contido nos códigos penais e o secundário, aqueles direitos sociais e econômicos de atuação social. Lembra o autor que esses direitos são mutantes, podendo surgir novos eu deixar de existir outros já tutelados. O importante é lembrar o caráter de ultima ratio do direito penal e da fundamental importância para o homem viver em sociedade, constitucionalmente falando. Cf. DIAS, Jorge Figueiredo. loc. cit., p. 120- 121. 100  GOMES, Luiz Flávio. loc. cit., p. 143. 101  BATISTA, Nilo. loc. cit., p. 84-85.
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legitimidade para atuar de forma subsidiária, protegendo bens imprescindíveis à coexistência pacífica. Ele aparece com uma Política Criminal apta a restringir o poder de punir do Estado, derivando da própria natureza do Direito Penal e do Estado de direito material. 102  Para Luisi, o bem jurídico deve ter significância para ser tutelado pelo Direito Penal, havendo formas variadas de lesão a esse bem. Continua, que deve-se selecionar as lesões mais graves para serem tutelada penalmente e que, ainda, as lesões não possam ser protegidas e sancionadas por outra esfera jurídica e afirma: “[...] O critério básico, portanto, desse processo de escolha há que se guiar pelo princípio da „última ratio‟ que partindo da relevância do bem e da gravidade de lesão ao mesmo, faz com que se torne necessária a intervenção penal.” 103 Lopes e Batista trazem a posição de Roxin e Navarete, “A subsidiariedade do Direito Penal, pressupõe a sua fragmentalidade,104 deriva de sua consideração como remédio sancionador extremo, que deve, portanto, ser ministrado apenas quando qualquer outro se revele ineficiente.” 105  Roxin traz uma série de consequências, destacadas abaixo, da adoção da função do direito penal como a tutela de bens jurídico-penais, sendo este o elemento constitutivo relevante do conceito material de crime. Essas consequências derivam da limitação ao legislador pela adoção da teoria do bem jurídico enquadrando-se no princípio da subsidiariedade. Assim,  
[...] puras violações morais não conformam como tais a lesão de um autêntico bem jurídico e não podem, por isso, integrar o conceito material de crime. [...] Do mesmo modo não conformam autênticos bens jurídicos proposições (ou imposição de fins) meramente ideológicas. [...] Objeto de criminalização não deve ainda constituir, por igual motivo, a violação de valores de mera ordenação, subordinados a uma certa política estatal e por isso de entorno claramente jurídico-administrativo.” 106 (grifo do autor)  
 Como exemplo das violações morais temos a evolução do direito penal sexual, que até pouco tempo no Brasil era tratado moralmente e só a pouco, com a
                                                           102 PRADO, Luiz Régis. loc. cit., p. 57. 103 LUISI, Luiz. loc. cit., p. 95. 104 Binding registrou o caráter fragmentário. Sendo o Direito Penal fragmentário, não protege todos os bens jurídicos de todos os tipos de violação, mas apenas os bens jurídicos mais importantes contra as formas mais graves de agressão. BINDING, Karl. Lehrbuch des gemeinen deutschen Strafrechts. Ulrech: Scientia, 1965. p. 20. Cf. BATISTA, Nilo. loc. cit., p. 86. 105 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. loc. cit., p. 68. e BATISTA, Nilo. loc. cit., p. 86-87. 106 CLAUS ROXIN, Strafrecht. Allgemeiner Teil. Ban I. Grundlagen. Aufbau der Verbrechenslehre. 4. Ed. 2006.  apud Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. loc. cit., p. 124.
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lei 12.015 de 07 de agosto de 2009, mudou o título VI do Código Penal que tutelava Os costumes passando a tutelar a Dignidade Sexual, revogando alguns crimes que continham, por exemplo, a expressão eminentemente moral “mulher honesta”. 107  Dias exemplifica as proposições meramente ideológicas dizendo que “casos como da criminalização da aquisição ou posse de drogas para consumo, em nome da „existência de uma sociedade livre de drogas‟ [...].”108  Os crimes que violam valores de mera ordenação são entendidos como aqueles que protegem bens jurídico-administrativos e que não devem ser alvo de tutela penal por serem constituídos pela proibição e porque não preexistem à lei proibitiva. Esses crimes passam, ainda, pelo crivo do princípio da subsidiariedade já descrito acima. Os maiores exemplos são as Contravenções penais que hipertrofiam o Direito Penal. 109 Atualmente, em sentido contrário ao exposto acima, de usar o direito penal como medida subsidiária, o legislador utiliza-se do Direito Penal em todas as situações possíveis, trazendo simultaneamente sanções punitivas administrativas e penais, dando a entender que o direito penal, para o legislador, é tido como primeira arma e não como ultima ratio. Outro critério, que ajudaria a conter essa hipertrofia criminal, seria o Princípio da proporcionalidade que traz a necessidade de tutela penal, ou seja, não basta que um bem jurídico seja lesionado para ser tutelado penalmente, mas essa tutela deve ser necessária e indispensável para a realização do indivíduo na comunidade. Esse princípio também é um critério limitador do poder de punir do Estado, pois combate o excesso dessa coerção estatal sobre o cidadão, lesionando indevidamente os direitos fundamentais individuais. O que é desproporcional acaba virando uma garantia contra arbitrariedades do Estado.110 Em continuidade à limitação estatal, temos ainda o Princípio da proibição do excesso e o da proteção deficiente.111 O primeiro é violado quando o Estado lança
                                                           107 BRASIL. Lei nº 12.015 de 07 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto- Lei no 2.848, de 07 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. 108 CLAUS ROXIN, Strafrecht. Op. cit.  apud DIAS, Jorge de Figueiredo. loc. cit., p. 125. 109 Dias, Jorge de Figueiredo. loc. cit., p. 125-126. 110 Dias, Jorge de Figueiredo. loc. cit., p. 127-128. 111 Ambos princípios fazem parte de uma formulação dualista dentro da dogmática constitucional. Por um lado sua função é impedir que o Estado cometa excessos, por outro ele deve garantir a proteção e promover a proteção dos direitos fundamentais.
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mão de tipificações e sanções penais a condutas lesivas ao bem jurídico que poderia ser protegido ou ser aplicada sanção por via diversa da penal, desde que essa seja suficiente e adequada para tal, ou ainda quando essa tutela é inconstitucional por lesar a Constituição, justamente nos direitos fundamentais. Temos como exemplo a criminalização do “cheque sem fundo” quando não usado para estelionato ou ainda, para os chamados “crimes sem vítima” (consumo de drogas, prostituição, pornografia, etc). 112 No segundo, o Estado deixa de agir (omisso) ou quando o faz, é deficiente em seu dever de promover o desenvolvimento de direitos fundamentais, e de proteger de modo satisfatório um direito fundamental.   Nas palavras de Streck,   
Nesse sentido, se de um lado há a proibição de excesso (Übermassverbot), de outro há a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Ou seja, o direito penal não pode ser tratado como se existisse apenas uma espécie de garantismo negativo, a partir da garantia de proibição de excesso. 113 (grifo do autor)  
 Continua o doutrinado acima que a maioria dos penalistas brasileiros analisa o princípio somente pelo lado negativo e afirma que, a partir do Estado Democrático de Direito, há um dever de proteção aos direitos fundamentais pela via penal, sendo um garantismo positivo. Um exemplo seria a descriminalização do aborto debatida na Alemanha, Espanha e Portugal.114  De tudo discutido até aqui, cabe falar de um último tópico característico das sociedades modernas e muito tecnológicas, o qual traz discussões quanto à adoção da teoria do bem jurídico.   
3.2.4  O direito penal do bem jurídico e a sociedade de risco    
                                                           112 Ibidem, p. 128. 113 STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Disponível em: <http://www.leniostreck.com.br/site/wp- content/uploads/2011/10/2.pdf>. Acesso em: 05 ago. 2013, p. 5.  114  Ibidem, p. 5
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 O Direito Penal nas sociedades democráticas atuais baseia-se na função exclusiva do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídico-penais que remete suas origens no iluminismo eminentemente individualista, “e exprimem-se por excelência no racionalismo cartesiano, na doutrina jurídico-política do individualismo liberal e na mundividência antropocêntrica e humanista que comandou o movimento a favor dos direitos humanos.” 115  Ocorre que há questionamentos se esse modelo conseguirá dar conta das novas demandas dessa sociedade pós-moderna e globalizada. Os riscos para a existência, individual e comunitária, derivavam de uma ordem natural (terremotos, epidemias etc) ou de ações humanas próximas ou definidas. Mas a sociedade atual, muito tecnológica, massificada e global, traz novos riscos tidos como globais, onde uma ação humana pode extinguir a vida no planeta. Riscos produzidos, muitas vezes, anonimamente e cujo dano possa ser praticado em tempo e lugar muito distante da ação que os originou. 116  A dificuldade no novo tipo de delito está em nossa incapacidade de superar a individuação do autor como indivíduo físico, pessoa natural e também em definir a vítima como alguém imediatamente qualificável com corpo. Ambos existem, mas não são individualizáveis de plano e não ostentam as lesões típicas dos crimes individuais. É difícil de ser medida a extensão dos danos que se confunde com a tutela de condutas de risco, típicas de uma sociedade de risco. O problema não está no risco ou no dano concreto, mas em medir a extensão dos danos resultantes da conduta e ligá-los a uma vítima individual. O problema tem que ser resolvido sem deixar de lado princípios de civilização e humanidade, os quais devem ser mantidos e aperfeiçoados. 117 Para tentar solucionar o problema, alguns doutrinadores negaram a participação do direito penal nos mega-riscos, outros trazem uma excessiva tutela de condutas de crimes de perigo abstrato, antecipando a tutela, sem o resultado concreto da ação. Ainda, há outros que defendem o abandono do direito penal do bem jurídico para implementar o direito penal do risco e outros trazem o direito penal de tutela de “relações de vida como tais”. Diferentemente dessas posições extremas,
                                                           115 DIAS, Jorge de Figueiredo. loc. cit., p. 133 - 134. 116 BECK propôs a teoria da Sociedade de Risco. BECK, Ulrich. Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne, 1986. Tradução espanhola de Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa Borrás, 1998.  Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. loc. cit., p. 134-135. 117  Ibidem, p. 137.
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temos algumas intermediárias com a “expansão do direito penal”, bens jurídicos dotados de “referente pessoal” e bens jurídico-penais “instrumentais”.118 Concepções tratadas individualmente a partir deste ponto.  A vertente que nega a participação do direito penal é antropocêntrica ou monista-pessoal do bem jurídico-penal, ou seja, busca manter o patrimônio ideológico do Iluminismo Penal. O direito penal cuidaria das lesões a autênticos bens jurídicos enquanto o mega-riscos seriam tutelados pelos outros ramos do direito, meios não jurídicos de controle social. 119  Outra vertente buscou estabelecer um “direito penal do risco” que traz a tutela excessiva de crimes de perigo abstrato, tendo como base bens jurídicos vagos sem função crítica. O perigo apontado por Hassemer é para a função de garantia do direto penal, com isso o direito penal seria prima ou sola ratio e não ultima ratio. 120  Aqueles que defendem abandonar a teoria do bem jurídico em favor do direito penal do risco, pretendem criar um direito penal funcionalizado às exigências próprias da sociedade de risco. Baseia-se na assunção de um novo paradigma com uma nova formulação dogmática. As categorias clássicas da teoria do crime devem ser reformuladas, substituídas, ou mesmo abandonadas. Seria necessária a alteração total do modo de produção legislativa em matéria penal, mitigando o princípio da legalidade e atribuindo competência a órgãos executivos. Ainda, com uma antecipação da tutela penal, criminalizando estágios muito distanciados do eventual resultado danoso, tornando rarefeita a ligação entre conduta individual e o bem jurídico razão da tutela. Haveria uma flexibilização de conceitos dogmáticos tais como imputação objetiva, responsabilidade individual, culpa, autoria, sempre com vistas a estender o âmbito de atuação do Direito Penal. O que se busca é regular certos grupos numa gestão de riscos, intitulando-as como perigosas, buscando a máxima eficiência do sistema para reduzir os danos globais. 121  Stratenweth traz a posição de tutelar “relações da vida como tais”. Para que o direito penal consiga a tutela das gerações futuras, deve haver um afastamento do direito penal do resultado, adotando o direito penal do comportamento, devendo penalizar pura relações de vida como tais, ou seja, adota-se normas de
                                                           118 Ibidem, p. 137 - 144. 119 Ibidem, p. 137 - 138. 120 HASSEMER, Winfried. Lineamentos de uma teoria personal del bien jurídico, Doctrina Penal 12, 1989, p. 284. Cf. Ibidem, p.138. 121  Ibidem, p.138 - 139.
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comportamento, deixando de tutelar danos e perigo de danos concretos a bens jurídicos, já que estes falham nos crimes do futuro por tutelar interesses individuais concretos. A teoria do bem jurídico deve ser abandonada e substituída pelas relações ou contextos de vida como tais, usando, para isso, normas que assegurem o controle do comportamento. 122  Surgiram ainda as posições que, diferentemente das posições extremas, são intermediárias buscando resolver o problema, mesclando as posições já faladas.  Uma corrente intermediária pretende utilizar a política e dogmática criminal dupla, ou seja, mantem-se o direito penal clássico subsidiário como está (cerne), também conhecido como “direito de primeira velocidade” e cria-se uma periferia jurídico-penal específica em proteger a sociedade dos grandes riscos. Esta, também conhecida como “Direito Penal de segunda velocidade”, é caracterizada pela utilização de princípios diferentes semelhantes aos sancionatórios de caráter administrativo e por uma flexibilização controlada dos princípios contidos no cerne, por uma antecipação da proteção de interesses coletivos, com maior indefinição de autores e vítimas. Com isso há menor intensidade garantística do que a demonstrada pelo Direito Penal clássico. 123  Outra corrente intermediária diz que os bens jurídicos dotados de um referente pessoal capazes de conceber materialidade à ideia de dano e de ofensividade. Um ataque a esses bens jurídico-penais tem que haver perda ou dano pessoal e não lesão de mero interesse funcional. Essa teoria não visa substituir o bem jurídico por um conjunto de perigos abstratos (indeterminados) e é legítima a intervenção do direito penal nos mega-riscos quando houver o referente pessoal no bem jurídico. Augusto Silva Dias distingue esses bens com referente pessoal como sendo da sociedade civil e os bens coletivos sem essa referência pertencente ao Estado. Daí surge a concepção dualista de bens jurídicos penais. 124
                                                           122 Ibidem, p.140 - 141. 123 Ibidem, p.141 - 142. 124 A concepção dualista traz “os bens jurídicos individuais por um lado, e por outro os bens jurídicos supra individuais dotados de referente pessoal e de base antropocêntrica, na medida em que, apesar de não serem de uso exclusivo de um indivíduo são susceptíveis de serem fruídos individualmente. (v. g. o ambiente). Do domínio penal deveria excluir-se, por isso, a lesão a interesses funcionais pela ausência de algo que possa ser intersubjectivamente experimentado como uma perda ou dano pessoal: é a incapacidade de ser consumível individualmente, e consequentemente, a ausência de referência pessoal que transparece nos chamados bens coletivos (v. g. a segurança do Estado) e que impediria a sua tutela penal.” Cf. Ibidem, p.142 - 143.
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 Por fim, a última corrente intermediária trata dos bens jurídico-penais instrumentais, os quais são dotados de relevância penal, apresar de serem valores- meios ou instrumentos dos valores essenciais (vida, liberdade, propriedade, integridade física etc), pois protegem condições necessárias para a existência humana. A lesão a estes bens não configura simples crime de perigo, já que o perigo nestes casos é elemento fundamentador e constitutivo do próprio bem jurídico. 125  A partir daqui, acreditamos que se deve manter o a teoria do bem jurídico no direito penal, pois podemos afirmar que existem definidos os bens jurídicos sociais, os comunitários, os universais e os coletivos ao lado dos bens jurídicos dotados de referências individuais.126   
3.3  A perda (ou a necessidade do resgate) da essência do bem jurídico penal em uma doutrina penal que se afasta do modelo constitucional de 1988   
 Para falar da necessidade de resgate da essência do bem jurídico devemos mostrar rapidamente como o direito penal chegou ao patamar que está, tendo como ponto de início o Código Penal atual, que entrou em vigor no ano de 1940. Este código nasce em um período de restrições de liberdades marcado pela ditadura Varguista. Zaffaroni e Batista falam sobre a influência da forma de governar no direito e sistema penais:   
Não nos deteremos sobre a interpretação que se vale da categoria do populismo, que só reflexamente afeta os campos da programação criminalizante do sistema penal que a dota de eficácia. Ao contrário, estes campos são diretamente afetados pela interpretação que trabalha com a categoria do totalitarismo. 127  
Em 1946, entra em vigor uma constituição liberal, vigorando por um período curto, pois o modelo de Estado instalado sofre o golpe dos militares em 1964. O novo governo reforçou o espírito sob o qual foi concebido o código de 1940: o de
                                                           125  Ibidem, p.144 - 145. 126  Ibidem, p.149. 127 ZAFFARONI, E. et. al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume: teoria geral do direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 462.
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restrição de liberdades em função do Estado como fim. O auge deste regime ocorreu com o Ato Institucional nº 05 criado pela chamada “Linha dura”.  Com a abertura política e transição democrática feita por João Batista de Oliveira Figueiredo (1979-1985) e consequente entrada em vigor da Constituição de 1988, que daria início a um novo Estado Democrático de Direito, previu-se materialmente no corpo da Carta Mágna direitos sociais e fundamentais do indivíduo, tendo compro princípio maior a dignidade da Pessoa Humana. Nota-se isso no preambulo   
[...] destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias [...]128  
A Constituição de 1988 possui valores básicos de natureza ético-jurídica que formam um sistema axiológico cujo valor principal é o da dignidade da pessoa humana. Esse sistema vincula todo o restante do ordenamento jurídico e dentre eles, traz um vínculo imperativo limitador na seleção de bens jurídicos a serem protegidos pelo direito penal. 129  Infelizmente, as mudanças contidas na Constituição não chegaram ao Código Penal ainda vigente, de cunho eminentemente positivista, pois ainda se mantém as raízes ditatoriais das quais nasceu em 1940 e que foram reforçadas pelo regime de exceção. Este regime, que trazia tendência à hiperpenalização do risco, da moral e do perigo, inimigos clássicos da ditadura, não deveriam continuar sob a proteção de um Estado Democrático de Direito, mas é o que ocorre, indo contra a teoria do bem jurídico e mesmo a Constituição.   É nesse ponto que vemos o baixo controle constitucional realizado por nossos julgadores, pois “Registre-se, entretanto – e tal circunstância é conformadora do fenômeno da baixa constitucionalidade em terra brasiliensi – que o controle difuso não tem sido utilizado com a freqüência e com a constância que um sistema jurídico em crise como o brasileiro exige.” 130
                                                           128 BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Publicada no Diário Oficial da União nº 191 – A, de 5 de outubro de 1988. 129 GOMES, Luiz Flávio. loc. cit., p. 87. 130 “[...] a forma de controle difuso permite uma capilaridade no processo aplicativo da Constituição, possibilitando que juízes singulares e os diversos tribunais possam deixar de aplicar leis ou dispositivos de leis inconstitucionais, a partir do exame do caso concreto. Assim, sempre que o juiz
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 O positivismo é marcante na formação de nosso sistema criminal direcionado para os eleitos criminosos das classes marginalizadas. Penaliza-se, em suma, crimes patrimoniais e morais tipicamente praticado pelas classes baixas, e pouco ou quase não se penaliza os crimes típicos das classes dominantes, como os chamados crimes do colarinho branco. Podemos citar como exemplo trazido por Streck:  
Seguindo a tradição inaugurada pela Lei 9.249, que, no art. 34, estabelecia a extinção de punibilidade dos crimes fiscais pelo ressarcimento do montante sonegado antes do recebimento da denúncia, foi promulgada, já no governo Luis Inácio Lula da Silva, a Lei 10.684, que no seu art 9º, estabeleceu a suspensão da pretensão punitiva do Estado, referentemente aos crimes previstos nos arts. 1º. e 2º. da Lei 8.137/90, e nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. Mais ainda, estabeleceu a nova lei a extinção da punibilidade dos crimes antes referidos quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.  
De pronto, cabe referir que inexiste semelhante favor legal aos agentes acusados da prática dos delitos do art. 155, 168, capud e 171 do Código Penal, igualmente crimes de feição patrimonial não diretamente violentos. Tal circunstância demonstra, já de início, a visão de mundo do legislador (e do Poder Executivo) acerca da teoria do bem jurídico. Ou seja, para o establishment, é mais grave furtar e praticar estelionato do que sonegar tributos e contribuições sociais. 131 (grifo nosso)  
Zaffaroni retrata isso mostrando como há uma diferenciação na forma de punir, pois “[...] é possível verificar que sempre se reprimiu e controlou de modo diferente os iguais e os estranhos, os amigos e os inimigos”. 132 Se a sociedade evolui rápida e freneticamente em virtude da globalização onde as informações correm de forma quase instantânea, continuamos a nos apegar a valores morais legais do saber penal. Como exemplo, basta a manutenção da Lei de Contravenções Penais133, código moral134 não recepcionado135 pela Constituição Federal e em pleno vigor, repleto de furos e paradoxos.
                                                                                                                                                                                     entender que a discussão da constitucionalidade é uma „questão prejudicial‟, pode deixar de aplicar a lei. É evidente que o efeito é apenas inter partes.” Cf. STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição. loc. cit. p. 6 - 7. 131 STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição. loc. cit. p. 18. 132 ZAFFARONI, E. Raúl. Tradução de Sérgio Lamarão. Inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 81.  133 BRASIL, Lei das Contravenções Penais. Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941.  134 “Tutelando basicamente infrações a normas morais, muitas delas já incorporadas aos costumes, a Lei de Contravenções Penais é elaborada sobre “vícios”, ignorando a secularização do direito penal sem que haja a menor preocupação em verificar-se a efetiva lesividade da conduta. Na maior parte das vezes temos condutas sem resultado, que “atentam contra a moral” ou que visam a preservar a “ordem social” e a integridade de uma moral social instituída nos sucessivos governos autoritários,
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A atitude de apego exagerado às formalidades legais, sem preocupação com a justiça é uma herança do positivismo jurídico desenvolvido no século dezenove e que por sua vez, foi uma aplicação degenerada de um preceito muito antigo, enunciado por Platão e desenvolvido por Aristóteles. Preocupamo-nos mais com as formalidades que com a justiça, vale mais o que o legislador fala do que os direitos fundamentais das pessoas ou do que os interesse sociais. Se ainda continuarmos seguindo o positivismo cego, teremos juízes que seguirão na risca as normas postas, desprezando os princípios constitucionais. Ainda, os mesmos juízes poderão decidir de acordo dom o interesse de alguns, que financiam nossos deputados e senadores para apoiarem determinado projeto de lei.  A forte influência midiática assume novos papéis para a hipercriminalização,136 trazendo um sentimento de insegurança ao criar programas policiais e veicular notícias que só tratam de crimes cometidos pela classe marginalizada, alvo das novas e velhas leis, reforçando o controle estatal e lançando uma nuvem sobre os crimes praticados pelas classes dominantes. Como Assinala Vera Malaguti Batista, “no Brasil a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de exclusão e disciplinamento das massas empobrecidas” 137    No mesmo sentido, Zaffaroni fala do autoritarismo contemporâneo produto da   
difusão midiática do sistema penal dos Estados Unidos, a América Latina impõe um tratamento diferenciado às suas classes subalternas, de onde extrai os criminalizados, os policializados, os vitimizados, que se neutralizam politicamente em suas contradições internas, exacerbadas pelo discurso negativo dos meios de comunicação de massa. 138
 
                                                                                                                                                                                     desde a monarquia até a abertura democrática de 1988.” Cf. SILVA FILHO, Edson Vieira da. A (des)construção hermenêutica do direito penal em terrae brasilis – o bem jurídico à luz da constituição. 2011. 256 f. Tese (Doutorado em Direito Penal) – Programa de Pós Graduação em Direito - Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, 2011. p. 215. 135 “Também quando a lei for anterior a Constituição os órgãos fracionários estão dispensados da suscitação, isto porque, a partir da ADIn n° 2, e a questão de ordem da ADIn 438, o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento de que o nosso sistema jurídico não admite inconstitucionalidade superveniente. Como conseqüência, leis anteriores à Constituição, que com ela conflitem, são simplesmente não-recepcionadas. Logo, desnecessário qualquer incidente para tal declaração. Igualmente há dispensa de suscitação do incidente per saltum nos casos interpretação conforme a Constituição e nulidade parcial sem redução de texto.” Cf. STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição. loc. cit. p. 7. 136 ZAFFARONI, E. et. al. Ibidem, p. 487. 137 MALAGUTI  BATISTA, Vera. apud ZAFFARONI, E. et. al. Ibidem, p. 487 - 488. 138 ZAFFARONI, E. Raúl. Tradução de Sérgio Lamarão. Inimigo no direito penal. loc. cit., p. 82.
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Os crimes ligados a costumes ou crimes sem vítimas são exemplos claros do controle social pretendido de forma dissimulada, inserido no Direito Penal como se tratasse de grandes males sociais. 139 Ainda há dificuldades em associar o Direito Penal ao bem jurídico constitucional. As doutrinas do risco e da tolerância zero contribuem fortemente para isso, já que motivos nascidos da razão se colocam como suficientes para criminalizar (e descriminalizar) condutas sem nenhum nexo. 140 Diante disso, os processos de criminalização e de descriminalização estão muito mais próximos dos valores infraconstitucionais do que dos bem jurídicos que deveriam ser extraídos do texto constitucional. Isso se deve pela baixa compreensão da Constituição Federal de 1988141  atrelado aos interesses das classes dominantes. O modelo garantista da constituição traz, com certeza, dificuldades operacionais de ordem administrativa que nos levam a fugir da discussão a respeito do bem jurídico penalmente adequado à constituição, mas não é uma justificativa para ficarmos inertes. Para verificação de todo exposto, passamos exemplificar a falta de nexo e proporcionalidade, a falta de vinculação da tutela de bens jurídicos constitucionais, o grande número de tutelas de perigo abstrato, a tutela moral, entre outros problemas encontrados na legislação nacional, sem querer esgotar as possibilidades, já que são incontáveis. Temos o crime de escrita ou objeto obsceno do art. 234 do Código Penal Brasileiro (CPB), que ainda está vigorando, cuja pena é o dobro do crime de lesão corporal do art. 129 do mesmo código. A falta nexo reside no fato de tal crime não proteger qualquer bem jurídico constitucional e tão pouco haver proporção na imposição da quantidade de pena. Até pouco tempo existia o crime de adultério,142 de cunho moral, que não dava proteção a qualquer bem constitucional. Outro exemplo moral é o art. 227 do CPB, mediação para servir a lascívia de outrem, cujo tipo não trata de violência, constrangimento, lucro, exploração ou qualquer outro bem jurídico protegido na esfera penal pela Constituição, mas ainda assim, possui pena maior do que o crime Constrangimento ilegal do art. 146 do                                                            139 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 15. 140 SILVA FILHO, Edson Vieira da. loc. cit., p. 198. 141 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição. loc. cit. 142 Revogado somente há cinco anos pela Lei nº 11.106 de 2005. Cf. SILVA FILHO, Edson Vieira da., loc. cit. p. 198.
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CPB, o qual protege a liberdade (bem jurídico penal constitucional), que no texto da lei é lesada “por violência ou grave ameaça”. Na mesma linha de desprezo à liberdade, temos o crime de Exercício arbitrário ou abuso de poder do art. 350 do mesmo código, cuja pena é menor que a do art. 227. Os exemplos demonstram que o sistema penal brasileiro, em sua maioria, é composto por “crimes sem vítima, sem danos, sem resultados, sem bem jurídico penal correspondente, com desproporção entre bens jurídicos (quando são considerados) e pena atribuída.” 143 Apesar do caráter subsidiário do Direito Penal, a regra é a criminalização e, em sua maioria, tutelamos condutas de risco. As infrações de trânsito, tributárias e muitas outras chegaram ao direito penal, ou seja, tudo passou a ser tutelado penalmente no Brasil. Há pouco tempo, dirigir sem Carteira Nacional de Habilitação era contravenção penal, contida no capítulo II da Lei de Contravenções Penais, tutelando o risco que esse condutor pode causar, porém há habilitados que causam mais risco ou mais danos que o inabilitado. Na mesma linha de tutela do risco presumido, temos o crime de porte de arma de fogo, o qual era previsto na mesma lei e foi revogada pelo Estatuto do Desarmamento144 que possui pontos criticados por Streck:  
No crime de porte ilegal de arma é que se pode aquilatar a dimensão da crise do direito. Com efeito, como que para demonstrar o total afastamento da materialidade da Constituição, o legislador, primeiro através da Lei 10.259/01, rebaixou o delito à categoria “crime de menor potencial ofensivo” (sic), para, ao depois, pela recentíssima Lei 10.826, catapultar o mesmo delito ao rol dos crimes de “grande potencial ofensivo”, a ponto de colocá-lo como “inafiançável” (sic). Como não há critério, nada surpreenderia se, amanhã, o legislador optasse por descriminalizar o porte de arma. De qualquer sorte, tais “idas e vindas” do legislador não encontrar(i)am qualquer obstáculo de índole constitucional no seio dos operadores jurídicos. Afinal, “lei vigente é lei válida”...! E pronto! 145 (grifo do autor)  
Ainda, o autor entende que “[...] trata-se de um tipo penal que criminaliza perigo abstrato, incompatível com o contemporâneo Estado Democrático de Direito.”146 A proteção do bem jurídico não pode ser feita protegendo o risco, a abstração e sim a lesão/violação concreta.
                                                           143 Ibidem, p. 200. 144 BRASIL, Estatuto do desarmamento. Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003.  145 STRECK, Lenio Luiz., loc. cit. p. 14. 146  Ibidem, p. 21
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Para encerrar os exemplos, visto existirem em quantidade elevada, citamos o Estatuto do Torcedor147 como extremo de tutela de risco e também art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro,148 como extremo de falta de nexo e zelo na atividade legislativa.   O primeiro estatuto tipifica condutas já existentes no Código Penal Brasileiro e com penas maiores, sendo essa majoração motivada exclusivamente em virtude do seu destinatário, agora chamado de torcedor, sendo este: “Art. 2º Torcedor é toda pessoa que aprecie, apoie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada prática esportiva”.   O maior problema encontra-se no “Parágrafo único. Salvo prova em contrário, presumem-se a apreciação, o apoio ou o acompanhamento de que trata o capud deste artigo”. Temos que é presumida a condição de torcedor e para não ser enquadrado nos dispositivos penais, é preciso provar não ser torcedor. Não importa se a pessoa apenas gosta de determinada prática esportiva, mesmo que não siga qualquer um dos times como no futebol, é torcedor, pois aprecia essa determinada prática esportiva. Vejamos o que o artigo 41-B diz:  
Art. 41-B.  Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos:    Pena - reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa § 1o  Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que:   I - promover tumulto, praticar ou incitar a violência num raio de 5.000 (cinco mil) metros ao redor do local de realização do evento esportivo, ou durante o trajeto de ida e volta do local da realização do evento;   II - portar, deter ou transportar, no interior do estádio, em suas imediações ou no seu trajeto, em dia de realização de evento esportivo, quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência.  
Então, se aprecio determinado esporte como o tênis e passo perante um estádio de futebol com a raquete dentro do porta-malas, posso ser penalizado (em tese) criminalmente de acordo com o dispositivo supra. Daí surge as perguntas: e a chave de rodas no meu porta-malas? É também instrumento para esse crime? Qual risco concreto eu traria?  Certo que a lei surgiu em virtude das torcidas organizadas, as quais entram em confronto frequentemente, porém não fugirá das mesmas perguntas: fazer parte
                                                           147  BRASIL, Estatuto do torcedor. Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003.  148  BRASIL, Código de trânsito brasileiro. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997.  
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da torcida organizada e portar meu celular (instrumento que pode servir para a prática de violência) próximo a estádio ou no trajeto deste será crime? É perceptível a grande generalização e abstração dessa lei, intitulando como perigoso aquele que é presumidamente torcedor.   O segundo e último exemplo está no Código de Trânsito Brasileiro:   
Art. 304. Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar socorro à vítima, ou não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública:   
Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave. Parágrafo Único. Incide nas mesmas penas previstas nesse artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves. (grifo nosso)  
 O condutor omisso que tiver sua omissão suprida por terceiros será penalizado e ainda será penalizado se ocorrer a morte instantânea da vítima. Disso perguntamos: como socorrer alguém que já está morto? Porque penalizar alguém por não acionar as autoridades ou socorrer uma vítima se outro já o fez?  Observa-se o absurdo existente em nossas legislações, estas preparadas quase sempre as pressas, sem qualquer discussão válida sobre seu conteúdo, sempre procurando responder com leis o anseio da sociedade, que na maioria das vezes, é criado pelas mídias de massa ou por manipulação das classes dominantes.  Por isso é pertinente frisarmos:  
[...] nunca é demais lembrar que a função do Direito Penal é a de proteger bens jurídicos – que nada mais são do que valores e interesses de relevância constitucional ligados explícita ou implicitamente aos direitos e deveres fundamentais – e que a intervenção do poder punitivo se realizará para evitar comportamentos que neguem ou que violem tais valores. 149  
 Por tudo visto acima, podemos partir para o fim do nosso trabalho trazendo todos os tópicos relacionando-os e demonstrando a obrigatoriedade da adoção da Teoria do Bem Jurídico no Brasil.
                                                           149 STRECK, Maria Luiza Schäfer. Direito Penal e Constituição: a face oculta da proteção dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 40. apud  SILVA FILHO, Edson Vieira da. loc. cit., p. 203.  
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CONSIDERAÇÕES FINAIS    
 O presente trabalho foi elaborado para demonstrar que a adoção da teoria da proteção dos bens jurídicos deve ser obrigatória no Direito Penal Brasileiro, mesmo havendo as controvérsias mencionadas acima. A importância desta teoria é indiscutível e não há outra teoria capaz de desqualifica-la.  No início do trabalho foram expostas as concepções do Bem, mostrando que ele possui várias facetas dependendo da área de estudo e época de sua conceituação, certo é que o bem é algo valioso para o indivíduo ou para a sociedade.  Posteriormente, passamos a tentar definir o bem jurídico, passando por muitas teorias, sem esgotá-las. Podemos dizer que o bem jurídico é algo valioso para o indivíduo que é compartilhado por toda ou por boa parte da sociedade ou, ainda, que é fundamental para o funcionamento do Estado, que passa a protegê-lo.  Dentre os bens jurídicos, alguns deles devem ser alvos de proteção do Direito Penal, por serem fundamentais para o indivíduo, para a sociedade e para o funcionamento do Estado.    A grande questão é saber quais bens são fundamentais e merecem ser protegidos penalmente. Para responder a essa pergunta, foram expostos neste trabalho critérios delimitadores do legislador na escolha desses bens.  O mais importante é vincular o bem jurídico materialmente na Constituição, não podendo ser tutelado qualquer outro bem que não seja fundamental e não esteja contido implícita ou explicitamente na Carta Magna.  Portanto, não é compatível com a teoria do bem jurídico, a tutela de condutas moral, religiosas, ideológicas entre outras que não lesam ou ameaçam de lesão um bem jurídico constitucional fundamental presentes na Constituição.  O bem jurídico traz consigo algumas funções importantes que ajudam nessa tarefa de delimitação, sendo a maior delas a função garantista, que com as demais funções expostas no corpo deste trabalho, ajudam a definir os bens que merecem ser tutelados.
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 Uma das maiores críticas a adoção do bem jurídico veio com o surgimento dos mega-riscos típicos das sociedades muito tecnológicas e massificadas, pois a teoria do bem jurídico tem caráter eminentemente individualista. Então, surgiram novas teorias tentando resolver o problema. Algumas defendiam que o Direito Penal não deveria cuidar dos novos riscos, os quais deveriam ser combatidos por outras medidas. Outras defendem a adoção do direito penal do risco, tutelando demasiadamente condutas de perigo abstrato, tornando a tutela penal prima ratio.  Como é comum, entre as teorias extremas, surgiram as intermediarias e, dentre elas, destacou-se aquela dualista na tutela dos bens jurídicos, pois o direito penal se ocupará da tutela de bens jurídicos individuais e também dos supra individuais dotada de referencial individual, conseguindo adequar perfeitamente a teoria do bem jurídico às novas demandas da sociedade.  Encerrando o estudo do bem jurídico, falamos de alguns princípios importantes, dentre eles o que o princípio da subsidiariedade destacou-se em manter o critério de delimitação do legislador, selecionando condutas a serem tipificadas quando fundamentais, tornando, o direito penal, como o último recurso.  Após o estudo do bem jurídico, foi necessário enfrentar o tema principal, ou seja, validar o Direito Penal nacional após o surgimento da Constituição Federal de 1988 com a reconstrução do conceito de bem jurídico penal.  Explicou-se que o Sistema Penal pátrio acompanhou as formas de governo. O atual Código Penal foi criado em 1940 em plena Ditadura Varguista com o objetivo de controle social para legitimar o governo da época, com restrições de liberdades.   O Direito Penal foi acompanhando cada modo de governar até a Constituição de 1988, porém, não houve mudanças significativas apesar da Carta Magna trazer em seu corpo, maiores direitos e liberdades.   O Sistema Penal atual é marcado pelo grande número de tipificações sem um critério muito claro ou bem definido político-criminalmente, sem mesmo considerar os preceitos constitucionais, ficando, o Direito Penal, mais próximo do ordenamento infraconstitucional.  No Brasil, apega-se a um legalismo formal, no qual mais vale a lei criada pelo legislador do que as diretrizes da Carta Magna. Legisla-se de tudo, penalmente falando, quase sempre buscando o interesse das classes dominantes, como vimos nos exemplos citados.
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 Para piorar, há um baixo controle de constitucionalidade de nossas leis, seja pelo controle difuso ou pelo controle concentrado, fator que mantém em vigor algumas leis inconstitucionais.  O direito penal vem acompanhando o modelo social vigente no tempo e no espaço. A cada época, esse modelo social modifica-se e o direito penal deve acompanhá-lo, sob pena de não mais ser útil àquela determinada sociedade. Vemos isso atualmente no Brasil, onde a sociedade apresenta valores individuais, sociais, políticos e da ordem econômica do século XXI, mas é protegida por valores do século XIX.   O cenário atual é a hipercriminalização, esta incentivada pela mídia de massa e pelos interesses das classes dominantes, para cada vez criminalizar as condutas típicas das classes marginais e encobrir as condutas típicas daqueles que tem o poder, aumentando as penas e os tipos penais dos tidos como criminosos e mantendo baixa, ou mesmo nula, a tutela penal de crimes praticados pelos que estão no poder como a sonegação fiscal ou lavagem de dinheiro, entre outras.  Somente colocando em prática os preceitos, aliados à adoção da teoria do bem jurídico nos moldes discutidos neste trabalho, valorizando principalmente o tratamento igualitário entre as pessoas de bem e possuidora de bens, determinando o porquê punir, o como punir e quais condutas punir, sem privilegiar alguns em detrimento de outros como forma de manter o poder e a dominação, adotando obrigatoriamente a teoria do bem jurídico penal constitucional, primando pelos direitos fundamentais e como ultimo recurso, é que o direito penal pátrio será validado e justo.     
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  
   
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